A
sólida dianteira de Haddad em SP, reafirmada pelo Ibope e o Datafolha desta 5ª
feira, deixa ao conservadorismo pouca margem para reverter uma vitória
histórica do PT; talvez a derradeira derrota política do seu eterno delfim,
José Serra. Ainda assim há riscos. Não são pequenos. Eles advém menos da
vontade aparentemente definida do eleitor, do que da disposição midiática para
manipulá-la, nas poucas horas que antecedem o pleito de domingo.
Há
alguma coisa de profundamente errado com a liberdade de expressão num país
quando, a cada escrutínio eleitoral, a maior preocupação de uma parte da
opinião pública e dos partidos, nos estertores de uma campanha como agora,
desloca-se propriamente do embate final de idéias, para prevenir-se contra a
'emboscada da véspera''.
Não
se argui se ela virá; apenas como e quando a maior emissora de televisão agirá
na tentativa de raptar o discernimento soberano da população, sobrepondo-lhe
seus critérios, preferências e interditos.
Tornou-se
uma aflita tradição nacional acompanhar a contagem regressiva dessa fatalidade.
A
colisão entre a festa democrática e a usurpação da vontade das urnas por um
interdito que se pronuncia de véspera, desgraçadamente instalou-se no
calendário eleitoral. E o corrói por dentro, como uma doença maligna que pode
invalidar a democracia e desfibrar a sociedade.
A
evidencia mais grave dessa anomalia infecciosa é que todos sabem de que país se
fala; qual o nome do poder midiádico retratado e que interesses ele dissemina.
Nem
é preciso nominá-los. E isso é pouco menos que a tragédia na vida de uma Nação.
De
novo, a maleita de pontualidade afiada rodeia o ambiente eleitoral no estreito
espaço que nos separa das urnas deste 28 de outubro.
Em
qualquer sociedade democrática uma vantagem de 15 pontos como a de Haddad seria
suficiente para configurar um pleito sereno e definido.
Mas
não quando uma única empresa possui 26 canais de televisão, dezenas de rádios,
jornal impresso, editora, produção de cinema, vídeo, internet e distribuição de
sinal e dados.
Tudo
isso regado por uma hegemônica participação no mercado publicitário, inclusive
de verbas públicas: a TV Globo, sozinha, receberá este ano mais de 50% da verba
publicitária de televisão do governo Dilma.
Essa
concentração anômala de munição midiática desenha um cerco de incerteza e
apreensão em torno da democracia brasileira. Distorce a vida política;
influencia o Judiciário; corrompe a vaidade de seus membros; adestra-os, como
agora, com a cenoura dos holofotes a se oferecerem vulgarmente, como calouros
de programas de auditório, ao desfrute de causas e interesses que tem um lado
na história. E não é o do aperfeiçoamento das instituições nem da Democracia.
O
conjunto explica porque, a três dias das eleições municipais de 2012, pairam
dúvidas sobre o que ainda pode acontecer em São Paulo, capaz de fraudar a
eletrizante vitória petista contra o adversário que tem a preferência do
conservadorismo, a cumplicidade dos colunistas 'isentos',a 'independência' do
Judiciário e a torcida, em espécie, da plutocracia.
Não
há nessa apreensão qualquer traço de fobia persecutória.
Há
antecedentes. São abundantes a ponto de justificar o temor que se repitam.
Multiplas
referenciais históricas estão documentadas. Há recorrência na intervenção
indevida que mancha, enfraquece e humilha a democracia,como um torniquete que
comprime a liberdade das urnas.
Mencione-se
apenas a título ilustrativo três exemplos de assalto ao território que deveria
ser inviolável, pelo menos muitos lutaram para que fosse assim; e não poucos
morreram por isso.
Em
1982, a Rede Globo e o jornal O Globo arquitetaram um sistema paralelo de
apuração de votos nas eleições estaduais do Rio de Janeiro.
Leonel
Brizola era favorito, mas o candidato das Organizações Globo, Moreira Franco,
recebera privilégios de cobertura e genuflexão conhecidos. Os sinais
antecipavam o estupro em marcha das urnas.
Ele
veio na forma de um contagem paralela - contratada pela Globo - que
privilegiaria colégios do interior onde seu candidato liderava, a ponto de se
criar um 'consenso' de vitória em torno do seu nome.
O
assédio só não se consumou porque Brizola recusou o papel de hímen complacente.
O
gaúcho recém chegado do exílio saiu a campo, convocou a imprensa internacional,
denunciou a fraude em marcha e brigou pelo seu mandato. Em entrevista histórica
--ao vivo, por sua arguta exigencia, Brizola denunciou a manobra da Globo
falando à população através das câmeras da própria emissora.
Venceu
por uma margem de 4 pontos. Não fosse a resistência desassombrada, a margem
pequena seria dissolvida no contubérnio entre apurações oficiais e paralelas.
Em
1983 os comícios contra a ditadura e por eleições diretas arrastavam multidões
às ruas e grandes praças do país.
A
Rede Globo boicotou as manifestações enquanto pode, mantendo esférico silêncio
sobre o assunto. O Brasil retratado em seu noticioso era um lago suíço de
resignação.
No
dia 25 de janeiro de 1984, aniversário da cidade, São Paulo assistiu a um
comício monstro na praça da Sé. Mais de 300 mil vozes exigiam democracia,
pediam igualdade, cobravam eleições.
O
lago tornara-se um maremoto incontrolável. A direção editorial do grupo que
hoje é um dos mais aguerridos vigilantes contra a 'censura' na Argentina,
Venezuela e outros pagos populistas, abriu espaço então no JN para uma
reportagem sobre a manifestação. Destinou-lhe dois minutos e 17 segundos.
Compare-se:
na cobertura do julgamento em curso da Ação penal 470, no STF, o mesmo
telejornal dispensou mais de 18 minutos nesta terça-feira a despejar ataques e
exibicionismos togados contra o PT, suas lideranças e o governo Lula.
Naquele
25 de janeiro estava em causa, de um lado, a democracia; de outro, a
continuidade da ditadura.
Esse
confronto mereceu menos de 1/6 do tempo dedicado agora ao julgamento em curso
no STF. Com um agravante fraudulento: na escalada do JN, a multidão na praça da
Sé foi associada, "por engano", explicou depois a emissora, 'a um
show em comemoração aos 430 anos da cidade'. Passemos...
Em
1989, o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello
realizariam o debate final de uma disputa acirrada e histórica: era o primeiro
pleito presidencial a consoliar o fim da ditadura militar.
No
confronto do dia 14 de dezembro Collor teve desempenho pouco superior ao de
Lula. Mas não a ponto de reverter uma tendência de crescimento do ex-líder
metalúrgico; tampouco suficiente para collorir os indecisivos ainda em número
significativo.
A
Globo editou o debate duas vezes. Até deixá-lo 'ao dente', para ser exibido no
Jornal Nacional.
Collor
teve um minuto e oito segundos a mais que Lula; as falas do petista foram
escolhidas entre as suas intervenções mais fracas; as do oponente, entre as
suas melhores.
Antes
do debate a diferença de votos entre os dois era da ordem de 1%, a favor de
Collor; mas Lula crescia. Depois do cinzel da Globo, Collor ampliou essa margem
para 4 pontos e venceu com quase 50% dos votos;Lula teve 44%. As consequências
históricas dessa maquinação são sabidas.
São
amplamente conhecidas também as reiterações desse tipo de interferência nos
passos posteriores que marcaram a trajetória da democracia brasileira.
Ela
se fez presente como obstaculo à vitória de Lula em 2002; catalisou a crise de
seu governo em 2005 --quando se ensaiou um movimento de impeachment
generosamente ecoado e co-liderado pelo dispositivo midiático conservador;
atuou no levante contra a reeleição de Lula em 2006 e agiu na campanha
ostensiva contra Dilma, em 2010.
A
indevida interferência avulta mais ainda agora. Há sofreguidão de revide e um
clima de 'agora ou nunca' no quase linchamento midiático promovido contra o PT,
em sintonia com o calendário e o enrêdo desfrutáveis, protagonizados por togas
engajadas no julgamento em curso do chamado mensalão'.
Pouca
dúvida pode haver quanto aos objetivos e a determinação férrea que vertem desse
repertório de maquinações, sabotagens e calúnias disseminadas.
Sua
ação corrosiva arremete contra tudo e todos cuja agenda e biografia se associem
à defesa do interesse público, do bem comum e da democracia social.Ou, dito de
outro modo, visa enfraquecer o Estado soberano, desqualificar valores e
princípios solidários que sustentam a convivência compartilhada.
Os
governantes e as forças progressistas brasileiras não tem mais o direito
--depois de 11 anos no comando do Estado- de ignorar esse cerco que mantem a
democracia refém de um poder que só a respeita enquanto servir como lacre de
chumbo de seus interesses e privilégios.
Os
requintes de linchamento que arrematam o espetáculo eleitoral em que se
transformou a ação Penal 470, ademais da apreensão com a 'bala de prata
midiática' que possa abalar a vitória progressista em SP, não são fenômenos da
exclusiva cepa conservadora.
A
conivência federal com o obsoleto aparato regulador do sistema de comunicações
explica um pedaço desse enredo. Ele esgotou a cota de tolerância das forças que
elegeram Lula e sustentam Dilma no poder.
O
país não avançará nas trasformações econômicas e sociais requeridas pela desordem
neoliberal se não capacitar o discernimento político de mais de 40 milhões de
homens e mulheres que sairam da pobreza, ascenderam na pirâmidade de renda e
agora aspiram à plena cidadania.
A
histórica obra de emancipação social iniciada por Lula não se completará com a
preservação do atual poder de veto que o dispositivo midiático conservador
detém no Brasil.
Persistir
na chave da cumplicidade, acomodação e medo diante desse aparato tangencia a
irresponsabilidade política.
Mais
que isso: é uma assinatura de contrato com a regressão histórica que o governo
Dilma e as forças que o sustentam não tem o direito de empenhar em nome do povo
brasileiro.
Que
a votação deste domingo seja a última tendo as urnas como refém da rede Globo,
dos seus anexos, ventrílocos e assemelhados. Diretas, já! Esse é um desejo
histórico da luta democrática brasileira. Carta Maior tem a certeza de
compartilhá-lo com seus leitores e com a imensa maioria dos homens e mulheres
que caminharão para a urna neste domigo dispostos a impulsionar com o seu voto
esse novo e inadiável divisor da nossa história.
Fonte: Carta Maior