A comemoração forçada da ditadura: Anátema


(FOTO/Reprodução).
Anátema é uma palavra grega relacionada a ser maldito, estar separado, desterrado, sem comunicação.

Nos escritos do Novo Testamento da Bíblia, o apóstolo Paulo usa a palavra para se referir a quem se separa, se coloca distante de Jesus Cristo e dos princípios do Evangelho de amor, de paz com justiça, de misericórdia, de despojamento, de inclusão e de tolerância.

Anátema é dirigida por Paulo especialmente para quem usa o Evangelho de Cristo, distorce-o e prega doutrina diferente daquela que foi recebida.

Em uma das cartas que Paulo escreve a cristãos, ele insiste tanto nesta palavra que chega a repeti-la na mesma sentença:

Maravilho-me de que tão depressa passásseis daquele que vos chamou à graça de Cristo para outro evangelho; o qual não é outro, mas há alguns que vos inquietam e querem transtornar o evangelho de Cristo. Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja Anátema! Repito aqui o que acabamos de dizer: se alguém pregar doutrina diferente da que recebestes, seja ele Anátema!” (Galátas 1.6-9).

Evoco esta palavra do apóstolo Paulo, ao acompanhar as informações sobre a ordem dada pelo por Jair Bolsonaro para que haja comemoração oficial do Dia do Golpe Militar, 31 de março, que impôs uma sangrenta ditadura de 21 anos ao País.

Seja este governo Anátema. Empossado com a oração de um pastor em rede nacional, após campanha sob o mote de que “Deus está acima de todos”, o eleito nunca escondeu sua paixão pela violência do regime ditatorial, pela tortura aplicada aos ativistas opositores e seus praticantes.

Como diz o apóstolo Paulo, gente que transtorna o evangelho de Cristo, relacionando-o com ódio, perversidade, crueldade, injustiça, intolerância, exclusão. E pior: um líder que não tem oferecido soluções para questões sociais e usa de artifícios ideológicos como a tal comemoração de domingo para animar seus apoiadores e ocultar o seu fracasso.

Sejam seus apoiadores Anátema. Por darem crédito e concederem poder a um governante que sempre se pautou pelo ódio, pela violência, pela desumanidade com quem lhe é diferente, pelo desrespeito à democracia, pelo vazio de propostas que visem superar os principais problemas que o País enfrenta.

Bolsonaro busca agradar seu eleitorado. (FOTO/ABR)

Dois institutos de pesquisa mostraram na mesma semana que este apoio concentra-se nos ricos (49%) e nos evangélicos (61%). Sobre os ricos não há surpresa: estão mesmo longe dos valores do Reino de Deus (é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que ricos fazerem parte do Evangelho de amor, misericórdia, despojamento, paz com justiça, como disse Jesus).

Já esta parcela dos evangélicos parece vender “o evangelho que lhes foi anunciado” ao preço de ganharem poder com um governo que instrumentaliza a religião para os seus objetivos.

Parecem negociar Jesus Cristo e seus valores pelo preço baixo de projetos de lei que barrem os avanços nos direitos de gênero, buscando assim um alívio para suas sempre malparadas questões sexuais.

Pau-de-arara

Sejam ainda Anátema os religiosos do passado e do presente que respaldam intervenções militares [violentas] e os que colaboraram com o regime de exceção inaugurado com o golpe de 1964.

São oficialmente reconhecidas ao menos 30 práticas degradantes contra seres humanos que faziam oposição ao regime imposto em 1964. Foram torturas psicológicas como coações e ameaças de morte aos presos, às esposas, filhos e demais parentes, fuzilamentos simulados, uso de esposas e filhos como audiência das torturas.

E mais: choques elétricos, espancamentos, geladeira, pau de arara e pau louco (roda palmatória), queimaduras de cigarros, sufocamento, afogamento, sevícias, “telefone”, estupros coletivos, introdução de objetos e animais em vaginas e ânus, pendura pelos testículos, pênis pregados em mesas. Quem é evangélico não aceita esta maldade.

Esta selvageria foi praticada direta ou indiretamente por 377 integrantes das Forças Armadas, policiais federais, civis e militares, delegados e médicos, todos identificados em processos da própria Justiça Militar. Militares britânicos e estadunidenses ofereceram treinamento. Presos comuns e moradores de rua eram usados como cobaias.

Entre estes agentes ao menos sete evangélicos são citados em registros oficiais. São ainda inúmeros os líderes religiosos apoiadores, seja como doutrinadores políticos em suas congregações religiosas seja como delatores de fiéis dessas congregações que avaliavam como “subversivas”.

A repressão interna nas igrejas evangélicas, em apoio ao regime, foi muito violenta, com perseguição a pastores e líderes leigos, fechamento de seminários teológicos e intervenções em instituições educacionais confessionais. Sejam Anátema.

Esta história não foi devidamente contada, justiça e reparação dos males não foi feita e está longe de ter sido superada. Há muitas feridas abertas e que, agora, são ainda mais violentadas pela ordem presidencial de que se comemore estes atos.

Ainda mais quando a violência sustentada pelo Estado continua a ser praticada e são muitos os Amarildos, as Claudias, as Marielles, resultantes das práticas de exceção que perduram.

Sejam, pois, Anátema os perversos que comemoram o que não há a comemorar, para se esquecer o que não pode ser esquecido, e esconder o fracasso que é nítido como a luz do dia. (Por De Magali do Nascimento Cunha, na CartaCapital).

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