Por César Pereira, Colunista
O ano de 1979 foi marcado por dois debates centrais
na cena política brasileira. No primeiro semestre, mesmo antes da eleição
indireta do general João Batista de Figueiredo para a presidência da república
já se discutia abertamente a necessidade de uma lei que garantisse anistia aos
brasileiros expurgados pela ditadura ao longo dos seus quinze anos de
existência.
A lei de anistia veio em agosto de 1979, esta
foi aprovada pelo congresso nacional ainda sob o controle da Aliança Nacional
Renovadora (ARENA) e com a participação do Movimento Democrático Brasileiro,
MDB (o partido da oposição consentida pela ditadura militar). A lei de anistia
foi sancionada pelo general-presidente em exercício no dia 28 de agosto e além
de anistiar os exilados e perseguidos pela ditadura militar, também garantia
anistia aos perseguidores, torturadores e esbirros a serviço do estado.
O segundo semestre de 1979 foi marcado pelos
debates políticos em torno da reforma política e partidária proposta pelo
regime ditatorial. Desde 1974, os grupos políticos que sustentavam a ditadura
viam o poder que haviam acumulado em suas mãos desde 1964 esvair-se aos poucos.
As eleições parlamentares de 1974 mostraram a insatisfação dos brasileiros com
os rumos que a ditadura estava dando ao Brasil. A ARENA saíra relativamente
derrotada pelo MDB, mostrando que o regime já não tinha apoio o apoio absoluto
do eleitorado urbano e de parte da classe média.
Na tentativa de se manter no controle do
parlamento os apoiadores do regime impuseram em abril de 1977 um pacote de
“reforma” eleitoral que criava a figura do senador biônico, isto é, um
parlamentar eleito indiretamente. A manobra garantiu ao governo do
general-presidente Ernesto Geisel a maioria no congresso nacional e desse modo
a ditadura ganhou sobrevida.
Em novembro de 1979 o governo conseguiu
aprovar a reforma política e partidária que almejava. A reforma
político-partidária extinguia a ARENA e o MDB, autorizando o retorno ao
pluripartidarismo, não foi uma sessão tranquila, os debates foram acalorados,
mas a base do governo se uniu e obteve a maioria. O país voltaria a ter vários
partidos nas disputas eleitorais, mas em meio a toda esta atmosfera de
reformismo político ficou evidente que a ideia da ditadura era fragmentar a
oposição reunida no interior do MDB e assim neutralizar seu crescimento
eleitoral.
Para impedir que sua base política também se
esfacelasse com o retorno do pluripartidarismo a ditadura lançou mão da escolha
indireta dos governadores dos estados, dos prefeitos das capitais e dos
senadores biônicos em 1978. Fortemente articulado com as elites políticas
regionais e nacionais o presidente-general João Batista de Figueiredo se
manteria no poder por seis anos e suas manobras políticas definiriam os rumos
que a democracia deveria tomar para retornar ao Brasil.
Enquanto as elites no poder e as bases políticas
da ditadura articulavam-se e rearticulavam-se para continuar no controle das
instituições republicanas, no estado do Ceará as oligarquias estaduais,
regionais e locais também se reorganizavam e se recompunham politicamente para
se manter no mando político e econômico do estado e dos municípios.
No final dos anos de 1970 e primeira metade
da década de 1980 o Ceará vivia ainda sob o comando dos “coronéis”, lideranças
políticas ligadas ao exército brasileiro e aos generais de Brasília que em
consenso com as elites de poder do estado e com as forças políticas da capital
da república comandavam o Ceará desde a década de 1960.
Em 1982 as primeiras eleições diretas para
governador realizadas após quase duas décadas no Ceará deram vitória ao
candidato dos “coronéis”. O político Gonzaga Mota foi eleito com o apoio de
Adauto Bezerra, Virgílio Távora e César Cals, as três grandes lideranças
políticas cearenses naquele momento. A eleição de Gonzaga Mota foi uma tentativa
dessas oligarquias manterem o “Acordo dos coronéis” intacto e evitar a
fragmentação do seu poder.
Ao longo do seu mandato o governador Gonzaga
Mota se imporia como um infiel aos pactos firmados com os “coronéis” e romperia
com estes tentando criar seu próprio grupo político. Sua atitude “independente”
levou-o a embates com os grupos políticos dominantes no Ceará e em Brasília,
então à medida que o governo Gonzaga Mota fracassava politicamente e
economicamente, novas forças políticas emergiriam no estado do Ceará.
A presença dessas novas forças políticas
ficou evidenciadas nas eleições de 1985 na capital Fortaleza. Nesse pleito foi
eleita prefeita Maria Luiza Fontenele do Partido dos Trabalhadores (PT), esta
eleição representou a primeira derrota do grupo politicamente hegemônico no
Ceará ao longo do período da ditadura-civil militar. Em 1986 a derrota dos
“coronéis” foi ampliada com a vitória de Tasso Jereissati para o governo do
estado do Ceará.
Em janeiro de 1985 nas eleições indiretas
para presidente da república foi eleito Tancredo Neves, o primeiro civil a
eleger-se para presidir o Brasil desde 1961. A morte de Tancredo Neves em abril
desse mesmo ano deixou o poder nas mãos de José Sarney, velho aliado da ditadura
militar, mas que agora assumia os compromissos do presidente falecido. José
Sarney se comprometeu a consolidar as instituições democráticas no país
garantindo a convocação de uma assembleia nacional constituinte, o fim da
censura e a dissolução dos aparatos repressivos da ditadura.
Pressionado pelos vários setores da sociedade
civil (igrejas, sindicatos, partidos, estudantes, imprensa), manteve o processo
de consolidação democrática e assim em 1986 foram realizadas eleições gerais
para a composição de uma assembleia nacional constituinte. Tais eleições foram
frutos das lutas dos brasileiros contra a ditadura e em defesa da participação
política de todos os cidadãos.
As eleições para assembleia constituinte de
15 de novembro de 1986 foram marcadas pela participação de uma parcela de
cidadão brasileiros que estavam excluídos da condição de sufragistas desde a
constituição de 1891, os não-alfabetizados. Pela primeira vez na história do
Brasil republicano pessoas que não sabiam nem ler e escrever tinham garantido
seu direito ao voto.
A extensão do direito ao voto estendida aos
eleitores analfabetos e aos menores de dezoito anos garantida respectivamente
pela emenda constitucional n° 25 de 1985 e pela constituição de 1988, ampliou o
número de pessoas aptas a votar em todo o território nacional.
Em Milagres, município do sul do estado do
Ceará, localizado na região do Cariri, as transformações políticas que vieram
ocorrendo na federação e no estado ao longo do período de 1974 a 1985 também provocou
estremecimentos e rearranjos políticos entre as elites locais.
Ao longo das décadas de 1960 e parte da
década de 1980 o poder político esteve nas mãos dos grupos oligárquicos que se
apoiaram na hegemonia dos “coronéis” do Ceará. A ligação dos políticos milagrenses
com os chefes das oligarquias cearenses, principalmente com o coronel Adauto
Bezerra a maior liderança política do Cariri nos anos em que vigorou o regime
militar, garantiu aos grupos que governaram Milagres mando político e econômico
fortemente alicerçado numa práxis política clientelista e autoritária.
Em 1988 o município de Milagres era um dos
mais pobres do Ceará, suas lavouras de cana-de-açúcar, mandioca, mamona e
algodão que outrora tinham sido importantes para a sustentação da economia
local, estavam em franca decadência ou já completamente extintas. A criação de
gado outra atividade produtiva igualmente fundamental para a vida econômica de
Milagres estava reduzida a alguns rebanhos nas mãos de grandes proprietários.
A concentração de terras nas mãos de poucos
fazendeiros garantia a concentração de renda dentro das famílias mais
tradicionais e mandatárias de longa data no município. Tanto o poder econômico
quanto o poder político em Milagres se mantiveram sob o controle de apenas
alguns grupos (famílias) que desde o século a república velha foram apenas se
alternando no poder municipal.
Tais famílias (Leite Furtado, Alves Pereira,
Coelho, Morais, Lins), ao longo do século XX, foram se alternado no controle da
política em Milagres, seus interesses econômicos eram notadamente oligárquicos
alinhados aos interesses das oligarquias hegemônicas do Cariri e do estado do
Ceará. Para garantir a manutenção do controle político do município e o
controle político das melhores terras do Cariri Oriental em suas mãos essas
famílias faziam acordos políticos entre si ou contrariam laços de parentesco
casando-se ou formando compadrios.
Desse modo o mando econômico e político no
município ficou sob a tutela dessas poucas famílias que se garantiam utilizando
os instrumentos de poder comuns a todas as oligarquias: o clientelismo, o
fisiologismo e a troca de favores. Ainda na última década do século XX, as
disputas de poder em Milagres ainda se encontrava nas mãos desses poucos
grupos.
Segundo o sr. Francisco Ivan Rodrigues,
trabalhador rural que em 1988 se elegeu o vereador mais votado de Milagres, a
forma dessas famílias conservarem seu poder no município foi principalmente a
prática do fisiologismo, segundo ele a escolha de amigos, familiares e
partidários para ocupar os cargos públicos nas gestões municipais era comum:
Naquele
tempo era nomeação. No tempo do prefeito Gilvan Morais ele nomeava, mas quando
entrava outro prefeito o empregado saía. Prefeitura não paga bem. Naquele tempo
nem pagava direito. Outro prefeito que nomeou muito foi Edimilson Coelho, mas
aí quando deixou a prefeitura quem ele colocou lá saiu. Era assim. Todo mundo
já sabia. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).
Essas nomeações eram feitas com o aval das
lideranças políticas do estado e até mesmo da federação. O sistema funcionava
em todo o estado e nos municípios mais pobres e cujo poder se concentrava nas
mãos de um pequeno grupo de elite ele era manipulado para garantir a
permanência dessas oligarquias na prefeitura ou para obter uma vitória
eleitoral.
No ano de 1988 o município de Milagres
possuía 23.267 habitantes, a relativa prosperidade obtida nas décadas de 1950 e
1970 com a cotonicultura já ficara no passado, a falência das lavouras
algodoeiras provocadas pela falta de investimentos, pelo cuidado com a terra e
principalmente pela praga do bicudo que arruinou a cotonicultura cearense
desencadeara o encerramento das atividades da indústria COLINS do município.
Na década de 1980 o desemprego e a
concentração de renda havia se tornado os principais fatores que lançavam
milhões de brasileiros na miséria, estes por sua vez somavam-se a crise
hiperinflacionária em que o país mergulhara devido a política econômica do
governo federal sob a tutela do ministro da fazenda Delfim Neto.
Nos municípios do Cariri cearense a pobreza
dos trabalhadores e suas famílias era alarmante, a estes grupos faltava o
básico para a garantia de sua sobrevivência. Além disso, essas pessoas
geralmente moravam em terra alheia arrendando roçados ou trabalhando alugado
nas lavouras de algum latifundiário.
As alternâncias políticas dos tradicionais
grupos de poder ligados as famílias oligárquicas da região em nada modificava a
condição do trabalhador nos municípios do sertão nordestino, do Ceará ou do
Cariri. Em Milagres a pobreza acentuara-se ainda mais na década de 1980, isto
é, a crise das lavouras de cana-de-açúcar, algodão, mandioca, a concentração de
terras nas mãos dos latifundiários e finalmente o controle da máquina
administrativa pelos tradicionais grupos políticos locais levou milhares de
trabalhadores do município e suas famílias para baixo da linha da pobreza.
Ao longo da segunda metade do século XX, mas
principalmente após as festas do centenário de Milagres, festas estas
realizadas no mês de agosto de 1946, a elite local que se aboletara no poder e
tomara posse das terras do município ainda no século XIX, começou a acalentar o
sonho de que Milagres se integrasse ao projeto “modernizador” e industrialista
que as elites de Crato e Juazeiro do Norte estavam pondo em práticas nestes
municípios.
Ao longo da década de 1950 e 1960, houve
tentativas por parte dos grupos políticos locais de captar para Milagres alguns
dos investimentos que o governo estadual e o federal estavam fazendo em Crato,
Juazeiro do Norte e Barbalha.
A instalação da subseção da Companhia
Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) na periferia de Milagres, a construção da
rodovia BR-116, margeando o perímetro urbano da sede municipal, a construção de
uma escola primária e de uma escola normal, a instalação de um posto de
puericultura do governo do estado do Ceará, a chegada de alguns equipamentos da
administração estadual e federal no município desencadearam um relativo
otimismo nesta elite local.
Acreditou-se neste período que Milagres
caminharia lado a lado com as principais cidades do Cariri em direção ao
desenvolvimento econômico, a modernização e a industrialização. Mas tudo isto
era ilusório, pois a cidade mantinha altos índices de miséria entre a sua
população trabalhadora em geral.
O sr. Francisco Ivan Rodrigues que nasceu nos
fins da década de 1940 vivenciou este aparente otimismo das elites locais,
filho de trabalhadores rurais pobres que haviam se empregado nas terras
alheias, segundo ele seu pai “Dé Rodrigues”, plantava nas terras cedidas pelos
grandes proprietários e o que colhia nestes roçados servia para pagar a “renda
da terra’ e alimentar a família:
...Meu
pai trabalhava na agricultura... [emociona-se ao recordar] ...Era eu e Nildo
[irmão], meu pai trabalhando na Fazenda Nova [terras de um grande proprietário
local, que foi prefeito municipal], as onze horas nós ia deixar o almoço dele e
ficava lá a tarde com ele. Na roça meu pai produzia milho e algodão. Algodão na
época meu pai plantava e vendia a seu Antenor [Antenor Ferreira Lins,
empresário local e prefeito municipal em dois mandatos], ele, seu Antenor
fornecia os inseticida e emprestava o dinheiro pra plantar o algodão, então era
de obrigação os agricultor vender a produção a ele. Emprestava semente e insumo
pro gado, no dia que a gente entregava a produção pra ele então ele fazia as
conta e entregava o salto pra gente. O juro que ele cobrava dos empréstimo era
a preço de banco, bem baratinho o juro. Milagres não tinha banco naquela época.
(Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).
O relato do sr. Francisco Ivan Rodrigues é
corroborado pelas informações da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros,
publicada em 1964, descreve-se aí com detalhes as características econômicas,
sociais e culturais dos municípios, sobre a economia de Milagres o texto
informa que:
Município
essencialmente agrícola, a maior parte da renda municipal provém da
agricultura, principalmente da cultura do algodão. Em 1955, a produção atingiu
16 milhões de cruzeiros. [...] 68.250 arrobas de algodão. [...] 5.280 sacas –
60 kg – de milho (Cr$ 2.275.000,00); (Disponível em www.ibgecidades.com.br).
Essa lavoura tão essencial a economia do
município de Milagres nas décadas de 1950, 1960 e 1970, será arruinada na
década de 1980 e desaparecerá completamente na de 1990. Observamos no
depoimento do sr. Francisco Ivan Rodrigues que o trabalhador rural estava
submetido a determinadas obrigações para com os detentores do capital e meios
de produção em Milagres.
Nesse caso, o empresário Antenor Ferreira
Lins entrava com o capital, isto é, emprestava o dinheiro para o trabalhador
comprar as sementes e cultivar a terra, também lhes vendia a prazo os insumos
agrícolas necessário a manutenção das plantações e a proteção da lavoura contra
pragas. O trabalhador em contrapartida se obrigava a entregar ao empresário a
safra para que este descontasse o valor do seu investimento e devolvesse a este
o saldo, isto é o lucro.
De acordo com o sr. Francisco Ivan Rodrigues
o lucro era apenas relativo, isto é, chegava para pagar as dívidas contraídas
ao longo do processo produtivo e sustentar a família. O sr. Francisco Ivan
Rodrigues testemunha que seu pai criou oito filhos com o seu trabalho de
agricultor.
Mas além de estar sujeito a este sistema de
empréstimos em dinheiro a juros através do empresário que ficava com a produção
ao final da colheita, o trabalhador também não era o dono do principal meio de
produção num município essencialmente agrário como Milagres, a terra.
No Cariri Oriental, sub-região do Cariri onde
se localiza Milagres a posse das terras agricultáveis estava nas mãos dos
grandes proprietários rurais, a família Rodrigues, como muitas outras famílias
de trabalhadores pobres da região não tinha a posse desse meio de produção e
por isso precisava encontrar os meios necessários para garantir sua
sobrevivência. O sr. Francisco Ivan informa que seu acabou cansando-se de
trabalhar na roça e migrou para a sede do município onde abriu bar:
...Quando
ele se cansou da agricultura botamos um bar. Arrendamos o prédio do ex-prefeito
Wilson Leite. Depois do bar arrendamos uma sorveteria, era a Sorveteria
Jamacaru, pertencia ao vereador Luís Jacó. O movimento era bom. Era bom porque
vinha de Fortaleza dois ônibus da Rio Negro para o Cariri, Juazeiro e Crato as
seis da manhã e outro pra Fortaleza as seis da tarde. (Francisco Ivan
Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).
A fala do sr. Ivan Rodrigues nos permite
concluir que não somente o dinheiro e as terras estavam nas mãos dos principais
grupos de poder locais, mas também os prédios comerciais. Na década de 1960
quando o entrevistado relata ter entre 15 e 16 anos o município de Milagres
possuía uma população predominantemente rural, isto é, dos 29. 596 habitantes
segundo o censo de 1950 apenas 2.297 moravam na sede municipal. No espaço
urbano havia apenas 880 prédios.
O senso comercial de 1960 registra a
existência de 4 estabelecimentos comerciais vendendo no grosso e 30 no varejo.
Havia também uma Cooperativa de Crédito Agropecuário que pelo depoimento do sr.
Francisco Ivan estava sob o controle do maior empresário local. O comércio que
era relativamente intenso estendia-se por meio de relações com as cidades de
Juazeiro do Norte, Campina Grande (PB) e Recife (PE).
A vida econômica das famílias dos
trabalhadores pobres em Milagres, como também em todos os municípios do Cariri
era sofrível, mesmo nas cidades cujos investimentos federais e estaduais eram
maiores como Crato e Juazeiro do Norte a miséria campeava.
Em Milagres o índice de analfabetismo da
população segundo o censo de 1980 era um dos maiores do Ceará. Segundo os dados
do IBGE, publicados no começo desta década em Milagres somente 15,62% das
pessoas que sabiam ler e escrever. Essa baixa escolarização dos trabalhadores e
seus filhos no município explicam-se por vários fatores: pobreza, o racismo, em
Milagres a maior parte da população era negra, a falta de escolas.
Há o fator do privilégio dado quase que
exclusivamente aos filhos das elites locais de frequentar a escola. Desde o
século XIX havia escolas particulares e professores públicos em Milagres, mas
estas escolas e estes professores eram postos a serviço dos filhos dos ricos da
região. Esses meninos quando atingiam certa idade eram encaminhados ao Crato,
Juazeiro do Norte, Cajazeiras, Recife, Campina Grande, Fortaleza para continuar
os estudos.
Os filhos dos trabalhadores pobres tinham
poucas oportunidades de estudo em Milagres. Na década de 1930 foi aberta uma
escola confessional das irmãs de Santa Tereza no município, mas aí eram
acolhidas principalmente as filhas das famílias ricas. Na década de 1940
construiu-se uma escola pública, mas não havia vagas para todos nesta escola,
além disso, muitos dos filhos de trabalhadores pobre precisavam ajudar no
sustente de suas famílias.
O sr. Francisco Ivan
Rodrigues nos deu um testemunho de como era difícil estudar em Milagres na
década de 1950 e 1960:
No
estudo e na criação havia muita dificuldade. Se a gente vinha da Gameleira
[zona rural distante 14 km da sede municipal], que nessa época eu vim morar na
Veneza [sítio da zona rural distante 10 km da sede], para ficar mais perto do
estudo que era no Rosário [distrito do município com cerca de 445 habitantes
nessa época], minha primeira escola foi no Rosário com Dona Santinha, a mãe de
Eudinha, ela foi minha primeira professora. Eu encontrava muita dificuldade.
Mas meu pai se dedicou a mim. Naquele tempo era fazendo o ABC. Era um quarto
muito pequeno onde estudavam uma faixa de 10 a 12 alunos, meninos e meninas. Eu
continuei os estudos, aí viemos morar aqui em Milagres e minha segunda
professora foi Dona Nazaré, uma professora muito religiosa e foi aí o primeiro
ponto de partida da minha vida. Esta escola funcionava improvisada no antigo
prédio da União. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).
Ter a oportunidade de se escolarizar em
Milagres era um privilégio de poucos, o sr. Ivan Rodrigues foi um dos poucos
filhos de trabalhadores pobres que conquistaram este direito. Segundo ele foi
graças ao esforço do seu pai, trabalhador da roça que se impunha a si a
obrigação de sustentar a família sozinho com o seu trabalho para garantir aos
filhos a oportunidade do estudo.
O sr. Francisco Ivan Rodrigues reconhece a
importância que a escola teve na sua vida, na sua fala podemos ver que ele
entende que a escolarização foi um ponto de partida para garantir que as
oportunidades que lhe viriam até as mãos nas décadas de 1970 e 1980 fossem
devidamente aproveitadas. Tendo tido a condição e a ajuda paterna para se
escolarizar Ivan Rodrigues pode entrar em contato com uma parte do mundo social
e político de Milagres que permaneceria vedado aos outros filhos de trabalhadores
pobres que não tiveram a possibilidade de frequentar as escolas.
A década de 1970 marcou no município de
Milagres a consolidação da política de alternância no poder dos grupos
oligárquicos locais alinhados com o “acordo dos coronéis” do Ceará. Ao longo desta
década e da década seguinte, 1980, os mesmos nomes foram se revezando no poder
municipal. Este revezamento garantiu que esta elite local assumisse não somente
a posição de mando político, mas também o controle econômico no município.
Segundo o sr. Francisco Ivan
Rodrigues a cidade de Milagres era parada, o comércio era fraco, e havia muita
dificuldade econômica:
...Milagres
era cidade fraca, as coisas tudo muito difícil, comércio fraco, era tudo muito
parado, tinha budega, tinha feira, lá vendia farinha, arroz, feijão. Existia a
budega de seu Zé Vieira, era mais movimentada. (Francisco Ivan Rodrigues,
Entrevista I, setembro de 2021).
Esse depoimento expõe uma realidade que a
elite de Milagres procurava ofuscar, pois os grupos de poder que ocupavam o
mando no município estavam constantemente imersos nos devaneios de progresso e modernidade
da cidade. Acreditava-se que as alianças que estes mandatários entretinham com
os potentados oligarcas do Cariri, principalmente aqueles que estavam no
controle da política cearense traria benefícios ao município.
Evidentemente que estes benefícios caso
viessem não seria para beneficiar os trabalhadores pobres de Milagres, mas
seriam um meio de garantir a permanência da ordem social oligárquica na cidade.
Assim, a medida que alguns equipamentos estaduais e federais foram sendo
instalando em Milagres, os postos de emprego foram logo sendo distribuídos entre
os parentes, amigos e partidários das elites de poder local.
Tradicionalmente a vida política do município
esteve sempre sob o controle dos mesmos grupos, tais famílias como se disse
acima pactuaram entre si uma alternância de poder apenas entre elas, isto é,
não havia espaço para outros interesses políticos que não fosse aqueles
compromissados com a manutenção das alianças oligárquicas do Vale do Riacho dos
Porcos.
Manter o controle sobre as terras, os
repasses federais e estaduais, as verbas do estado e do governo federal e dos
empregos era o único interesse dessas elites de poder em Milagres e igualmente
em todo o Cariri. A atuação apenas pontual e praticamente eleitoreira na vida
social e econômica da população pobre objetivava evidentemente manter as
classes trabalhadoras sob o julgo oligárquico e sem dúvida essas elites foram
muito bem-sucedidas em Milagres, pois no limiar do século XXI elas ainda se
mantinham no poder e muito mais intensamente do que antes.
Nas décadas de 1980 e 1990 o clientelismo e o
fisiologismo se fizeram tão intensos na política do município que os eleitores
ficaram reféns da troca de favores com o gestor municipal. Durante quase três
décadas praticamente não houve mudanças de governo na gestão do município de
Milagres, isto é, um grupo de poder assumiu o controle da política do município
em 1988 e nele se manteve fazendo sucessivos arranjos e rearranjos internos sob
a complacência das lideranças políticas do estado do Ceará.
As eleições municipais de 1988 foram
realizadas no 15 de novembro e ocorreram logo após a promulgação da
“constituição cidadã”. Quando este pleito se deu o país estava imerso nos
apaixonados debates dos parlamentares constituintes e a sociedade brasileira
estava inebriada com os sonhos de uma democracia sólida e moderna.
Acreditava-se que a nova constituição e a Nova República acabariam com o velho
Brasil tecnocrata, clientelista, corrupto, fisiologista, que as práticas
políticas arcaicas iriam ficar no passado.
As eleições municipais seriam um ensaio para
as eleições presidenciais de 1989 e sem dúvida mostrariam uma democracia
renascida e forte. Foi assim que a mídia e o governo federal venderam a imagem
das eleições municipais de 1988. Mas logo ficou evidente que as continuidades,
as práticas eleitorais e eleitoreiras arcaicas eram mais fortes que os artigos
da constituição federal.
Em 1982 o político Francisco Gilvan Morais foi
eleito pela segunda vez prefeito de Milagres numa eleição acirrada que lhe deu
a vitória com pouco mais de cem votos de diferença para o segundo lugar, o
médico Helosman Sampaio de Lacerda. No entanto essas disputas eleitorais não
eram entre lados com dois projetos diferentes para a administração municipal, o
que se percebe é que na impossibilidade de conciliar seus interesses pessoais
de poder os grupos se fragmentaram, isto é, o PDS (Partido Democrático Social),
herdeiro das bases da ARENA e que será o abrigo dos aliados da ditadura e dos
‘coronéis” do Ceará, dividiu-se em Milagres em três blocos: PDS – 1 que ficou
sob a liderança de Francisco Gilvan Morais, PDS – 2 que lançou Helosman Sampaio
de Lacerda candidato e PDS – 3 que trouxe o nome de Edmilson Coelho Pereira
para a disputa.
Esse bloco de poder obteve 95% dos votos,
votos estes que deu a vitória a Francisco Gilvan Morais com 2.538 votos. Tanto
o prefeito eleito quanto o candidato Helosman Sampaio de Lacerda que ficara em
segundo lugar, como também Edmilson Coelho Pereira que obteve 924 votos
provinham dos mesmos grupos de poder que comandavam o município desde as primeiras
décadas do século XX.
Eram membros das tradicionais famílias de
Milagres, detentoras de terras, casas de comércio, fazendas de gado e que
vinham monopolizando a política municipal ao logo de boa parte do século XX. O
sr. Francisco Ivan Rodrigues que se colocara nas eleições de 1982 ao lado do
grupo de Gilvan Morais, recorda-se de como se davam das disputas eleitorais no
município:
A
política? Em Milagres? Antes de eu entrar? Era acirrada. Tinha dois partidos
UDN e PMDB [MDB), depois foi que mudou, ficou sendo PSD que era a UDN e PMDB.
Da UDN era seu Antenor e seu Sandoval, tinha Gilvan Morais que foi mais na
frente um pouco e tinha Edmilson Coelho que foi do PSD. Orlando Sobreira do
PMDB, antigo PMDB [isto é, MDB], aí foi depois que chegou lá em Helosman no
PMDB. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).
Essas composições partidárias a qual alude o
sr. Ivan Rodrigues serviam para abrigar os interesses de poder e econômicos dos
grupos oligárquicos hegemônicos nos municípios do Cariri. O UDN (União
Democrática Nacional) que foi o partido dissolvido em 1965 vai compor boa parte
do ARENA onde se abrigarão os políticos ligados ao regime militar e aqui no
Ceará aos “coronéis”.
O ARENA elegeu em Milagres todos os prefeitos
de 1966 a 1976: Elísio Leite (1966 – 1970), no mandato deste prefeito todos os
vereadores eleitos em Milagres pertenciam somente ao ARENA. Em 1970 não houve
disputa eleitoral em Milagres, pois o farmacêutico, proprietário rural e
comerciante Edmilson Coelho Pereira concorreu sozinho ao cargo de prefeito. Foi
eleito com 2008 votos e seu partido o ARENA elegeu todos os vereadores.
O sr. Ivan Rodrigues descreve o prefeito
Edmilson Coelho descreve-nos este político:
Ele
era um prefeito bom não perseguia ninguém, não construiu muito porque a verba
era pouca, mas fez alguma coisa pelos correligionários. Criou algumas obras,
deu emprego pra quem pedia. Mas não tinha muito emprego. Tinha muita briga
política, mas dr. Edmilson era uma pessoa calma. Não entrava nas disputas,
acalmava. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).
Essas conciliações eram fundamentais para
garantir o revezamento de poder dentro do mesmo grupo, quando na década de 1980
elas se tornarem impraticáveis as disputas internas criarão outros arranjos
políticos em Milagres, evidentemente que tais arranjos não significarão que o
poder tenha efetivamente trocado de mãos, mas que dentro desses grupos
tradicionais de interesses novos atores foram surgindo e exigindo para si o
protagonismo político.
Nas eleições municipais de 1972 mais uma vez
o ARENA venceu mais uma vez elegendo Francisco Gilvan Morais com 1.452 votos,
mas o MDB – 1 cujo candidato foi Orlando Sobreira obteve 880 votos e o MDB – 2
obteve 324 votos para o candidato Manoel Alves Grangeiro. Todos eles provinham das famílias ricas e
donas de terra e gado no município.
O MDB, que era o partido de oposição
consentida pela ditadura fragmentou-se em dois blocos de interesses e não
chegou a representar uma séria ameaça para Gilvan Morais e seu bloco arenista
que contava com o apoio do coronel Adauto Bezerra. Nesse pleito municipal o
ARENA obteve seis vereadores e o MDB elegeu José Severino do Nascimento para
uma das sete vagas da câmara municipal.
No ano de 1976 o MDB de Milagres se
fragmentaria mais ainda e se subdividir-se-ia em três blocos, o ARENA
conciliado alcançaria a vitória de Elísio Leite como prefeito e Edmilson Coelho
Pereira como vice-prefeito além disso, o partido governista de direita elegeria
todos os vereadores, a tática de dividir os adversários utilizada em 1972 por
Gilvan Morais e seu grupo e agora ampliada consolidava o poder das elites
locais no município.
A reforma político-partidária de 1979
dissolveu a ARENA e o MDB, mas o PDS, partido fundado pelos aliados do
presidente João Batista de Figueiredo em janeiro de 1980 abrigaria os
interesses da direita brasileira e seus anseios de continuísmo tanto na
federação, quanto nos estados e município.
A transição da ditadura para a democracia
projeto político empreendido pelo presidente da república com apoio das forças
conservadoras deveria ser efetivado de maneira a não permitir que houvesse
rupturas bruscas na estrutura política nacional. No estado do Ceará, essa
transição deveria realizar-se de modo a garantir a conservação do poder nas
mãos das oligarquias estaduais. A eleição de Gonzaga Mota em 1982 para o
comando do estado com o apoio dos “coronéis” foi uma tentativa de preservar as
bases e apaziguar os possíveis dissidentes.
No entanto, o caminho tomado pelo governador
Gonzaga Mota que foi o de afrontamento, enfrentamento e autonomia com relação
aos “coronéis” levaram seu projeto político ao fracasso e possibilitou que um
novo grupo político do estado do Ceará, agora liderado pelos jovens empresários
Tasso Jereissati e Ciro Gomes emergissem como forças políticas.
As eleições estaduais de 1986 representaram a
chegada ao poder da chamada “Geração Cambeba”, líderes políticos ligados ao
setor industrial do Ceará que fizeram sua carreira política na década de 1980 e
1990 sustentados pelo discurso da modernização na política (contra os
coronéis), a modernização do estado e o avanço da economia cearense voltada
prioritariamente para o setor industrial e de bens e serviços.
Em 1988 a ditadura já desmoronara e o Brasil
voltara a ser uma democracia, promulgara-se uma nova constituição, pessoas
não-alfabetizadas haviam ganho o direito ao volto, pairava na alma pública o
sonho de um país democraticamente forte e uma república moderna. Portanto foi
num clima de otimismo que os brasileiros foram as urnas para eleger os
prefeitos no dia 15 de novembro daquele ano.
Segundo o sr. Ivan Rodrigues o prefeito
Francisco Gilvan Morais eleito em 1982 pelo PDS – 1 havia sido um bom gestor:
Gilvan
Morais pra educação foi um dos melhores prefeitos, construiu muito grupo
escolar. Gilvan Morais conseguiu muito calçamento, ele também conseguiu por
meio de Adauto Bezerra a COELCE, o BEC, o BEC também teve a ajuda de seu
Antenor Lins. Ele fez muita obra na periferia. Gilvan ele fazia obra. Gilvan
fez uma escola no Valdivino, na Unha de Gato e Triângulo, recuperou as praças.
Ele gostava de construir. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de
2021).
No depoimento do sr. Francisco Ivan Rodrigues
transcrito acima ele descreve o prefeito Gilvan Morais como um construtor, um
fazedor de obras. Esta será uma prática política comum no Brasil das décadas de
1970 e 1980. Os administradores públicos serão avaliados pela quantidade de
obras que construírem durante seu mandato. Mas enquanto os investimentos em
obras e o empenhamento de verbas públicas para a execução destas obras serviam
de instrumento para consolidar este ou quele prefeito como um bom gestor, os índices
sociais, educação e saúde principalmente, bem como o aumento da miséria eram
deixados em segundo plano.
No começo desta década de 1980 a crise da
lavoura algodoeira e canavieira que eram as principais bases da economia de
Milagres já estava em franca decadência, o cultivo de cereais como milho,
arroz, feijão que haviam sido muito importantes pelos menos até a década de
1970 já não apresentava o mesmo volume produtivo, a concentração de terras nas
mãos de um pequeno grupo de famílias ricas mantinha milhares de trabalhadores e
suas famílias na miséria.
O censo agropecuário de 1980 mostra a
concentração das terras de Milagres nas mãos desse pequeno grupo de
proprietários. Segundo os dados deste censo em Milagres apenas 1.137
estabelecimentos rurais estes estavam nas mãos de apenas 1.036 proprietários,
mas a população economicamente ativa do município era de 14.300 pessoas em sua
grande maioria vivendo na zona rural.
O efeito desta concentração de terras e
renda, desta concentração do principal meio de produção para uma população
eminentemente rural, isto é, a terra, será terrível, pois conduzirá milhares a
sobreviver abaixo da linha da pobreza.
Sem terras e sem perspectivas de empregos e
renda num município pobre do interior cearense os trabalhadores de Milagres
procurarão migrar para outras regiões e estados do Brasil. Intensifica-se nessa
época a prática dos trabalhadores do sexo masculino, arrimos das famílias
pobres deixarem sua prole e esposas vivendo na zona rural ou na periferia do
município para irem cavar o sustento de sua família no Sudeste ou Centro-oeste
do país.
Apesar da construção de mais de uma dezena de
escolas testemunhadas acima pelo sr. Francisco Ivan Rodrigues, na zona urbana e
na zona rural do município ao longo dos seis anos de mandato do prefeito Gilvan
Morais o analfabetismo em Milagres regrediu pouco entre 1980 e 1990.
No começo da década de 1970 o percentual de
pessoas não-alfabetizadas em Milagres era de 81% e pelos dados do censo de 1990
esse índice era de 72,5, em duas décadas a queda nos índices de analfabetismo
do município foram baixos e isto representava um déficit social enorme e um
grave problema. Este alto índice de analfabetismo agravava ainda mais as
condições de pobreza dos trabalhadores e seus filhos, pois sem a devida
escolarização ficava difícil estes saírem do círculo da miséria.
A baixa qualidade de vida da população pobre
do município refletia-se igualmente nas precárias condições de saúde pública. A
mortalidade infantil era alta, os dados coletados informam que de cada 1000
crianças nascidas vivas em Milagres pelos menos 45 não chegavam aos cinco anos
de idade. A população pobre estava privada dos serviços básicos de saúde,
também não havia abastecimento regular de água nem na zona urbana e tampouco na
zona rural.
A renda média do trabalhador no município de
Milagres de acordo com o senso de 1990 era de aproximadamente NCz$ 650,00
mensais, nesse mesmo ano o salário-mínimo foi fixado pelo governo federal em NCz$
1.283,95, isto significa que a maioria dos trabalhadores do município
sobrevivia com menos de um salário por mês, levemos em consideração de que
neste período o país passava por uma terrível crise hiperinflacionária que
corroía a renda desses trabalhadores mais pobres.
Foi neste contexto de pobreza, concentração
de renda, decadências das lavouras, altos índices de analfabetismo e
mortalidade infantil que as eleições de 1988 foram realizadas em Milagres.
Com o fim da ditadura em 1985 e a derrota dos
“coronéis” do Ceará, devido a vitória eleitoral da “Geração Cambeba” em 1986,
algumas reordenações partidárias haviam sido feitas nos municípios cearenses e
evidentemente também em Milagres.
A vitória de Tasso Jereissati em 1986 para o
cargo de governador do estado do Ceará através de uma campanha de franco ataque
aos “coronéis” que haviam governado o estado por mais de duas décadas criou uma
atmosfera de otimismo nos setores progressistas cearenses. Logo o discurso da
“mudança” e da modernização das práticas políticas foi adotado por vários políticos
em todo o estado.
Foi seguindo o modelo de campanha adotado por
Tasso Jereissati que o médico Helosman Sampaio de Lacerda apresentou mais uma
vez sua candidatura ao cargo de prefeito municipal de Milagres em 15 de
novembro de 1988. Sua campanha foi pautada pelo discurso da mudança,
apresentou-se como a renovação da política em Milagres e como um novo fôlego
para o combalido município caririense.
Nesse pleito o grupo político do prefeito
Gilvan Morais apoiou a candidatura de outro médico de Milagres, Fernando Alves
Tavares, este lançou-se candidato pelo PMB (Partido Municipalista Brasileiro).
Numa disputa que até hoje é rememorada pelos que dela participaram como a mais
acirrada do município, Helosman venceu com 5.288 e Fernando Tavares obteve
5.131 votos.
O médico Helosman formara aliança com o
ex-prefeito Edmilson Coelho Pereira que aceitou compor a chapa do PMDB como
vice-prefeito. Essa aliança mostrou-se decisiva, pois segundo aqueles que
participaram da campanha fortaleceu a candidatura de Helosman que viu no
farmacêutico e ex-prefeito um aliado de significativa importância para
conquistar o comando do município.
Nesse pleito de 1988 o sr. Francisco Ivan
Rodrigues se elegeria o vereador mais votado de Milagres. A sua vitória nas
urnas segundo ele foi uma conquista pessoal, pois fora sempre um trabalhador,
um homem humilde que proviera da roça e agora chegava à câmara municipal
reconhecido pelos eleitores como alguém digno da confiança deles.
Além do seu trabalho e da sua humildade, o
sr. Francisco Ivan Rodrigues afirma que um dos maiores responsáveis por sua
eleição foi o então prefeito Francisco Gilvan Morais de quem ele e sua família
era aliado. O sr. Ivan recorda-se que co começo da década de 1980 seu pai que
era próximo ao empresário e político de Milagres o sr. Antenor Ferreira Lins
solicitou deste um emprego público para o filho.
Obtendo este emprego ele, na época com seus
quase trinta anos vai fazendo os amigos necessários para conquistar a confiança
dos chefes políticos locais e estima dos grupos de poder que gravitavam em
torno destas lideranças regionais:
Nessa
primeira campanha minha eu trabalhava lá em Arineuma, lá no Lions, eu era
porteiro. Aí eu comecei lá no Lions, meu pai muito amigo de seu Antenor, aí
Arineuma conseguiu me levar pra lá, onde eu ajudava muito as pessoas. Quando o
povo viu meu trabalho lá no Lions. Eu com meus 20 a 30 anos eu trabalhei com
tudo. Gilvan Morais me chamava pra fazer telha e tijolo lá em Cipriano, aí tinha
uma porcentagem pra mim. Eu ia sempre ajudando quem me procurava E eu lá na
escola Geciana e Eva me incentivaram a me candidatar a vereador, eu disse que
não tinha dinheiro. Aí Arineuma disse que ia falar com o pai dela para me
apoiar e então o pai dela falou com seu Gilvan Morais. Eu comecei a trabalhar
com Gilvan Morais em 1976, ele era prefeito, mas eu não era ainda vereador, mas
eu estava do lado dele. Quando ele foi eleito eu trabalhei com ele. Quando
falaram com ele seu Gilvan Morais me chamou e disse que tinha recebido uma
verba pra construir noventa banheiros. Pra construir esses banheiros na
periferia ele chamou os vereadores dele, disse que ia dar a cada dez ordens da
construção de banheiro, mas aí esses vereadores que eu não quero citar o nome
não aceitaram porque queria mais ordem. Então ele me deu essas ordens e eu
comecei a escolher na periferia quem é que precisava desses banheiros. Fui
então trabalhando, aí as pessoas começaram a falar no meu nome e foi assim que
Gilvan Morais disse – “você vai ser meu candidato” – eu disse pra ele que não
tinha dinheiro pra concorrer, mas seu Gilvan Morais disse que ia me ajudou e
ajudou muito, me deu camisa, me deu o dinheiro pra campanha. (Francisco Ivan
Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).
O depoimento do sr. Francisco Ivan Rodrigues
testemunha a carência em que vivia a população do município e como essa falta
de meios que lhes garantisse alguma segurança econômica ou qualidade de vida
era utilizada como moeda de troca eleitoral.
A troca do voto por um favor ou um valor em
dinheiro muito comum segundo o próprio sr. Francisco Ivan Rodrigues nesta
eleição, mas principalmente nas eleições posteriores de Milagres tornou-se uma
tática da população para auferir ganhos, isto é, lucrar de alguma maneira com
as disputas de poder pelos grupos oligárquicos locais.
A configuração que as disputas de poder
assumiram nos municípios brasileiros no século XX e principalmente no período
da ditadura militar obrigava a população a criar estratégias de trocas entre
eles e os políticos. Segundo o sr. Ivan Rodrigues em sua primeira eleição de
1988, não precisou gastar com nada, o eleitor se comprometeu em votar nele e o
elegeu, mas nos anos seguintes ele observou as eleições ficarem cada vez mais
caras, à medida que o gestor municipal passou a governar exclusivamente através
da troca de favores (consultas médicas, empregos, ajudas em dinheiro, aluguéis,
distribuição de cestas básicas), o eleitor passou a barganhar cada vez mais
vorazmente com seu voto:
...depois
o povo só votava se desse dinheiro. Em 92 para a eleição de prefeito correu foi
muito dinheiro. Um candidato andava nas casas e deixava o dinheiro com o
marido. Depois foi que se percebeu que a mulher também queria receber, aí se ia
lá mesma casa e entregava mais dinheiro a mulher, então a mulher fazia uma
briga e dizia pro marido que não votava no político dele. Foi assim que a
campanha aconteceu, o eleitor mudando de lado por causa do dinheiro. Mas em 88
já tinha sido parecido. Teve muito dinheiro nessa campanha. Veio um político de
Mauriti e investiu muito dinheiro aí conseguiram vencer. Depois com esse
negócio de querer ficar na prefeitura governando né dar nisso, tem que ter
dinheiro. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).
O que se percebe é que o eleitor
desacreditado na possibilidade de obter qualquer ganho político daqueles que se
apresentavam como seus representantes passaram a agir de forma a aproveitar-se
das eleições para impor aos grupos em disputa seu “valor”. Era comum segundo o
depoimento do sr. Ivan Rodrigues que no dia da eleição após votar os eleitores
se cumprimentarem na rua com a seguinte frase: “Já fui votar e perdi meu
valor”.
Lucrar com o voto, ainda que provisoriamente
e impor aos donos do poder seu valor de eleitor ainda que de forma relativa por
meio dessas trocas de favores e dinheiros passou a ser comum em Milagres e nas
outras dezenas de municípios do Cariri e do Ceará. Dessa forma estabelecia-se
entre o eleitor e o político pleiteante a um cargo público um acordo que era
firmado através da frase: “me ajude que eu te ajudo.”
Eleito vereador nas eleições de 1988, as
eleições que representaram a pulverização da prática de revezamento no poder
dos chefes das oligarquias locais, o sr. Ivan Rodrigues conta que todo o seu
mandato foi dedicado a ajudar o povo. Sendo vereador de oposição ao prefeito
eleito ele tratou de fazer sua parte como fiscalizador das obras do gestor:
Eu
tinha Geraldo César do meu lado, era um pequeno empresário de Milagres que me
ajudava dando as coisas quando eu precisava. Eu era oposição a Helosman porque
toda vida eu fui aliado de seu Antenor e eu não gostava de faltar com a minha
palavra. Quando eu dava minha palavra pronto. Nós fazia só fiscalizar, eu e
Lacordaire, Marco Aurélio, a gente fiscalizava. Alguém dizia êi! O prefeito tá
fazendo uma estrada lá no Valdevino e a gente ia lá fiscalizar, se tinha
irregularidade a gente denunciava, não dava em nada, mas a gente fazia esse
trabalho de denunciar a corrupção. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I,
setembro de 2021).
No seu depoimento afirma que continuou seu
trabalho de ajudar quem precisava, o mesmo que já vinha fazendo desde que havia
começado a trabalhar com Francisco Gilvan Morais. Agora o seu mandato de
vereador seria segundo ele usado para ajudar quem procurava ele. E numa cidade
carente de serviços básicos e onde a maior parte da população vivia sob o mando
de grupos de poder que desde muitas décadas utilizavam a troca de favores para
se garantir no mando as pessoas pobres passaram a procurá-lo intensamente. O sr.
Ivan Rodrigues afirma que não conseguia dizer não a quem o procurava, percebia
que ‘um pai de família ou mãe de família era carente, então dava a ajuda que
eles precisavam.’
Para demonstrar que não ganhou nada sendo
vereador durante os oito mandatos consecutivos ele nos expõe sua declaração de
bens ao TSE. Afirma igualmente que quando entrou para a política tinha gado e
que este foi reduzido hoje a algumas “cabeças”. Vendeu também terras e nunca
utilizou o seu salário de vereador para comprar uma casa ou melhorar sua
moradia, comprar carro, pois até hoje seu único meio de transporte é uma velha
bicicleta.
O seu salário de vereador era usado quase
integralmente para ajudar quem procurava ele, pessoas que precisavam da sua
ajuda:
...pode
olhar, eu sou o único vereador que não tem nada, que não conseguiu nada com o
mandato. Pergunte a Zé Crente, meu cunhado, é dono da oficina, ele vai dizer,
ele ainda diz –“Ivan tinha era muito gado, o gado dele fechava uma rua”. – Hoje
eu não tenho mais. O que eu tenho eu comprei com o meu trabalho aqui na escola.
Mas eu ajudava muito as pessoas, elas precisavam muito, então eu ajudava. (Francisco
Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).