Por
Enrique Alpañés, do El Pais
Tudo
pelas minorias, mas sem as minorias. O lema do despotismo esclarecido parece
ter sido modernizado na moderníssima e politicamente correta Hollywood, e a
frase resume o ambiente dominante na próxima cerimônia de entrega do prêmio
Oscar. A mais recente voz crítica foi a prodigiosa de Anohni, cantora
transgênero antes conhecida como Antony, de Antony and the Johnsons. A primeira
transgênero a conseguir uma indicação para o Oscar anunciou em carta pública
que não comparecerá à festa porque não deixaram que ela se apresentasse. A
Academia achou que faz muito mais sentido pular sua interpretação para que um
grupo mais mainstream tenha tempo de se apresentar à vontade, mesmo que não
tenha sido indicado, como aconteceu com o Foo Fighters. É chover no molhado. Sua
crítica se soma às feitas pela comunidade afro-americana devido à ausência de
atores negros entre os indicados, pelo segundo ano consecutivo.
Vai
se criar um grande paradoxo. A 88ª edição do prêmio Oscar vai ser apresentada
por um negro, Chris Rock, que entregará prêmios a brancos. O público vai
aplaudir a brava interpretação de Eddie Redmayne como primeira transexual da
história (em “A Garota Dinamarquesa”) consciente de que os organizadores
vetaram a ida ao palco da primeira transgênero a conseguir uma indicação. Tudo
muito politicamente correto na aparência, com sua dose certa de diversidade
racial, sexual e de gênero. Tudo muda para que tudo continue igual.
A cantora Anohni. |
Mais
de uma publicação viu na presença conjunta de “Carol” e “A Garota Dinamarquesa”
entre os filmes indicados uma vitória para lésbicas e transexuais, as
comunidades menos visíveis contidas na sigla LGBT. Pode ter havido algum avanço
nos últimos anos, mas essas indicações, longe de serem revolucionárias,
confirmam uma tendência repetida no setor nos últimos anos sem muito alarde.
Interpretar
um papel de transexual é uma vantagem no Oscar, no caso de intérpretes hétero
cuja sexualidade não esteja em dúvida. O fenômeno é semelhante ao de atrizes
bonitas que se enfeiam para um filme (Cameron Díaz, Nicole Kidman, Charlize
Theron, para dar alguns exemplos). Tudo começou com a brilhante Hilary Swank e
sua atuação em “Meninos não Choram”. Felicity Huffman não ganhou o prêmio por
seu papel em “Transamérica”, mas teve uma merecida indicação. Este ano foi a
vez de Redmayne. Nenhum desses três filmes, todos de grande qualidade, obteve
indicação como filme do ano. Não se quer premiar a bravura do diretor e dos
roteiristas, não se quer destacar a importância das histórias narradas.
Premia-se o valor de um ator por arriscar sua carreira, mesmo que por breve
período, na pele dos que estão, sim, à margem da indústria cinematográfica.
Fotograma de "A garota dinamarquesa". |
Não
deixa de ser um contrassenso ver como Cate Blanchett aumenta seu (merecido)
prestígio por interpretar uma lésbica, enquanto Ellen Page admite que ter saído
do armário vai lhe tirar muitas chances de conseguir um papel de mulher
heterossexual. Isso mostra a moral dupla de um setor tremendamente conservador.
Exemplos como o de Ellen Degeneres e Neil Patrick Harris, intérpretes
abertamente homossexuais de bastante sucesso, não desmentem a afirmação de
Page. Harris saiu do armário quando já tinha o papel que o tornou famoso na série
“How I Met Your Mother”, assim como Degeneres, com a longeva sitcom “Ellen”.
Desde que ambos expuseram sua sexualidade seus papéis na ficção diminuíram
drasticamente, mas eles se tornaram os apresentadores perfeitos para prêmios e
cerimônias do cinema. Não valem tanto para fazer parte do setor quanto para ser
a face visível dele quando premia outros. É isso que se repete neste ano com a
função do apresentador, embora ligada a outra minoria – nesse caso, racial.
Chris Rock representa tanto os negros
que não os representa
Falemos
agora sobre o grande paradoxo encarnado pelo apresentador do Oscar. Chris Rock
ficou sujeito a muitas críticas por participar da premiação, mas as queixas da
comunidade afro-americana contra o ator não começaram este ano. Elas vêm de
longe. Rock há muito tempo faz o papel de negro em suas atuações. Essa
afirmação, que pode parecer bobagem, tem um sentido interessante. Revendo sua
filmografia, vemos como se repete um padrão em seus papéis, sempre limitados a
preencher a cota racial, de ser o simples colega do branco, um hétero de
meia-idade que fica com toda a glória. É o que no jargão hollywoodiano é
conhecido como token black guy, o negro com sotaque dos subúrbios pobres que
nos filmes de ação solta frases espirituosas entre uma explosão e outra e que
nos filmes de terror morre esfaqueado nos primeiros 30 minutos. Esse personagem
padrão nasce da soma de estereótipos e parece mais ter sido criado por um
especialista em marketing do que por um roteirista.
Pense
nos papéis de Morgan Freeman na saga do Batman, de Samuel L. Jackson em “Pulp
Fiction”, e de Denzel Washington em “Dia de Treinamento”. Falamos de
personagens mais ou menos complexos, mais ou menos secundários, mas cujo leit
motiv, cujo motor na trama, vai além de ser somente um homem negro. Eles são a
antítese do token black guy, a antítese do modelo inócuo e politicamente
correto que Hollywood tenta empurrar. Sabe como é, tudo pelas minorias, mas sem
as minorias.