15 de junho de 2025

Banhos de rio

 

(FOTO | Reprodução | WhatsApp).

Por César Pereira, Colunista

De repetente num susto fui arrastado de dentro do sono pelo súbito mugido da vaca e este foi o meu primeiro respiro naquele dia. Abri os olhos e ainda sentindo o gosto do sono puxei o lençol até a altura da cabeça e me encolhi sobre a cama para gozar por alguns instantes mais a imobilidade tranquila e silenciosa da casa.

Pouco depois me convenci de que não precisava mais dormir e os sons amanhecidos foram todos entrando dentro do quarto. Espichei a cabeça para fora do lençol e me revirei na cama, meus olhos agora estavam abertos percorrendo as paredes, o teto e as frinchas das telhas por onde a luz do dia começava a entrar. Assim eu era o menino que descobria que as coisas quando tocadas pelo sol começavam a viver e que atrás da casa a vaca também tinha sido percutida pela manhã.

Eu. Agora eu sabia que o pai já estava no curral e que a mãe já tinha acendido o fogo e posto a cinza pra fora. Era o que eu sabia. Então me estirei completo na cama afastando totalmente de mim o lençol ensopado de sono e cansaço, com esforço me preparei para se levantar, mas não assim tão imediato, pois fiquei um pouco mais à espreita deitado sobre a cama.

Lá longe ouvi outra vez a voz rouca da vaca, mas agora ela já tinha se acovardado e chamava para dedilharem o seu leite. Eu via que a manhã subia pelas telhas, avançava pelas frinchas forçando a entrada no quarto, inundando o cômodo de luminosidade. Pisquei os olhos para ver a luz sem nenhum empano, estremunhei largo e longo para espantar a preguiça, sentei-me na cama e arrastei as pernas para perto do corpo, apoiei a cabeça nos joelhos e assim calmo e assim acordado respirei o ar parado ali, depois como quem se decide num temor de voltar atrás pulei da cama e me imobilizei parado no meio do quarto.

Aí me deu aquele frio, me deu uma tremura no corpo, um arrepio nos pelos, era que eu já estava sentindo o cheiro do sol, aquilo vindo e eu ficando embrulhado, pesado e com ânsia. Caminhei até a parede e me encostei seguro lá.

A parede era um muro, a parede era uma pedra onde eu me amparava e onde minhas mãos seguravam o certo. Encostado na parede me imobilizei mais, virei estátua, virei pedra parada, só respirando pra dentro.

Então ouvi um grilo que dizia gri – gri – gri – griiiiii num canto escuro do quarto. Atrás da mala, debaixo da cama, numa greta do reboco. Onde aquela corda? E eu que não tinha ouvido nada antes da minha atenção completamente voltada para o ponto? Certamente não tinha ouvido antes. Aquele grilo não tinha cantado toda a noite porque ele era um grilo que sabia, ele era um desses grilos sabentes.

E assim como eu precisava dormir e ele era um grilo que sabendo das coisas que acontecem num quarto onde há um homem dormindo, ele recolheu sua voz até que me viu acordado e veio a vontade de cantar e voltar a ser grilo e voltou a ligar a sua máquina de chirriar.

Toda a minha atenção estava voltada para o grilo, para o lugar exato da máquina, tive a ideia, podia ser a minha primeira caçada. Onde a caixa de fósforo? Eu teria finalmente minha própria máquina de música guardada no bolso. Não, isso eu não quero agora, não posso, nem devo de. Nunca teria tempo para isto porque num instante de iluminação eu soube que era sábado e o pai e eu já havíamos estabelecido nosso sábado feliz.

Era que eu tinha me imaginado esquecido do sábado para poder dormir tranquilo ontem. Mas não tinha esquecido nada, pois aquela não era uma promessa, e o dia era sábado, e eu e o pai desceríamos pro banho de rio.

Saí do quarto e atravessei toda a casa. Passei pela cozinha e ali a mãe.

Afinal você acordou, vem, toma teu leite primeiro. — Eu não parei, não olhei para a mãe, sai pela porta da cozinha onde uma manhã limosa me recebeu nos braços, me cobriu com os finos raios de sol.

Sem mistério eu dei a volta na casa e entrei no mictório.

Lá dentro segurei o quanto pude a respiração para não me angustiar com o odor pegajoso de urina e sabão. Então mirei certo e urinei grosso e compassado, o líquido atravessando aquela minha entranha e respingando as paredes.

Quando acabei o feito, tomei a toalha-de-banho e voltei calado para a porta da casa. Era tempo, pois a mãe vinha lá de dentro trazendo o leite intenso e branco e um prato com biscoitos doces. Aquela mãe era uma pessoa boa e eu sempre aprendendo com ela a arte de ter nas mãos uma chave pra abrir uma alegria ou um prazer.

Eu, o menino recebo o alimento e enquanto como espero a vez do pai.

O pai veio vindo lá de trás da casa. O pai é grosso e escuro, os espessos anéis dos cabelos em desalinho, ele vem e para diante mim, surpreso, as mãos grossas num imenso corpo, num espesso tronco. Entrega o balde de leite pra mãe, acabo rapidamente de comer o último biscoito e de tomar o resto do leite.

Num só instante o pai entra na casa, caminha lá dentro, toma objetos nas mãos, pisa no chão com os pés duros e certos, depois volta para fora com toalha e sabão.

Então molenga, você não vem — fala o pai.

Eu me levanto sacudindo os restos de biscoito e sigo o pai pela vereda do rio. Caminhamos os dois pelo caminho do campo seguindo para onde lá adiante é o rio. Aqui a terra é doce, pois é molhada e cheirosa. A chuva tinha aberto os poros do chão e isto acordara as minhocas que se arrastavam apavoradas temendo a chegada das galinhas que já se afastavam da casa se aventurando naqueles pastos de abundantes sementes e minhocas distraídas.

Meus pés pisam o barro, pisam a terra e as folhas de relva que a chuva molhou com suas línguas. O pai vai na frente, mas eu vou atrás do pai para poder segui-lo. Então eu vejo uma vida em perigo e me abaixo para ajudar.

É uma minhoca. Me agacho para ajudar a minhoca em apuros, tomo ela nos dedos e ela é fria e fina, um fiozinho transparente de vida se agitando sob o meu poder, posso salvá-la, posso até condená-la aos bicos das galinhas.

Mas eu não preciso dessa pequena maldade para sentir o prazer deste sábado. Levo a minhoca até a beira do caminho e o corpo esguio da minhoca treme na palma da minha mão, coloco-a cuidadosamente entre as folhagens aonde nem as galinhas nem o sol a encontrará desprevenida.

Depois sigo o pai que caminha lá a diante. O pai é a frente eu sou atrás.

E eu pisando no rastro do pai. O pai tem um pé firme e fundo, marca a terra com saliências duras. Pisando o rastro do pai estou seguro. Havendo uma ponte caminharei pelo mesmo trilho do pai e atravessarei o abismo com a intrepidez e o orgulho dos confiantes. Olharei para trás e pensarei que como um filho eu tenho aquele pai e é seguro e bom estar caminhando num campo, numa ponte, numa margem com um pai a sua frente.

Observo que o sol sobe até o alto dos morros que se estendem sob a manhã começada. Pelo caminho do campo vejo as flores acordadas sob a luz do dia. As flores já se abrem molhadas de sol e claridade. Chananas. Chananas. Chananas. A alegria branca das flores abertas e a fingida timidez dos botões recolhidos. A jitirana das azulzinhas, das amarela, das vermelhas mais raras e das pálidas mais abundantes. Na boca da mata o capitão-do-campo crescido, sozinho, mãos para o céu. E aquela eu sei que é uma monarca e não é flor é uma borboleta. Eu paro, eu vejo, ela chega na assa-peixe.

Tem asas. Quatro asas. Duas monarcas. Agora três aladas no algodão-do-brejo. Com os dedos eu dedilho seu voo, posso guardar você no meu bolso, levar pra casa. Mas neste sábado eu me destino a outra promessa.

Sigo com o pai — chap, chap, chap, no rastro do pai. Mas logo me detenho outra vez, o coração esmagado, desamparado. O que eu vejo queima a terra, arde no campo. São os lírios. Vieram com a chuva. Chegaram com o vento. Os adormecidos do vale caminharam desde dentro da terra e amanheceram no claro do dia. Manhã irisada de lírios. Crescidos nos halos, crescidos numa só planta, as vezes dois dividindo a mesma haste. Outros ainda dormem quietos, encolhidos de medo.

Vou arrancando estas flores, partindo os halos com as unhas, reunindo os lírios num molho. Preciso de muitos para criar uma poesia. Vou inventar uma poesia sobre os lírios que eu colhi e dizer ao pai que eu inventei uma poesia sobre lírios colhidos.

O lírio é a flor quieta,

Acorda sob o sol,

Dorme sob a lua.


Eu invento a poesia, mas depois não quero inventar mais nenhuma poesia, pois está na hora de crescer e corro para o pai, porque é preciso seguir com ele e ao pé dele, principalmente porque o pai já chegava na beira do rio. Esqueço logos todos os lírios largando-os pelo caminho e quando chego ao pai já estou esquecido das flores.

Meu novo encantamento é o rio.

Paramos em cima do barranco contemplando a água. A água desce sobre as pedras, a água lava as pedras, molha as raízes que vão beber água dentro do rio. As pedras do rio são duras e cinzas e a água passa entre elas formando cachoeiras, espumando dentro das quedas.

Meu coração arde ansiado.

Lá embaixo na beiradinha do rio há uma garça equilibrando-se numa perna. Ela me vê logo e eu também vejo a garça. Num desconforto o pescoço dela está estirado avançando através da brancura das penas, a cabeça balançando de um lado a outro, o bico quebrando conchas e papando os caramujos.

Os caramujos são molhados como as minhocas e não fogem ao perigo. Mas eu não posso ajudar os caramujos, nem as lesmas, nem os besouros, todos eles serão o alimento da garça. Os caramujos fugiram para dentro das conchas quando ouviram os passos da garça perto do rio. Eu dou um grito e assusto a garça, depois corro para perto do rio e a garça voa baixo pousando no alto da embaúba onde fica me observando e pensando.

O pai também desce o barranco e agora somos dois caminhando na margem do rio. Eu piso a maciez da areia e a lisura das pedras que se recolheram perto do rio. Caminho sob a folhagem do ingá e o vento passa ventando.

Aqui dentro do rio o sol ainda não veio e a água é fria e escura. Atrás de mim o pai está parado com o braço passado por cima do galho duma saboneteira. Eu olho o rio, sendo que este é um rio que corta as águas. Este rio é um rio que não vive sempre, quando as chuvas se acabam este rio também se acaba. O rio morre e o rio volta a viver.

Mas choveu e agora ele é um rio vivo com peixes, água limpa e lama no fundo. Piso naquela água e é uma água doce e pura. Meus pés se eriçam dentro do rio. Olho a água do rio, ela murmura nas pedras, vem vindo de dentro da mata, traz folhas maduras, sementes de pajeú, frutas de juciri. Os alevinos brincam na areia, comem pedrinhas na margem.

Agora o pai se sentou numa pedra e contempla o rio, eu o olho, mas o pai está ausente, depois se volta para mim.

Então, por que você não entra logo no rio — o pai diz.

Já vou — eu falo — mas a água não está fria, pai.

É água da nascente, mergulha ali na cacimba.

Eu caminho pela margem do rio e me ponho de pé na beira da cacimba. Tiro a roupa, me arrepio antecipado pensado na água fria. Cruzo os braços sobre o corpo. O vento volta a soprar na folhagem, volta a entrar dentro da mata. Por cima de mim vem pousar a saíra, olho-a, mas ela não me ver. Meus pés pisam a rocha, sentem a fixidez da pedra, a água espessa e veludosa desce de cima do morro, vejo o pai, mas o pai não me ver. Já vou pai, eu vou entrar no rio, eu penso falar, mas não falo. Eu mergulho no rio, um baque seco na água, meu corpo navegando entre as folhas de ingá. A água é morna, a água é boa. Respiro, ponho os pés na areia do fundo do rio, sinto a lama imóvel, insegura, os restos de peixes e cascas de ovos que se depositam naquele chão penetram na minha pele. Apanho um grosso volume de água com a concha das mãos, escuto a mesma água escorrendo nas pedras, escuto o vento percorrendo a mata, caminhando nas folhas.

Olho para a margem do rio, meu pai sentado na rocha na beira do barranco do rio, ele me ver, eu vejo o pai, estendo a mão ao pai e mergulho bem fundo dentro do rio, me encolho dentro do rio, um feto, as pernas encostadas no corpo, me solto dentro da água do rio, me esqueço dentro da água do rio e abro os olhos lá dentro do rio.

A luz atravessa a água e numa súbita iluminação eu vejo a pele descolando-se do réptil e ele fazendo-se um ser liso e dourado, fazendo-se um fruto sem casca. Eu vejo o réptil caminhando na lama e se erguendo vitorioso distendendo suas asas dentro do dia sólido e bruto.

Volto à tona na água do rio, não vejo o pai, me agarro no tronco, encontro a pedra e piso seguro no solo, lá longe no mato escuto um eco e um silêncio rígido, onde os pássaros e o vento, onde tu meu pai?

César Maria Francisco

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