Caminhos do racismo brasileiro: violência, trabalho, escravidão. (FOTO: Divulgação). |
No
Rio de Janeiro, um jovem negro, desarmado, é assassinado por um guarda de
segurança em um supermercado. Em Salvador, uma festa de aniversário, amplamente
divulgada nas redes sociais, usa referências visuais ligadas ao período da
escravidão. Por intermédio de uma portaria, um ministro de estado modifica o
conceito de trabalho escravo, o que contraria o Código Penal brasileiro e
dificulta a fiscalização e o combate à escravidão contemporânea. Um deputado
federal defende publicamente um projeto de lei (PL 6442/2016) que retira a
maioria dos direitos sociais dos trabalhadores rurais, prevê o pagamento de
salários sob a forma de moradia e habitação e permite jornadas exaustivas, sob
o argumento de que a medida está inserida “nos
usos, costumes e a cultura do campo”.
Tomados
em conjunto, esses quatro eventos, todos ocorridos num intervalo inferior a
dois anos, desvelam os caminhos do racismo brasileiro. Eles mostram a
naturalização da violência e da exclusão que atingem a população negra no
Brasil há muito tempo, e que persistem nas práticas sociais da atualidade.
O elevadíssimo número de homicídios no Brasil tem uma clara conotação racial.
Segundo
números do Atlas da Violência 2018, elaborado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, “71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no
país são pretas ou pardas”. Se forem consideradas as mortes causadas por forças
policiais, 76,6% das vítimas são negras. Não é por acaso, portanto, que a
vítima do assassinato no supermercado tenha sido um cidadão negro. A segurança
privada, naquele caso, é um espelho da atuação das polícias no Brasil.
O
episódio da festa que trouxe alusões ao período da escravidão, por meio da
cenografia e do vestuário, não é também uma novidade na história brasileira. No
terceiro volume da biografia de Getúlio Vargas, o escritor Lira Neto descreve
uma festa promovida por Assis Chateaubriand em Paris, no ano de 1952, que
procurava “apresentar à alta sociedade do
Velho Mundo o Brasil verdadeiro”.
Entre
as várias “atrações” da festa, estava um momento em que “quatro negros vestidos de escravos entravam conduzindo uma liteira que
trazia, entre almofadas, devidamente fantasiada de senhora de engenho, a bela
Aimée” (Lira Neto, “Getúlio – da volta pela consagração popular ao suicídio
[1945-1954], Companhia das Letras, São Paulo, 2014, p. 234-235).
Além
disso, por meio de importante reportagem produzida pelo The Intercept, fomos
informados da existência, no município de Vassouras, no estado do Rio de
Janeiro, de uma fazenda transformada em atração turística, em que mulheres
negras eram caracterizadas como escravas e o ambiente procurava reproduzir o
que os proprietários imaginavam fosse uma fazenda do tempo dos cafezais. Não é
difícil intuir que a família dos atuais proprietários explorava, no século XIX,
mão de obra escrava.
As
tentativas de modificar a definição legal ligada ao trabalho escravo vêm
ocorrendo de forma recorrente nos últimos anos, apesar da condenação sofrida
pelo Brasil por decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos acerca da ausência de adoção de medidas,
pelo Estado, de combate à escravidão contemporânea (Caso Fazenda Brasil Verde,
decidido em 20 de outubro de 2016).
A
edição da Portaria nº 1.129/2017 foi mais um movimento neste sentido. Após
forte oposição nos planos doméstico e internacional, e uma suspensão liminar
por decisão da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, o governo federal
revogou a portaria. Isso não impediu, contudo, que surgissem propostas no
Congresso Nacional que procuraram legalizar práticas associadas à escravidão
contemporânea, como o pagamento de salário em utilidades e a possibilidade de
cumprimento de jornadas exaustivas, como o caso do PL 6442/2016.
Submissão à violência das forças de segurança (públicas e privadas), representações em festas e atrações turísticas que remetem ao período da escravidão, tentativas de flexibilizar o conceito de trabalho escravo são práticas sociais que estão diretamente associadas, e que possuem nítido componente histórico.
A
tardia abolição da escravidão, no Brasil, foi uma medida que não veio
acompanhada por nenhuma política relacionada à inclusão da população negra no
mundo do trabalho. A abolição ocorreu de modo simultâneo ao incentivo à
imigração de populações europeias para o Brasil, naquilo que ficou claramente
caracterizado como uma tentativa de branqueamento da sociedade. Violência e
exclusão continuaram a atingir a população negra, na cidade e no campo.
O
Brasil historicamente silenciou a cultura, as práticas sociais e a própria
autonomia da população negra.
No
Rio de Janeiro, um jovem negro, desarmado, é assassinado por um guarda de
segurança em um supermercado. Em Salvador, uma festa de aniversário, amplamente
divulgada nas redes sociais, usa referências visuais ligadas ao período da
escravidão. Por intermédio de uma portaria, um ministro de estado modifica o
conceito de trabalho escravo, o que contraria o Código Penal brasileiro e
dificulta a fiscalização e o combate à escravidão contemporânea. Um deputado
federal defende publicamente um projeto de lei (PL 6442/2016) que retira a
maioria dos direitos sociais dos trabalhadores rurais, prevê o pagamento de
salários sob a forma de moradia e habitação e permite jornadas exaustivas, sob
o argumento de que a medida está inserida “nos usos, costumes e a cultura do
campo”.
Tomados
em conjunto, esses quatro eventos, todos ocorridos num intervalo inferior a
dois anos, desvelam os caminhos do racismo brasileiro. Eles mostram a
naturalização da violência e da exclusão que atingem a população negra no
Brasil há muito tempo, e que persistem nas práticas sociais da atualidade.
O elevadíssimo número de homicídios no Brasil tem uma clara conotação racial.
Segundo
números do Atlas da Violência 2018, elaborado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, “71,5% das pessoas que são assassinadas a cada ano no
país são pretas ou pardas”. Se forem consideradas as mortes causadas por forças
policiais, 76,6% das vítimas são negras. Não é por acaso, portanto, que a
vítima do assassinato no supermercado tenha sido um cidadão negro. A segurança
privada, naquele caso, é um espelho da atuação das polícias no Brasil.
O
episódio da festa que trouxe alusões ao período da escravidão, por meio da
cenografia e do vestuário, não é também uma novidade na história brasileira. No
terceiro volume da biografia de Getúlio Vargas, o escritor Lira Neto descreve
uma festa promovida por Assis Chateaubriand em Paris, no ano de 1952, que
procurava “apresentar à alta sociedade do Velho Mundo o Brasil verdadeiro”.
Entre
as várias “atrações” da festa, estava um momento em que “quatro negros vestidos
de escravos entravam conduzindo uma liteira que trazia, entre almofadas,
devidamente fantasiada de senhora de engenho, a bela Aimée” (Lira Neto,
“Getúlio – da volta pela consagração popular ao suicídio [1945-1954], Companhia
das Letras, São Paulo, 2014, p. 234-235).
Além
disso, por meio de importante reportagem produzida pelo The Intercept, fomos
informados da existência, no município de Vassouras, no estado do Rio de
Janeiro, de uma fazenda transformada em atração turística, em que mulheres
negras eram caracterizadas como escravas e o ambiente procurava reproduzir o
que os proprietários imaginavam fosse uma fazenda do tempo dos cafezais. Não é
difícil intuir que a família dos atuais proprietários explorava, no século XIX,
mão de obra escrava.
As
tentativas de modificar a definição legal ligada ao trabalho escravo vêm
ocorrendo de forma recorrente nos últimos anos, apesar da condenação sofrida
pelo Brasil por decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos acerca da ausência de adoção de medidas,
pelo Estado, de combate à escravidão contemporânea (Caso Fazenda Brasil Verde,
decidido em 20 de outubro de 2016).
A
edição da Portaria nº 1.129/2017 foi mais um movimento neste sentido. Após
forte oposição nos planos doméstico e internacional, e uma suspensão liminar
por decisão da Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, o governo
federal revogou a portaria. Isso não impediu, contudo, que surgissem propostas
no Congresso Nacional que procuraram legalizar práticas associadas à escravidão
contemporânea, como o pagamento de salário em utilidades e a possibilidade de
cumprimento de jornadas exaustivas, como o caso do PL 6442/2016.
Submissão
à violência das forças de segurança (públicas e privadas), representações em
festas e atrações turísticas que remetem ao período da escravidão, tentativas
de flexibilizar o conceito de trabalho escravo são práticas sociais que estão
diretamente associadas, e que possuem nítido componente histórico.
A
tardia abolição da escravidão, no Brasil, foi uma medida que não veio
acompanhada por nenhuma política relacionada à inclusão da população negra no
mundo do trabalho. A abolição ocorreu de modo simultâneo ao incentivo à
imigração de populações europeias para o Brasil, naquilo que ficou claramente
caracterizado como uma tentativa de branqueamento da sociedade. Violência e
exclusão continuaram a atingir a população negra, na cidade e no campo.
Várias
formas de resistência surgiram, desde a fundação da Frente Negra e da Liga
Negra, na década de 1930, passando pelo Teatro Experimental do Negro, a partir
dos anos 1940, até os vários movimentos que culminaram no estabelecimento do
Movimento Negro Unificado, em 1978.
Na
Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 houve uma intensa atuação de
militantes do movimento negro, especialmente na Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Ali foram realizados
debates, durante audiências públicas, que tematizaram de forma aberta a questão
do racismo brasileiro.
Num
depoimento elucidativo, profundo e com forte consciência histórica, o escritor
e jornalista Joel Rufino dos Santos insistiu num ponto: com a constante
tendência de ver-se como um país branco, o Brasil acabava por negar e ocultar
um elemento vital da sua própria história. Segundo o escritor, essa
impossibilidade de enxergar a diversidade da sociedade brasileira “recalca,
oculta o seu lado negro, porque, indiscutivelmente, o que este País é – é um
País de negros, brancos, índios e outras etnias” (Diário da Assembleia Nacional
Constituinte, Suplemento ao nº 63, 21.5.1987, p. 136).
Joel
Rufino, no final do seu discurso, conclamava o Brasil a se
“reconstitucionalizar”, a repensar sua própria trajetória, pois “um dos aspectos da crise brasileira é
precisamente essa visão que temos de Brasil”, que historicamente silenciou
a cultura, as práticas sociais e a própria autonomia da população negra.
Num
momento histórico como o que vivemos, marcado pela ameaça de enormes
retrocessos na proteção aos direitos humanos e pelo constante risco de retorno
à mais evidente barbárie, é necessário atender ao chamado de Joel Rufino e
recorrer à Constituição. E lembrar que o texto constitucional contém uma
expressa refutação do racismo, ao estabelecer, como um dos objetivos
fundamentais da República brasileira, a promoção “do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV).
A
Constituição permanece atual, 30 anos após sua promulgação. Seu compromisso
pela igualdade exige que a sociedade brasileira tome consciência do racismo
estrutural que persiste entre nós, da violência endêmica contra a população
negra e das incessantes tentativas de flexibilizar as regras jurídicas que
rejeitam todas as formas de escravidão.
Isso
só poderá ocorrer pela adoção de políticas de inclusão e formas de reparação
que envolvam o reconhecimento das violências passadas e presentes. Só assim a
“reconstitucionalização” do Brasil, almejada por Joel Rufino dos Santos, poderá
ser vivida no plano político, social e institucional. (Publicado originalmente
em na CartaCapital).
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