Negras Médicas e Domésticas
Poderia
ser natural em meu Brasil, qualquer criança ou pessoa me perguntar qual a minha
profissão, se eu responder, que sou médico, mesmo vestido de branco, feito
respondi uma vez à uma balconista negra que me servia café, ela olhou
desconfiada e me disse que pensava que eu parecia mais pai de santo, quando lhe
afirmei que na verdade sou sociólogo, ela me olhou mais espantada ainda,
dizendo, feito o presidente Fernando Henrique?
São
situações naturais para qualquer negro no Brasil estas que acontecem no dia a
dia com a gente, não somos o que somos somos apenas o que nascemos pra ser.
Nascemos pra sermos nada ou quase nada.
Eu
mesmo me flagro volta e meia ao conversar com as pessoas, com uma dúvida
interior, que me faz perguntar no íntimo, será que o cara tá acreditando em
mim,será que eu estou me apresentando mais do que devia para convencer o cara
interlocutor, que eu sou o que sou e tenho a experiência que tenho? Será que
não exagero ao me descrever, para convencer ao outro que sou eu mesmo o que
sou?
Natural
prá gente é ser servendte, empregado doméstico, supervisor de segurança se
estiver de terno e até manobreiro, que alguém entrega a chave enquanto a gente
espera a namorada chegar para nos encontrar em um restaurante fino.
|
Foto: Reprodução |
Não
importa se o interlocutor é negro ou branco, cortamos um dobrado para
convencê-lo de que somos o que somos e basta.
No
meus vinte anos na Europa, quando sentava em um bar, poderia estar ao meu lado
uma chanceler da república ou uma empregada doméstica, que se eu não conhecesse
pela foto, não saberia quem é quem.
Aqui
não, se é branco é alguém, se não é branco que nos convença.
Aqui
no Brasil se tem cara e não se tem cara e a cor da cara ajuda a definir a
profissão, a posição e o poder diagnosticado na pessoa que você se confronta.
Dependendo da nossa avaliação ou pedimos licença, ou passamos por cima. Quase
sempre tem dado certo prá todo mundo. Quando não dá certo e alguém grita
racismo, vem logo a desculpa, mas foi um mal entendido, esta não foi a nossa
intenção.
Aqui
a cara define a sua profissão, o seu poder e a sua preferência no trânsito da
vida profissional.
Até
para as crianças que reconhecem tudo no espírito, é um problema identificar uma
pessoa negra no seu cotidiano,que não faça parte do universo de pessoas a que
esta criança esteja acostumada a ver as pessoas negras.
Médicas,
engenheiras, arquitetas, presidentas escapam até para estas crianças do
universo de domésticas a que elas estão acostumadas a verem suas mães, tias,
quando são crianças negras, e babás quando são de criaças brancas que falamos.
A
infeliz cometeu apenas a besteira de confirmar o racismo que a maioria dos
brasileiros carregam dentro do coração todos os dias.
Ninguém
se espanta nem vai para as redes, perguntar por que só tem médicos brancos no
Brasil.
Todos
estão para lá de mal acostumados em verem cenas de filas negras esperando no
SUS, e à 8 horas as filas de brancos estacionando os seus carros e descendo
para atravessar aqueles mares negros de pessoas humanas de pele preta ou
amareladas de fome, que sempre estão a sua espera.
Foi
chocante assistir a chegada dos médicos cubanos em São Paulo, a foto estampada
nos jornais chocou até a mim, homem vivido neste mundo planetário. Deus dos
Céus, um monte de mulheres e homens com as caras dos peixeiros de nossas
esquinas, fortes como os entregadores de gás do dia a dia, e com aquele olhar
afável das nossas queridas empregadas domésticas, isto não estava no meu enredo
de vida como um brasileiro negro, pois eram e são todas e todos médicas e
médicos.
Quiseram
os Deuses, via a transversal do comunismo, dar um choque terapêutico no nosso
racismo, tão querido como um calo conservado de nossos avós?
E
ainda aparecem uns jornalistas, que parecem que descobriram a pólvora do racismo
brasileiro, a dizerem-se solidários com os cubanos, que sentem vergonha pelo
racismo dos médicos brasileiros. Outros, menos jornalistas também sentem
vergonha, como se o assunto não fosse com eles.
Meu
avõ sempre dizia, vergonha de quem não se reconhece racista e lágrimas de
crocodilos, não acabam com o racismo, nem enchem copo de quem tem sede por
justiça e igualdade.
Tem
mais de 125 anos que nós negros lutamos para termos acesso às escolas e quanto
mais estudamos, mais as escolas de “excelência” ficam brancas.
Tem
mais de 40 anos que lutamos por cotas, levamos 10 anos na justiça, ganhamos mas
não levamos a quina, pois universidades como a de São Paulo, sempre arranjam um
jeito de não permitirem nossa entrada.
Numa
esquina perto de minha casa vejo todo dias dois mares de cores crianças se
cruzarem,de um lado uma escola privadas, escola de excelência que forma
prefeitos e governadores. As crianças brancas atravessam a rua em direção a
zona rica da cidade. Do outro lado tem a Escola Pública , que forma as
empregadas domésticas e os peixeiros da esquina.
As
crianças se cruzam, pretas para as favelas e brancas pra os play grounds. Sinto
que estamos enchendo um balde furado. Nossas crianças negras estão marcadas
para perderem e morrerem.
Que
a foto desta negrada cubana estampada nos jornais, tenha o mesmo efeito que a
foto de Pelé teve na África do Sul, quando publicada na primeira página em
1958. Foi a primeira foto de um negro na primeira página de um jornal da África
do Sul. A foto de Pelé inspirou muitos jovens negros da época, como me disse
Desmond Tutu, ao verem que elas, crianças negras poderiam serem o que
desejassem. Levaram 30 anos e estão conseguindo.
A
vinda de tantos médicos e médicas negras para o Brasil(apesar de ser tão
pouquinho café neste balde de leite que é o sistema de poder curador do
Brasil)é mais do que um exemplo de ação para a saúde física de nosso povo
racista até nas entranhas, é um choque terapêutico para entendermos a profundidade
do apartheid brasileiro.
Via
Pragmatismo Político