Maria Telvira é Pós-Doutora em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Professora do Departamento de História da Universidade Regional do Cariri (URCA). |
Qual
é a cor dos devotos de Padre Cícero? A constituição das romarias em Juazeiro do
Norte (CE) informa sobre um processo histórico que remonta o final do século
XIX. Tradicionais na região Nordeste, essas práticas são reconhecidas como um
dos maiores fenômenos religiosos do Brasil. Anualmente, estima-se que mais de
dois milhões de romeiros/as ocupem os espaços sagrados, valendo-se de um longo
ciclo de peregrinações. Diante da
expressividade numérica e simbólica dessas manifestações religiosas, interrogo
sobre a participação do povo negro nas romarias de devoção ao Pe. Cícero Romão.
Essa indagação remete à poesia-monumento
de Aimé Césaire: “Minha negritude não é uma pedra, surdez arremessada contra o
clamor do dia. Minha negritude não é uma mancha de água morta sobre o olho
morto da terra. Minha negritude não é uma torre ou uma catedral […]”.
Berço do Pe. Cícero – Momento de visita de romeiros no Museu Casa do Pe Cícero. Juazeiro do Norte (CE), s./d. Fonte: Acervo do Centro de Psicologia da Religião. |
Este
texto é fruto da pesquisa A cor da devoção: africanidade e religiosidade no
Cariri contemporâneo, realizada com recursos da bolsa produtividade da Fundação
Cearense de Amparo à Pesquisa
(FUNCAP-CE), desenvolvida entre 2017 e 2018, com desdobramentos em 2019 e 2020
durante o pós-doutoramento no Programa Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Ceará. As análises focalizaram as cidades de Juazeiro
do Norte e Crato (CE). As fontes utilizadas incluem documentos de arquivos
físicos e virtuais, 34 entrevistas orais, bem como dados resultantes da
aplicação de um questionário para 2.009
romeiros/as. Além disso, foi possível coletar informações com os/as
romeiros/as durante a realização de conversas, rezas, benditos, celebrações, as
narrativas de curas e de fé. A
interlocução com os/as devotos/as no tempo presente favoreceu a
articulação de temporalidades e de contextos históricos diversos.
Ao
longo da investigação a questão central observada diz respeito sobre o
silenciamento da identidade racial dos/as devotos/as. Situação que denomino de
as fronteiras do silêncio. Contudo, no percurso desta pesquisa, 74% dos romeiros/as entrevistadosas
se autorreconheceram negros/as (pardos e
pretos). Vale ressaltar que essa porcentagem ultrapassa o quantitativo do Brasil e do Ceará. No que tange às práticas devocionais, no
caminho aberto por Carlos Moore, podemos dizer que “ a cor não se presta a
dúvida”. Contudo, apesar das evidências, há reiteradas tentativas de apagamento
das faces negras nas romarias da região.
A
fim de desnaturalizar essa visão, eu dialogo com a perspectiva contra-colonial, de Antonio Bispo, que
enfatiza a necessidade de reconhecer as soberanias intelectuais,
alimentares, cartográficas e religiosas dos povos originários africanos,
chamados pelo autor de afropindorâmicos.
Essa abordagem favorece a emergência de novas interpretações sobre o passado e
o presente.
Negro zelador do Cemitério do Perpétuo Socorro. Fotografia: Roque Miranda. Juazeiro do Norte (CE), 1951. Fonte: Arquivo pessoal de Renato Cassimiro e Daniel Walker. |
Em
termos históricos desde os primórdios da tradição, beatos/as majoritariamente
negros/as participaram de forma ativa. Os registros mostram que eles/as desenvolviam
atividades de assistência religiosa na comunidade local. O que incluía, por
exemplo, acompanhar pessoas que estavam no leito de morte, bem como a realizar
cantos fúnebres conhecidos como as incelências. De igual modo, podiam exercer a
função de zeladores de cemitério. Também estavam envolvidos/as com ações que
visavam angariar recursos financeiros, como o pedido de esmolas para sua
própria sobrevivência. Essas práticas integravam parte significativa do
trabalho de caridade. O que incluiu a
participação negra nas missões humanitárias do Pe. Ibiapina no Nordeste da
década de 1870.
A partir do século XIX, ocorreram migrações
negras de todo o Nordeste para Juazeiro. Situação que favoreceu a constituição
de agenciamentos individuais e coletivos em torno das romarias. Dentre eles
destaco: a trajetória da Beata Maria de
Araújo, afilhada do Pe Cícero, que desde a adolescência dedicou-se à vida
religiosa, bem como a existência da comunidade revolucionária do Caldeirão,
liderada por José Lourenço.
Fotografias de beatos da História de Juazeiro do Norte. Juazeiro do Norte (CE). Fonte: Ciclo Operário Complexo da Matriz de Nossa Senhora das Dores – Exposição Temporária. |
Ademais,
ainda no século XVIII, o Cariri conheceu a formação de irmandades negras, sendo
a Irmandade do Rosário de Barbalha considerada a mais antiga. Essas
organizações eram formas de vivenciar religiosidades, de estreitar relações e,
sobretudo, de enfrentar as consequências da apartação racial, elemento fundante
da sociedade brasileira. Suas práticas coletivas atravessaram o século XIX e
chegaram até o século XX, conforme ocorreu com a Irmandade Penitentes Aves de Jesus e a Irmandade Penitentes da Santa Cruz do Deserto.
Pela
força do racismo, indivíduos e coletividades negras, além de apagados da
história, foram insultados pela elite, pela imprensa da época e pela própria
igreja como “rudes, atrasados,
delirantes, vagabundos e fanáticos”. Importante destacar que, mesmo tendo
suas ações desqualificadas como curandeirismo ou macumbaria, esses/as
sujeitos/as continuaram expressando suas devoções e participando da dinâmica
sociocultural do Cariri. Narrar suas
experiências é uma forma de promover reparação histórica, pois, conforme lembra
o historiador Michel-Rolph Trouillot, a história tem sido um discurso de poder
que se caracteriza pela produção da invisibilidade.
Nesse
sentido, é preciso combater aquilo que o autor chamou de o “poder da distribuição do registro”. A história que tem sido
considerada legítima sobre o Cariri subtrai as realizações, os fatos e as labutas
do povo negro.
Com
efeito, mesmo diante do silêncio historiográfico, do controle da Igreja e dos
preconceitos da sociedade, essas experiências negras atravessaram a cronologia
do silêncio, instituindo modos singulares de exercer a religiosidade. Para
isso, articularam sofisticados sistemas de memória e de vivências coletivas.
São histórias de reelaborações da existência cuja singularidade pode ser
expressas pela poética de Conceição Evaristo: “Meu rosário é feito de contas negras e mágicas. Nas contas de meu
rosário eu canto Mamãe Oxum e falo padres-nossos, ave-marias”.
Assista
ao vídeo da historiadora Maria Telvira da Conceição no Acervo Cultne sobre este
artigo: