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O Egito Negro, problematizando estereótipos

 

Kmet era uma civilização negra (Imagem disponível em: https://afrokut.com.br/blog)

Por César Pereira, Colunista

No ano de 2014 o diretor de cinema Ridley Scott lançou o filme Êxodo: deuses e reis cujo roteiro baseia-se no Midrash, conjunto de textos exegéticos sobre a Torá hebraica e no próprio livro do Êxodo da Bíblia cristã. O filme reconta a história da liderança de Moisés enquanto luta para retirar o povo Hebreu da escravidão no Egito do século XIV a.C.

Logo após seu lançamento o filme se tornou alvo de críticas tanto por parte dos cinéfilos mais inveterados que não gostaram do ritmo da ação, pois o filme procura centrar sua atenção na história de vida do patriarca Moisés e adota para isto a perspectiva cinematográfica da jornada do herói, que consiste em acompanhar ao longo do filme o amadurecimento do protagonista que deverá ter um papel decisivo até o final deste.

Os críticos de cinema analisaram o filme como uma obra irregular, pois propõe-se a fazer-se um épico, mas não desenvolve os elementos míticos que o enredo sugere, nem tampouco os fatos históricos que o roteiro levanta. Do ponto de vista histórico segundo esses críticos Ridley Scott contenta-se em ser declaradamente parcial representando os egípcios como seres humanos cruéis que massacraram e escravizaram os hebreus (a comparação com o holocausto nazista é inevitável segundo os críticos de cinema), e do ponto de vista religioso o filme procura esvaziar o invólucro mitológico que fundamenta a narrativa bíblica da história de Moisés.

Um dos motivos pelos quais o governo da República Árabe do Egito proibiu a exibição do filme no país foi precisamente esta inexatidão histórica, isto é, a representação do Egito Antigo como um estado nazista que perseguia e escravizava os hebreus para obrigá-los a erguer seus monumentos. O outro motivo foi especificamente religioso, pois o filme procura impor uma imagem estereotipada de Moisés que é considerado um importante profeta de Allah, chamado de Musa no Alcorão. Nos demais países mulçumanos onde proibiu-se Êxodo: deuses e reis os argumentos foram semelhantes, como no Marrocos onde se questionou a representação da voz de Deus através de uma criança e na Arábia Saudita que proibiu o filme pelo sionismo exagerado em que se fundamenta em detrimento dos egípcios representados como homens cruéis e antissemitas.

Alguns críticos de cinema e historiadores em geral chamaram a atenção para o profundo anacronismo do filme, pois além da evidente comparação dos egípcios antigos com os governantes nazistas da década de 1930 e 1940 o elenco é todo composto por atores brancos e logo percebeu-se o quanto é falsa essa representação do Egito Antigo como uma civilização branca:

Um problema marcante, porém, já começa a se estabelecer: não vemos sequer um negro em cena, sequer pessoas com pele mais escurecida. Estamos sim, no Norte da África, mas o “embranquecimento” dessa classe dominante só ocorreria posteriormente no período Ptolomaico, cuja linhagem real passa a ser, verdadeiramente, de origem grega. Esse exagero do caucasiano gerou, é claro, acusações de uma discriminação por parte da produção, mas, além disso, quebra o já citado realismo que o longa-metragem almeja.  Por mais que John Turturro desempenhe em satisfatório papel como o Faraó, não conseguimos acreditar que ele realmente possa ser de naturalidade egípcia. (CORAL, 2014, disponível em: https://www.planocritico.com/critica-exodo-deuses-e-reis/).



Esse embranquecimento do Egito Antigo comum no cinema, séries e telenovelas não é gratuito, isto é, não é destituído de intensões políticas e de objetivos de dominação cultural. Um Egito Antigo branco agrada a elite intelectual do mundo todo, principalmente a europeia e norte-americana. Embranquecer o Egito Antigo se tornou prática cultural comum na Europa a partir do século XVIII e se intensificou no XIX ganhado contornos definitivos através da literatura, teatro, historiografia, pintura e nos séculos XX e XXI através da arqueologia, do cinema e da televisão.

O Egito Antigo branco foi uma exigência ideológica da intelectualidade ocidental eurocentrista para aceitar a grandeza e profundidade daquela civilização que é uma das mais antigas da bacia do Mediterrâneo e que influenciou outras grandes sociedades que nesta região também se desenvolveu como a dos hebreus, gregos, macedônios, romanos.

A partir do século XVIII o discurso sobre as raças que antes pertencia principalmente a religião cristã que desde a Idade Média o utilizava para separar a cristandade europeia dos outros povos (mulçumanos do norte da África e Oriente Médio, negros do continente africano e indígenas da América), transfere-se para o campo filosófico e aí começa a se desenvolver o conceito das três raças: branca, negra e indígena (amarela). Os filósofos iluministas preocuparam-se em estabelecer quais as qualidades essenciais desses grupos étnicos, definir quais características tornavam os europeus brancos diferentes dos outros povos e como tais caracteres tornavam os brancos superiores aos africanos, asiáticos e ameríndios.

Estabeleceu-se então a ideia de uma superioridade europeia com base no ideal da racionalidade superior do branco. A razão passa a ser um qualificativo essencial para distinguir o homem civilizado, para o filósofo Emanuel Kant essa razão impõe ao ser humano a necessidade de separar-se da natureza e buscar o esclarecimento, no entanto esse homem do esclarecimento não é qualquer homem, este é um europeu branco educado nas academias científicas, de artes e filosofia da Europa.

Segundo este filósofo o homem branco aprendeu através do uso da razão a controlar o ambiente e a utilizar a natureza a seu favor, sendo assim, este homem do esclarecimento é o único capaz de protagonizar a história universal e constituir uma civilização. Os outros povos e em especial os negros eram incapazes de se desvencilharem do ambiente e vivendo nele imersos não possuíam uma razão esclarecida e, portanto, era-lhes impossível criar uma civilização o que os impedia de ter uma história.

Para Kant as outras raças viviam imersas no ambiente e raça negra segundo ele:

Os negros da África, por natureza, não têm nenhum sentimento que se eleve acima do pueril. O senhor Hume desafia quem quer que seja a citar um único exemplo de um negro demonstrando talento e afirma que dentre as centenas de milhares de negros que são transportados de seus países para outros, mesmo dentre um grande número deles que foram libertados, ele nunca encontrou um só que, seja em arte, seja nas ciências, ou em qualquer outra louvável qualidade, tenha tido um papel importante, enquanto que dentre os brancos, constantemente ele constata que, mesmo se nascidos das camadas mais baixas do povo, estes sempre se elevam socialmente, graças a seus dons superiores, merecendo a consideração de todos. Tanta é a diferença essencial entre estas duas raças; ela parece também tão grande no que concerne às capacidades quanto segundo a cor. A religião fetichista, largamente difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria que se enraíza tanto na puerilidade quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, um chifre de uma vaca, um búzio, ou qualquer outra coisa ordinária, desde o instante em que esta coisa seja consagrada por certas palavras, é um objeto de veneração e invocada em juramentos. Os negros são muito vaidosos, mas à maneira negra, e tão tagarelas que é preciso dispersá-los a golpes de porrete. (KANT,2014).



Nesta concepção o filósofo iluminista já constrói parte do argumento que nos séculos será utilizado pelo neocolonialismo europeu para justificar sua ação dominadora sobre a África. Ao argumentar que o ambiente onde vivem os negros oblitera suas capacidades intelectuais, mas desenvolve exclusivamente seu porte físico, Kant aproxima os povos de pele escura dos animais irracionais. Para Kant o que se sobressai em negro é sua corporeidade, assim por não ter uma racionalidade desenvolvida ele é indolente e desocupado, incapaz de construir uma sociedade organizada e racionalizada, e essencialmente privado de natureza humana, isto é as características fundamentais de um ser humano (razão, história e civilidade).

Com estes argumentos a intelectualidade europeia subtrai a história e a civilização da África. Para os filósofos do século XIX e os historiadores deste século o continente africano não possuía história porque nessa época a história era o progresso da civilização e os povos africanos eram incapazes de produzir uma civilização, pois não possuíam a capacidade de raciocínio claro, uma vez que seu pensamento estava envolto no misticismo, fetichismo e irracionalidade.

Ao se deparar com as maravilhas e grandezas da civilização egípcia antiga, (monumentos, riquezas, escrita, literatura, filosofia, medicina, ciência, arte, arquitetura, sistema político e religioso), essa intelectualidade europeia se impôs um dilema: se aceitasse o Egito Antigo como uma civilização negra teria que admitir a racionalidade dos grupos étnicos não-brancos e dos povos não-europeus; se admitissem haver razão, história e civilização nos negros teriam que estender o conceito de humanidade e natureza humana a todos os indivíduos em todos os continentes e isto tornaria as conquistas coloniais europeias injustificadas.

Sendo assim, as academias, a ciência, a elite, os filósofos, antropólogos, sociólogos, historiadores, políticos, escritores, passaram a construir um vastíssimo arcabouço discursivo para impor ao continente africano uma não-história e a impossibilidade dos seus povos criarem civilizações:

a África propriamente dita, tão longe quanto a história registra,  conservou-se fechada, sem laços com o resto do mundo;  é a terra do ouro, debruçado sobre si mesma, terra da infância que além do surgimento da história consciente, está envolvida na cor negra da noite...[...] O que caracteriza os negros, é precisamente o fato de que sua consciência não tenha ainda chegado à intuição de nenhuma objetividade firme, como  por exemplo Deus, a Lei, onde o homem se sustentasse na sua vontade, possibilitando assim  a intuição do seu ser... Como já dito, o negro representa o homem natural, em toda sua selvageria e sua petulância; é preciso fazer abstração de qualquer respeito e qualquer moralidade, do que se chama sentimento, se se deseja de fato conhecê-lo; não se pode encontrar nada nesse caráter que possa lembrar o homem. (HEGEL, 1987).



Na prática o que está expresso acima é uma corroboração apressada do pensamento de Emanuel Kant acima citado. Para Hegel assim como para Kant é impossível encontrar a civilização no continente africano, afirma-se assim a superioridade do homem europeu e o destino dos negros é aceitarem a dominação branca, pois a Europa é o berço da lei, da religião, da filosofia, é onde a razão universal habita e onde se realiza o movimento da história,

Foram ideias como esta que levaram ao embranquecimento do Egito Antigo a partir do Iluminismo, passando pelo Positivismo, o historicismo, o darwinismo social, o imperialismo, as concepções eugenista do final do século XIX e primeira metade do século XX.

Ao longo do século XIX a historiografia, a filosofia, a literatura e arte foram subtraindo a negritude do Egito Antigo. Através da arte a representação dos egípcios da antiguidade foi se embranquecendo, a pele cada vez mais pálida dos faraós e da nobreza egípcia se impunha como característica fenotípica essencial daquele povo antigo. Rapidamente a historiografia foi racializando a história do Egito Antigo, e essa sociedade passou a ser compreendida como uma extensão do mundo semítico (hebreu e mesopotâmico) como também grego (macedônico e ptolomaico) e finalmente romano.

Segundo Paula (2013, p. 26), é possível verificar que, na Antiguidade, os povos não eram categorizados coo raças, mas sim por sua origem tribal, isto quer dizer que não se levava em conta a cor da pele dos indivíduos que compunham um reino, um império, uma cidade-estado, uma sociedade. Partindo disso, Paula (2013, p. 26) passa a argumentar que a aplicação da cor da pele para classificar os povos aparece na Idade Média, com o objetivo dos católicos em reafirmar a cristandade a partir uma matriz ocidental e branca. Desse modo, Paula (2013, p. 27) aponta que é a partir desse período depois de alguns séculos seguintes que passa a se rotular um viés teológico procurando esclarecer a condição do não-europeu, especialmente dos negros e dos indígenas. Como já dissemos foi com o iluminismo no século XVIII, que a questão vai deslocar-se para o campo da filosofia e aí a concepção de raça passa a ser utilizada na separação da humanidade em três, o que Paula (2013, p. 27) ressalta como o fator que viabilizará uma hierarquização racial. Essa hierarquização, no século XIX, adquire um valor científico ratificando o racismo estrutural.

A civilização egípcia que brota das páginas dessa historiografia racializada é a de um Egito Antigo branco e semítico. De fato, como sugere Paula (2013) não podemos definir o Egito Antigo como uma civilização negra partindo das nossas perspectivas de raça e etnia atuais, mas não se pode adotar uma suposta neutralidade sobre as características fenotípicas dos antigos egípcios.


Figura 1: Love's Labour Lost (Edwin Long) - Fonte: Imagem elaborada pelo autor.

Sabemos pela autorrepresentação que os próprios egípcios antigos faziam de si que eles não tinham a pele clara tal como aparece nas representações europeias dos séculos XVIII e XIX, como também nas imagens veiculadas no cinema e na televisão nos séculos XX e XXI. Se não podemos classificar os egípcios antigos como negros, uma vez que esta categoria só nasceu com os discursos raciais do Iluminismo, mas certamente é possível concluir que estes tivessem a pele escura, preta.

Contra o embranquecimento do Egito Antigo e a invenção de uma civilização egípcia semítica levantou-se o historiador do século XX Cheikh Anta Diop. Foi graças as suas pesquisas, debates e textos que a partir da década de 1950 começou-se a questionar a visão eurocêntrica sobre o antigo Egito. No seu livro Nações negras e cultura: Da antiguidade negra egípcia aos problemas culturais da África negra de hoje cuja publicação foi feita em 1954 o historiador sustenta a origem africana dos egípcios e cor preta de suas peles.

Com base em fontes históricas e diversos textos da Antiguidade (incluindo autores bíblicos e documentos gregos antigos), como também as obras de arte egípcias compreendendo variados períodos, fazendo uso de análises comparativas (totemismo, circuncisão, realeza, cosmogonia, organização social, matriarcado), Diop vai desconstruindo a perspectiva eurocêntrica de um Egito Antigo branco cujas origens históricas remontava aos povos semitas da Mesopotâmia.

O historiador e filósofo senegalês baseia-se também em argumentos linguísticos para sustentar as características fenotípicas da pele preta, tais argumentos são por exemplo, a existência de um conceito pelo qual os próprios egípcios se representavam, KMT, que significaria na interpretação paleolinguística de Diop preto/do carvão.

Ele também faz uso de estudos históricos e antropológicos sobre o povoamento da África a partir do vale do Nilo contrapondo-se assim a tese criada no século XIX segundo a qual os egípcios da antiguidade descendiam de povos semitas que teriam migrado do Oriente Médio para o Vale do Rio Nilo.

Os questionamento e argumentos utilizados por Diop no seu livro e posteriormente incluídos na coletânea História Geral da África, livro editado pela Unesco e traduzido em dezenas de línguas levaram vários historiadores a despertarem sua atenção para a questão do embranquecimento proposital e ideológico do Egito Antigo. Mesmo embasado em sólidos argumentos científicos e filosófico, bem como em uma vasta documentação histórica a tese de Cheik Anta Diop não deixou de ser deliberadamente sabotada pelas academias eurocêntricas, pela historiografia e a arqueologia racista.

Segundo estes estudiosos brancos as pesquisas de Diop não podem ser admitidas como contendo verdades históricas porque a sua tática de afirmar uma civilização egípcia negra é incorreta uma que segundo eles os egípcios antigos não podem ser classificados como pertencendo a uma raça. Evidentemente que este não é o objetivo de Diop, pois ele não afirma serem os egípcios da Antiguidade um povo de raça negra, mas acima este historiador propõe a localização do Egito Antigo e dos povos que habitaram este território na África.

Para Cheik Anta Diop, bem como para outros historiadores negros que definem o Egito Antigo como uma civilização africana não é possível que as terras do Vale do Rio Nilo tenham sido povoadas, habitadas, cultivadas, por povos não-africanos, isto é, a origem dos povos que habitaram o Egito na Antiguidade é o próprio continente africano e como tal, sendo as populações deste continente negras, isto é, pretas, necessariamente a pele dos antigos egípcios teria de ser definida como sendo preta.

De acordo com os estudos de Diop era como pretos que os egípcios se viam, pois, a palavra Kṃt com a qual se identificavam na Idade Antiga significando preto/do carvão referia-se a cor de sua pele:


Portanto, se a humanidade teve origem nos trópicos, em tomo da latitude dos Grandes Lagos, ela certamente apresentava, no início, pigmentação escura, e foi pela diferenciação em outros climas que a matriz original se dividiu, mais tarde, em diferentes raças; havia apenas duas rotas através das quais esses primeiros homens poderiam se deslocar, indo povoar os outros continentes: o Saara e o vale do Nilo. (DIOP, 2012).


Ainda na Antiguidade o historiador grego Heródoto ao descrever os egípcios o fez em termos que é impossível não deixarmos de estar de acordo com Diop “De minha parte considero os Kolchu uma colônia do Egito, porque como os egípcios eles têm a pele negra e cabelo crespo”. Já o filósofo Aristóteles refere-se aos egípcios antigos nesses termos:

Aqueles que são muito negros são covardes como, por exemplo, os egípcios e os etíopes. Mas os excessivamente brancos também são covardes, com podemos ver pelo exemplo das mulheres; a coloração da coragem está entre negro e o branco. (ARISTÓTELES, 2011)



Se não bastasse a descrição que os textos antigos fazem dos egípcios como pretos também temos as obras de arte que eles próprios criaram representando a si mesmos.

Nessas imagens a pele dos camponeses, soldados, da realeza, do faraó, sacerdotes, nunca aparece representada como pálida. Os pintores procuravam pigmentos escuros, marrons, tons que jamais demonstram proximidade com a pele clara. Os cabelos são crespos, lábios e narizes grossos, maçãs do rosto volumosas, todas elas são caracteres predominantes em pessoas negras.



Figura 2: Cena de banquete da capela do tumulo de Nebamun, Egito, 1350 a. C. Fonte: Imagem elaborada pelo autor.

Entre a figura 1 que é uma representação europeia da corte egípcia e a figura 2 que é uma pintura de um artista do Egito Antigo da corte de uma rainha egípcia podemos observar diferenças radicais. Enquanto as mulheres que aparecem na figura 1 são pálidas, delicadas, lânguidas, simulando uma sensualidade idealizada pelos europeus no Oriente, as mulheres que foram pintadas na figura 2 têm os cabelos crespos, a pele escura, os traços do rosto são semelhantes aos das mulheres pretas da África e estas aparecem em pleno seu vigor feminino, são mulheres ativas e jamais passivas como sugere a figura 1.

Estamos aqui nesta figura 2 evidentemente diante de pessoas pretas, esta imagem foi produzida por um artista do Egito Antigo e como tal fica evidente que ele não representou as nobres egípcias, suas servas e servos como pessoas brancas, escolheu tons escuros e traços negroides para representá-las.

Assim como observamos as características da negritude na pintura dos egípcios antigos também podemos observá-la nas esculturas e máscaras mortuárias.


Máscara funerária de Tutancâmon, ouro, pedras semipreciosas e pasta de vidro colorido, 54 cm de altura, cerca de 1350 a. C. Conservada no Museu Egípcio, Cairo, Egito. (Fonte: Reprodução da Internet). 

Lábios grossos, nariz volumoso, maçãs do rosto salientes, esta é a representação artística do faraó Tutancâmon feita em por volta do século XIV a.C., por um artista da XVIII dinastia. Todas essas representações bem como os textos da antiguidade e os estudos realizados nas décadas de 1950 e 1960 por Cheik Anta Diop nos levam a acreditar que os antigos egípcios eram pessoas de pele preta e que a civilização egípcia foi erguida e sustentada por pessoas negras.

Foi essa certeza que levou ao embranquecimento do Antigo Egito. Com o objetivo de dominar culturalmente, politicamente e economicamente os outros povos os europeus negaram a estes uma história, negaram que eles possuíssem humanidade ou mesmo natureza humana. Procurando se impor como dominadores os europeus estabeleceram que somente pessoas brancas poderiam construir civilizações e participar da história, testemunhando a grandeza do Egito Antigo não podiam admitir que pessoas de pele preta, que homens e mulheres negros tivessem a capacidade de erguer um império tão poderoso e estável, uma sociedade tão bem estruturada quanto a deles ou até mesmo mais que aquelas que existiram na Europa.

Embranquecer o Egito Antigo foi uma estratégia política e ideológica, funcional tão bem que hoje até mesmo a elite intelectual da própria República Árabe do Egito se recusa a aceitar a negritude dos antigos habitantes do seu território.

Essa negação ficou expressa na polêmica causada pela série Rainhas Africanas disponibilizada em 2023 pela plataforma de streaming Netflix. Um dos episódios da série foi sobre Cleópatra e a produtora do programa Jada Pinkett Smith escolheu a atriz Adele James, negra, para interpretar a rainha do período Ptolomaico. Bastou apenas isto para uma enorme controvérsia erguer-se, intelectuais das universidades egípcias e fora do Egito apressaram-se em ir a público afirmar que a série estava sendo anacrônica pois segundo eles Cleópatra era uma grega e, portanto, branca.

A imagem de Cleópatra como rainha branca do Egito ficou gravada no imaginário popular graças o cinema. Na década de 1960 a atriz Elizabeth Taylor interpretou a rainha no filme Cleópatra, a rainha do Nilo e foi esta representação que consolidou definitivamente a imagem da rainha grega, da rainha branca e voluntariosa que governou o Egito.

As representações do Egito Antigo como habitado por pessoas brancas e até mesmo dos deuses egípcios como entidades brancas prolifera-se no cinema, na literatura, nas artes em geral, jogos de RPG, videogames e na internet. Os livros didáticos de história distribuídos vendidos pelas editoras ou distribuídos nas escolas também repercutem este estereótipo ideológico e falacioso.

Um filme de grande sucesso de público que arrecadou milhões de dólares no mundo inteiro foi Os deuses do Egito do diretor Alex Proyas, lançado em 2016, o roteiro narra um episódio da mitologia egípcia, a guerra entre o deus Set (deus da guerra e do caos), seu irmão Osíris (deus da fertilidade) e Hórus (deus do sol, da luz). Narra-se neste mito como Set matou Osíris e se apropriou do governo do mundo e como Hórus passou a combater o mal Set para restituir a ordem na terra.

Mais uma vez o diretor optou por um elenco de atores brancos que empobrece o filme e reforça os estereótipos de embranquecimento do Egito Antigo que vem sendo alimentado e retroalimentado desde o século XVIII.


Figura 3: Cena do Filme Deuses do Egito – Fonte: Criação do autor.

A manutenção desses estereótipos reforça o racismo estrutural, pois ao subtrair dos pretos a possiblidade de possuírem uma história de terem protagonismo histórico, reforça o poder do branco através de discursos e narrativas que se estabelecem como práticas culturais de controle social, econômico, político e ideológico.

Um filme como Deuses do Egito não é somente um produto da indústria cultural ele veicula para milhões de pessoas o discurso de poder hegemônico da branquitude. O Egito Antigo negro é um conceito é uma categoria histórica que ainda incomoda toda uma elite intelectual eurocêntrica.

REFERÊNCIAS

Aristóteles, Da fisionomia, São Paulo, Edipro, 2020.

DIOP, Cheikh Anta. Contribuciones culturales de África y sus perspectivas . IN:KOHN, Hans; SOKOLSKY, Wallace. El nacionalismo africano em el siglo XX. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1968. em: 01 de maio de 2020.

Heródoto, História, São Paulo, Iluminuras, 2002.

Kant, Emmanuel. Observações a respeito do belo e do sublime, Petrópolis, Vozes, 2012.

PAULA, Benjamin Xavier de. A educação para as relações etnico-raciais e o estudo de história e cultura da áfrica e afro brasileira: formação, saberes e práticas educativas. 2013. 346 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2013. Disponível em: http://clyde.dr.ufu.br/handle/123456789/13652. 


O Sr. Francisco Ivan Rodrigues e as eleições de 1988 em Milagres-CE

 

Sede da prefeitura municipal de Milagres-CE, no ano de 1984 (FOTO | Reprodução | IBGE CIDADES).

Por César Pereira, Colunista

O ano de 1979 foi marcado por dois debates centrais na cena política brasileira. No primeiro semestre, mesmo antes da eleição indireta do general João Batista de Figueiredo para a presidência da república já se discutia abertamente a necessidade de uma lei que garantisse anistia aos brasileiros expurgados pela ditadura ao longo dos seus quinze anos de existência.

A lei de anistia veio em agosto de 1979, esta foi aprovada pelo congresso nacional ainda sob o controle da Aliança Nacional Renovadora (ARENA) e com a participação do Movimento Democrático Brasileiro, MDB (o partido da oposição consentida pela ditadura militar). A lei de anistia foi sancionada pelo general-presidente em exercício no dia 28 de agosto e além de anistiar os exilados e perseguidos pela ditadura militar, também garantia anistia aos perseguidores, torturadores e esbirros a serviço do estado.

O segundo semestre de 1979 foi marcado pelos debates políticos em torno da reforma política e partidária proposta pelo regime ditatorial. Desde 1974, os grupos políticos que sustentavam a ditadura viam o poder que haviam acumulado em suas mãos desde 1964 esvair-se aos poucos. As eleições parlamentares de 1974 mostraram a insatisfação dos brasileiros com os rumos que a ditadura estava dando ao Brasil. A ARENA saíra relativamente derrotada pelo MDB, mostrando que o regime já não tinha apoio o apoio absoluto do eleitorado urbano e de parte da classe média.

Na tentativa de se manter no controle do parlamento os apoiadores do regime impuseram em abril de 1977 um pacote de “reforma” eleitoral que criava a figura do senador biônico, isto é, um parlamentar eleito indiretamente. A manobra garantiu ao governo do general-presidente Ernesto Geisel a maioria no congresso nacional e desse modo a ditadura ganhou sobrevida.

Em novembro de 1979 o governo conseguiu aprovar a reforma política e partidária que almejava. A reforma político-partidária extinguia a ARENA e o MDB, autorizando o retorno ao pluripartidarismo, não foi uma sessão tranquila, os debates foram acalorados, mas a base do governo se uniu e obteve a maioria. O país voltaria a ter vários partidos nas disputas eleitorais, mas em meio a toda esta atmosfera de reformismo político ficou evidente que a ideia da ditadura era fragmentar a oposição reunida no interior do MDB e assim neutralizar seu crescimento eleitoral.

Para impedir que sua base política também se esfacelasse com o retorno do pluripartidarismo a ditadura lançou mão da escolha indireta dos governadores dos estados, dos prefeitos das capitais e dos senadores biônicos em 1978. Fortemente articulado com as elites políticas regionais e nacionais o presidente-general João Batista de Figueiredo se manteria no poder por seis anos e suas manobras políticas definiriam os rumos que a democracia deveria tomar para retornar ao Brasil.

Enquanto as elites no poder e as bases políticas da ditadura articulavam-se e rearticulavam-se para continuar no controle das instituições republicanas, no estado do Ceará as oligarquias estaduais, regionais e locais também se reorganizavam e se recompunham politicamente para se manter no mando político e econômico do estado e dos municípios.

No final dos anos de 1970 e primeira metade da década de 1980 o Ceará vivia ainda sob o comando dos “coronéis”, lideranças políticas ligadas ao exército brasileiro e aos generais de Brasília que em consenso com as elites de poder do estado e com as forças políticas da capital da república comandavam o Ceará desde a década de 1960.

Em 1982 as primeiras eleições diretas para governador realizadas após quase duas décadas no Ceará deram vitória ao candidato dos “coronéis”. O político Gonzaga Mota foi eleito com o apoio de Adauto Bezerra, Virgílio Távora e César Cals, as três grandes lideranças políticas cearenses naquele momento. A eleição de Gonzaga Mota foi uma tentativa dessas oligarquias manterem o “Acordo dos coronéis” intacto e evitar a fragmentação do seu poder.

Ao longo do seu mandato o governador Gonzaga Mota se imporia como um infiel aos pactos firmados com os “coronéis” e romperia com estes tentando criar seu próprio grupo político. Sua atitude “independente” levou-o a embates com os grupos políticos dominantes no Ceará e em Brasília, então à medida que o governo Gonzaga Mota fracassava politicamente e economicamente, novas forças políticas emergiriam no estado do Ceará.

A presença dessas novas forças políticas ficou evidenciadas nas eleições de 1985 na capital Fortaleza. Nesse pleito foi eleita prefeita Maria Luiza Fontenele do Partido dos Trabalhadores (PT), esta eleição representou a primeira derrota do grupo politicamente hegemônico no Ceará ao longo do período da ditadura-civil militar. Em 1986 a derrota dos “coronéis” foi ampliada com a vitória de Tasso Jereissati para o governo do estado do Ceará.

Em janeiro de 1985 nas eleições indiretas para presidente da república foi eleito Tancredo Neves, o primeiro civil a eleger-se para presidir o Brasil desde 1961. A morte de Tancredo Neves em abril desse mesmo ano deixou o poder nas mãos de José Sarney, velho aliado da ditadura militar, mas que agora assumia os compromissos do presidente falecido. José Sarney se comprometeu a consolidar as instituições democráticas no país garantindo a convocação de uma assembleia nacional constituinte, o fim da censura e a dissolução dos aparatos repressivos da ditadura.

Pressionado pelos vários setores da sociedade civil (igrejas, sindicatos, partidos, estudantes, imprensa), manteve o processo de consolidação democrática e assim em 1986 foram realizadas eleições gerais para a composição de uma assembleia nacional constituinte. Tais eleições foram frutos das lutas dos brasileiros contra a ditadura e em defesa da participação política de todos os cidadãos.

As eleições para assembleia constituinte de 15 de novembro de 1986 foram marcadas pela participação de uma parcela de cidadão brasileiros que estavam excluídos da condição de sufragistas desde a constituição de 1891, os não-alfabetizados. Pela primeira vez na história do Brasil republicano pessoas que não sabiam nem ler e escrever tinham garantido seu direito ao voto.

A extensão do direito ao voto estendida aos eleitores analfabetos e aos menores de dezoito anos garantida respectivamente pela emenda constitucional n° 25 de 1985 e pela constituição de 1988, ampliou o número de pessoas aptas a votar em todo o território nacional.

Em Milagres, município do sul do estado do Ceará, localizado na região do Cariri, as transformações políticas que vieram ocorrendo na federação e no estado ao longo do período de 1974 a 1985 também provocou estremecimentos e rearranjos políticos entre as elites locais.

Ao longo das décadas de 1960 e parte da década de 1980 o poder político esteve nas mãos dos grupos oligárquicos que se apoiaram na hegemonia dos “coronéis” do Ceará. A ligação dos políticos milagrenses com os chefes das oligarquias cearenses, principalmente com o coronel Adauto Bezerra a maior liderança política do Cariri nos anos em que vigorou o regime militar, garantiu aos grupos que governaram Milagres mando político e econômico fortemente alicerçado numa práxis política clientelista e autoritária.

Em 1988 o município de Milagres era um dos mais pobres do Ceará, suas lavouras de cana-de-açúcar, mandioca, mamona e algodão que outrora tinham sido importantes para a sustentação da economia local, estavam em franca decadência ou já completamente extintas. A criação de gado outra atividade produtiva igualmente fundamental para a vida econômica de Milagres estava reduzida a alguns rebanhos nas mãos de grandes proprietários.

A concentração de terras nas mãos de poucos fazendeiros garantia a concentração de renda dentro das famílias mais tradicionais e mandatárias de longa data no município. Tanto o poder econômico quanto o poder político em Milagres se mantiveram sob o controle de apenas alguns grupos (famílias) que desde o século a república velha foram apenas se alternando no poder municipal.

Tais famílias (Leite Furtado, Alves Pereira, Coelho, Morais, Lins), ao longo do século XX, foram se alternado no controle da política em Milagres, seus interesses econômicos eram notadamente oligárquicos alinhados aos interesses das oligarquias hegemônicas do Cariri e do estado do Ceará. Para garantir a manutenção do controle político do município e o controle político das melhores terras do Cariri Oriental em suas mãos essas famílias faziam acordos políticos entre si ou contrariam laços de parentesco casando-se ou formando compadrios.

Desse modo o mando econômico e político no município ficou sob a tutela dessas poucas famílias que se garantiam utilizando os instrumentos de poder comuns a todas as oligarquias: o clientelismo, o fisiologismo e a troca de favores. Ainda na última década do século XX, as disputas de poder em Milagres ainda se encontrava nas mãos desses poucos grupos.

Segundo o sr. Francisco Ivan Rodrigues, trabalhador rural que em 1988 se elegeu o vereador mais votado de Milagres, a forma dessas famílias conservarem seu poder no município foi principalmente a prática do fisiologismo, segundo ele a escolha de amigos, familiares e partidários para ocupar os cargos públicos nas gestões municipais era comum:

 

Naquele tempo era nomeação. No tempo do prefeito Gilvan Morais ele nomeava, mas quando entrava outro prefeito o empregado saía. Prefeitura não paga bem. Naquele tempo nem pagava direito. Outro prefeito que nomeou muito foi Edimilson Coelho, mas aí quando deixou a prefeitura quem ele colocou lá saiu. Era assim. Todo mundo já sabia. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).

 

Essas nomeações eram feitas com o aval das lideranças políticas do estado e até mesmo da federação. O sistema funcionava em todo o estado e nos municípios mais pobres e cujo poder se concentrava nas mãos de um pequeno grupo de elite ele era manipulado para garantir a permanência dessas oligarquias na prefeitura ou para obter uma vitória eleitoral.


Panfleto da campanha eleitoral de 1988 quando o sr. Ivan Rodrigues se elegeu para o seu primeiro mandato. (FOTO | Arquivo do autor).



No ano de 1988 o município de Milagres possuía 23.267 habitantes, a relativa prosperidade obtida nas décadas de 1950 e 1970 com a cotonicultura já ficara no passado, a falência das lavouras algodoeiras provocadas pela falta de investimentos, pelo cuidado com a terra e principalmente pela praga do bicudo que arruinou a cotonicultura cearense desencadeara o encerramento das atividades da indústria COLINS do município.

Na década de 1980 o desemprego e a concentração de renda havia se tornado os principais fatores que lançavam milhões de brasileiros na miséria, estes por sua vez somavam-se a crise hiperinflacionária em que o país mergulhara devido a política econômica do governo federal sob a tutela do ministro da fazenda Delfim Neto.

Nos municípios do Cariri cearense a pobreza dos trabalhadores e suas famílias era alarmante, a estes grupos faltava o básico para a garantia de sua sobrevivência. Além disso, essas pessoas geralmente moravam em terra alheia arrendando roçados ou trabalhando alugado nas lavouras de algum latifundiário.

As alternâncias políticas dos tradicionais grupos de poder ligados as famílias oligárquicas da região em nada modificava a condição do trabalhador nos municípios do sertão nordestino, do Ceará ou do Cariri. Em Milagres a pobreza acentuara-se ainda mais na década de 1980, isto é, a crise das lavouras de cana-de-açúcar, algodão, mandioca, a concentração de terras nas mãos dos latifundiários e finalmente o controle da máquina administrativa pelos tradicionais grupos políticos locais levou milhares de trabalhadores do município e suas famílias para baixo da linha da pobreza.

Ao longo da segunda metade do século XX, mas principalmente após as festas do centenário de Milagres, festas estas realizadas no mês de agosto de 1946, a elite local que se aboletara no poder e tomara posse das terras do município ainda no século XIX, começou a acalentar o sonho de que Milagres se integrasse ao projeto “modernizador” e industrialista que as elites de Crato e Juazeiro do Norte estavam pondo em práticas nestes municípios.

Ao longo da década de 1950 e 1960, houve tentativas por parte dos grupos políticos locais de captar para Milagres alguns dos investimentos que o governo estadual e o federal estavam fazendo em Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.

A instalação da subseção da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) na periferia de Milagres, a construção da rodovia BR-116, margeando o perímetro urbano da sede municipal, a construção de uma escola primária e de uma escola normal, a instalação de um posto de puericultura do governo do estado do Ceará, a chegada de alguns equipamentos da administração estadual e federal no município desencadearam um relativo otimismo nesta elite local.

Acreditou-se neste período que Milagres caminharia lado a lado com as principais cidades do Cariri em direção ao desenvolvimento econômico, a modernização e a industrialização. Mas tudo isto era ilusório, pois a cidade mantinha altos índices de miséria entre a sua população trabalhadora em geral.

O sr. Francisco Ivan Rodrigues que nasceu nos fins da década de 1940 vivenciou este aparente otimismo das elites locais, filho de trabalhadores rurais pobres que haviam se empregado nas terras alheias, segundo ele seu pai “Dé Rodrigues”, plantava nas terras cedidas pelos grandes proprietários e o que colhia nestes roçados servia para pagar a “renda da terra’ e alimentar a família:

 

...Meu pai trabalhava na agricultura... [emociona-se ao recordar] ...Era eu e Nildo [irmão], meu pai trabalhando na Fazenda Nova [terras de um grande proprietário local, que foi prefeito municipal], as onze horas nós ia deixar o almoço dele e ficava lá a tarde com ele. Na roça meu pai produzia milho e algodão. Algodão na época meu pai plantava e vendia a seu Antenor [Antenor Ferreira Lins, empresário local e prefeito municipal em dois mandatos], ele, seu Antenor fornecia os inseticida e emprestava o dinheiro pra plantar o algodão, então era de obrigação os agricultor vender a produção a ele. Emprestava semente e insumo pro gado, no dia que a gente entregava a produção pra ele então ele fazia as conta e entregava o salto pra gente. O juro que ele cobrava dos empréstimo era a preço de banco, bem baratinho o juro. Milagres não tinha banco naquela época. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

O relato do sr. Francisco Ivan Rodrigues é corroborado pelas informações da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, publicada em 1964, descreve-se aí com detalhes as características econômicas, sociais e culturais dos municípios, sobre a economia de Milagres o texto informa que:

 

Município essencialmente agrícola, a maior parte da renda municipal provém da agricultura, principalmente da cultura do algodão. Em 1955, a produção atingiu 16 milhões de cruzeiros. [...] 68.250 arrobas de algodão. [...] 5.280 sacas – 60 kg – de milho (Cr$ 2.275.000,00); (Disponível em www.ibgecidades.com.br).

 

Essa lavoura tão essencial a economia do município de Milagres nas décadas de 1950, 1960 e 1970, será arruinada na década de 1980 e desaparecerá completamente na de 1990. Observamos no depoimento do sr. Francisco Ivan Rodrigues que o trabalhador rural estava submetido a determinadas obrigações para com os detentores do capital e meios de produção em Milagres.

Nesse caso, o empresário Antenor Ferreira Lins entrava com o capital, isto é, emprestava o dinheiro para o trabalhador comprar as sementes e cultivar a terra, também lhes vendia a prazo os insumos agrícolas necessário a manutenção das plantações e a proteção da lavoura contra pragas. O trabalhador em contrapartida se obrigava a entregar ao empresário a safra para que este descontasse o valor do seu investimento e devolvesse a este o saldo, isto é o lucro.

De acordo com o sr. Francisco Ivan Rodrigues o lucro era apenas relativo, isto é, chegava para pagar as dívidas contraídas ao longo do processo produtivo e sustentar a família. O sr. Francisco Ivan Rodrigues testemunha que seu pai criou oito filhos com o seu trabalho de agricultor.

Mas além de estar sujeito a este sistema de empréstimos em dinheiro a juros através do empresário que ficava com a produção ao final da colheita, o trabalhador também não era o dono do principal meio de produção num município essencialmente agrário como Milagres, a terra.

No Cariri Oriental, sub-região do Cariri onde se localiza Milagres a posse das terras agricultáveis estava nas mãos dos grandes proprietários rurais, a família Rodrigues, como muitas outras famílias de trabalhadores pobres da região não tinha a posse desse meio de produção e por isso precisava encontrar os meios necessários para garantir sua sobrevivência. O sr. Francisco Ivan informa que seu acabou cansando-se de trabalhar na roça e migrou para a sede do município onde abriu bar:

 

...Quando ele se cansou da agricultura botamos um bar. Arrendamos o prédio do ex-prefeito Wilson Leite. Depois do bar arrendamos uma sorveteria, era a Sorveteria Jamacaru, pertencia ao vereador Luís Jacó. O movimento era bom. Era bom porque vinha de Fortaleza dois ônibus da Rio Negro para o Cariri, Juazeiro e Crato as seis da manhã e outro pra Fortaleza as seis da tarde. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

A fala do sr. Ivan Rodrigues nos permite concluir que não somente o dinheiro e as terras estavam nas mãos dos principais grupos de poder locais, mas também os prédios comerciais. Na década de 1960 quando o entrevistado relata ter entre 15 e 16 anos o município de Milagres possuía uma população predominantemente rural, isto é, dos 29. 596 habitantes segundo o censo de 1950 apenas 2.297 moravam na sede municipal. No espaço urbano havia apenas 880 prédios.

O senso comercial de 1960 registra a existência de 4 estabelecimentos comerciais vendendo no grosso e 30 no varejo. Havia também uma Cooperativa de Crédito Agropecuário que pelo depoimento do sr. Francisco Ivan estava sob o controle do maior empresário local. O comércio que era relativamente intenso estendia-se por meio de relações com as cidades de Juazeiro do Norte, Campina Grande (PB) e Recife (PE).

A vida econômica das famílias dos trabalhadores pobres em Milagres, como também em todos os municípios do Cariri era sofrível, mesmo nas cidades cujos investimentos federais e estaduais eram maiores como Crato e Juazeiro do Norte a miséria campeava.

Em Milagres o índice de analfabetismo da população segundo o censo de 1980 era um dos maiores do Ceará. Segundo os dados do IBGE, publicados no começo desta década em Milagres somente 15,62% das pessoas que sabiam ler e escrever. Essa baixa escolarização dos trabalhadores e seus filhos no município explicam-se por vários fatores: pobreza, o racismo, em Milagres a maior parte da população era negra, a falta de escolas.

Há o fator do privilégio dado quase que exclusivamente aos filhos das elites locais de frequentar a escola. Desde o século XIX havia escolas particulares e professores públicos em Milagres, mas estas escolas e estes professores eram postos a serviço dos filhos dos ricos da região. Esses meninos quando atingiam certa idade eram encaminhados ao Crato, Juazeiro do Norte, Cajazeiras, Recife, Campina Grande, Fortaleza para continuar os estudos.

Os filhos dos trabalhadores pobres tinham poucas oportunidades de estudo em Milagres. Na década de 1930 foi aberta uma escola confessional das irmãs de Santa Tereza no município, mas aí eram acolhidas principalmente as filhas das famílias ricas. Na década de 1940 construiu-se uma escola pública, mas não havia vagas para todos nesta escola, além disso, muitos dos filhos de trabalhadores pobre precisavam ajudar no sustente de suas famílias.

O sr. Francisco Ivan Rodrigues nos deu um testemunho de como era difícil estudar em Milagres na década de 1950 e 1960:

 

No estudo e na criação havia muita dificuldade. Se a gente vinha da Gameleira [zona rural distante 14 km da sede municipal], que nessa época eu vim morar na Veneza [sítio da zona rural distante 10 km da sede], para ficar mais perto do estudo que era no Rosário [distrito do município com cerca de 445 habitantes nessa época], minha primeira escola foi no Rosário com Dona Santinha, a mãe de Eudinha, ela foi minha primeira professora. Eu encontrava muita dificuldade. Mas meu pai se dedicou a mim. Naquele tempo era fazendo o ABC. Era um quarto muito pequeno onde estudavam uma faixa de 10 a 12 alunos, meninos e meninas. Eu continuei os estudos, aí viemos morar aqui em Milagres e minha segunda professora foi Dona Nazaré, uma professora muito religiosa e foi aí o primeiro ponto de partida da minha vida. Esta escola funcionava improvisada no antigo prédio da União. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

 

Ter a oportunidade de se escolarizar em Milagres era um privilégio de poucos, o sr. Ivan Rodrigues foi um dos poucos filhos de trabalhadores pobres que conquistaram este direito. Segundo ele foi graças ao esforço do seu pai, trabalhador da roça que se impunha a si a obrigação de sustentar a família sozinho com o seu trabalho para garantir aos filhos a oportunidade do estudo.

O sr. Francisco Ivan Rodrigues reconhece a importância que a escola teve na sua vida, na sua fala podemos ver que ele entende que a escolarização foi um ponto de partida para garantir que as oportunidades que lhe viriam até as mãos nas décadas de 1970 e 1980 fossem devidamente aproveitadas. Tendo tido a condição e a ajuda paterna para se escolarizar Ivan Rodrigues pode entrar em contato com uma parte do mundo social e político de Milagres que permaneceria vedado aos outros filhos de trabalhadores pobres que não tiveram a possibilidade de frequentar as escolas.

A década de 1970 marcou no município de Milagres a consolidação da política de alternância no poder dos grupos oligárquicos locais alinhados com o “acordo dos coronéis” do Ceará. Ao longo desta década e da década seguinte, 1980, os mesmos nomes foram se revezando no poder municipal. Este revezamento garantiu que esta elite local assumisse não somente a posição de mando político, mas também o controle econômico no município.

Segundo o sr. Francisco Ivan Rodrigues a cidade de Milagres era parada, o comércio era fraco, e havia muita dificuldade econômica:

 

...Milagres era cidade fraca, as coisas tudo muito difícil, comércio fraco, era tudo muito parado, tinha budega, tinha feira, lá vendia farinha, arroz, feijão. Existia a budega de seu Zé Vieira, era mais movimentada. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

Esse depoimento expõe uma realidade que a elite de Milagres procurava ofuscar, pois os grupos de poder que ocupavam o mando no município estavam constantemente imersos nos devaneios de progresso e modernidade da cidade. Acreditava-se que as alianças que estes mandatários entretinham com os potentados oligarcas do Cariri, principalmente aqueles que estavam no controle da política cearense traria benefícios ao município.

Evidentemente que estes benefícios caso viessem não seria para beneficiar os trabalhadores pobres de Milagres, mas seriam um meio de garantir a permanência da ordem social oligárquica na cidade. Assim, a medida que alguns equipamentos estaduais e federais foram sendo instalando em Milagres, os postos de emprego foram logo sendo distribuídos entre os parentes, amigos e partidários das elites de poder local.

Tradicionalmente a vida política do município esteve sempre sob o controle dos mesmos grupos, tais famílias como se disse acima pactuaram entre si uma alternância de poder apenas entre elas, isto é, não havia espaço para outros interesses políticos que não fosse aqueles compromissados com a manutenção das alianças oligárquicas do Vale do Riacho dos Porcos.

Manter o controle sobre as terras, os repasses federais e estaduais, as verbas do estado e do governo federal e dos empregos era o único interesse dessas elites de poder em Milagres e igualmente em todo o Cariri. A atuação apenas pontual e praticamente eleitoreira na vida social e econômica da população pobre objetivava evidentemente manter as classes trabalhadoras sob o julgo oligárquico e sem dúvida essas elites foram muito bem-sucedidas em Milagres, pois no limiar do século XXI elas ainda se mantinham no poder e muito mais intensamente do que antes.

Nas décadas de 1980 e 1990 o clientelismo e o fisiologismo se fizeram tão intensos na política do município que os eleitores ficaram reféns da troca de favores com o gestor municipal. Durante quase três décadas praticamente não houve mudanças de governo na gestão do município de Milagres, isto é, um grupo de poder assumiu o controle da política do município em 1988 e nele se manteve fazendo sucessivos arranjos e rearranjos internos sob a complacência das lideranças políticas do estado do Ceará.

As eleições municipais de 1988 foram realizadas no 15 de novembro e ocorreram logo após a promulgação da “constituição cidadã”. Quando este pleito se deu o país estava imerso nos apaixonados debates dos parlamentares constituintes e a sociedade brasileira estava inebriada com os sonhos de uma democracia sólida e moderna. Acreditava-se que a nova constituição e a Nova República acabariam com o velho Brasil tecnocrata, clientelista, corrupto, fisiologista, que as práticas políticas arcaicas iriam ficar no passado.

As eleições municipais seriam um ensaio para as eleições presidenciais de 1989 e sem dúvida mostrariam uma democracia renascida e forte. Foi assim que a mídia e o governo federal venderam a imagem das eleições municipais de 1988. Mas logo ficou evidente que as continuidades, as práticas eleitorais e eleitoreiras arcaicas eram mais fortes que os artigos da constituição federal.

Em 1982 o político Francisco Gilvan Morais foi eleito pela segunda vez prefeito de Milagres numa eleição acirrada que lhe deu a vitória com pouco mais de cem votos de diferença para o segundo lugar, o médico Helosman Sampaio de Lacerda. No entanto essas disputas eleitorais não eram entre lados com dois projetos diferentes para a administração municipal, o que se percebe é que na impossibilidade de conciliar seus interesses pessoais de poder os grupos se fragmentaram, isto é, o PDS (Partido Democrático Social), herdeiro das bases da ARENA e que será o abrigo dos aliados da ditadura e dos ‘coronéis” do Ceará, dividiu-se em Milagres em três blocos: PDS – 1 que ficou sob a liderança de Francisco Gilvan Morais, PDS – 2 que lançou Helosman Sampaio de Lacerda candidato e PDS – 3 que trouxe o nome de Edmilson Coelho Pereira para a disputa.

Esse bloco de poder obteve 95% dos votos, votos estes que deu a vitória a Francisco Gilvan Morais com 2.538 votos. Tanto o prefeito eleito quanto o candidato Helosman Sampaio de Lacerda que ficara em segundo lugar, como também Edmilson Coelho Pereira que obteve 924 votos provinham dos mesmos grupos de poder que comandavam o município desde as primeiras décadas do século XX.

Eram membros das tradicionais famílias de Milagres, detentoras de terras, casas de comércio, fazendas de gado e que vinham monopolizando a política municipal ao logo de boa parte do século XX. O sr. Francisco Ivan Rodrigues que se colocara nas eleições de 1982 ao lado do grupo de Gilvan Morais, recorda-se de como se davam das disputas eleitorais no município:

 

A política? Em Milagres? Antes de eu entrar? Era acirrada. Tinha dois partidos UDN e PMDB [MDB), depois foi que mudou, ficou sendo PSD que era a UDN e PMDB. Da UDN era seu Antenor e seu Sandoval, tinha Gilvan Morais que foi mais na frente um pouco e tinha Edmilson Coelho que foi do PSD. Orlando Sobreira do PMDB, antigo PMDB [isto é, MDB], aí foi depois que chegou lá em Helosman no PMDB. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

Essas composições partidárias a qual alude o sr. Ivan Rodrigues serviam para abrigar os interesses de poder e econômicos dos grupos oligárquicos hegemônicos nos municípios do Cariri. O UDN (União Democrática Nacional) que foi o partido dissolvido em 1965 vai compor boa parte do ARENA onde se abrigarão os políticos ligados ao regime militar e aqui no Ceará aos “coronéis”.

O ARENA elegeu em Milagres todos os prefeitos de 1966 a 1976: Elísio Leite (1966 – 1970), no mandato deste prefeito todos os vereadores eleitos em Milagres pertenciam somente ao ARENA. Em 1970 não houve disputa eleitoral em Milagres, pois o farmacêutico, proprietário rural e comerciante Edmilson Coelho Pereira concorreu sozinho ao cargo de prefeito. Foi eleito com 2008 votos e seu partido o ARENA elegeu todos os vereadores.

O sr. Ivan Rodrigues descreve o prefeito Edmilson Coelho descreve-nos este político:

Ele era um prefeito bom não perseguia ninguém, não construiu muito porque a verba era pouca, mas fez alguma coisa pelos correligionários. Criou algumas obras, deu emprego pra quem pedia. Mas não tinha muito emprego. Tinha muita briga política, mas dr. Edmilson era uma pessoa calma. Não entrava nas disputas, acalmava. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

Essas conciliações eram fundamentais para garantir o revezamento de poder dentro do mesmo grupo, quando na década de 1980 elas se tornarem impraticáveis as disputas internas criarão outros arranjos políticos em Milagres, evidentemente que tais arranjos não significarão que o poder tenha efetivamente trocado de mãos, mas que dentro desses grupos tradicionais de interesses novos atores foram surgindo e exigindo para si o protagonismo político.

Nas eleições municipais de 1972 mais uma vez o ARENA venceu mais uma vez elegendo Francisco Gilvan Morais com 1.452 votos, mas o MDB – 1 cujo candidato foi Orlando Sobreira obteve 880 votos e o MDB – 2 obteve 324 votos para o candidato Manoel Alves Grangeiro.  Todos eles provinham das famílias ricas e donas de terra e gado no município.

O MDB, que era o partido de oposição consentida pela ditadura fragmentou-se em dois blocos de interesses e não chegou a representar uma séria ameaça para Gilvan Morais e seu bloco arenista que contava com o apoio do coronel Adauto Bezerra. Nesse pleito municipal o ARENA obteve seis vereadores e o MDB elegeu José Severino do Nascimento para uma das sete vagas da câmara municipal.

No ano de 1976 o MDB de Milagres se fragmentaria mais ainda e se subdividir-se-ia em três blocos, o ARENA conciliado alcançaria a vitória de Elísio Leite como prefeito e Edmilson Coelho Pereira como vice-prefeito além disso, o partido governista de direita elegeria todos os vereadores, a tática de dividir os adversários utilizada em 1972 por Gilvan Morais e seu grupo e agora ampliada consolidava o poder das elites locais no município.

A reforma político-partidária de 1979 dissolveu a ARENA e o MDB, mas o PDS, partido fundado pelos aliados do presidente João Batista de Figueiredo em janeiro de 1980 abrigaria os interesses da direita brasileira e seus anseios de continuísmo tanto na federação, quanto nos estados e município.

A transição da ditadura para a democracia projeto político empreendido pelo presidente da república com apoio das forças conservadoras deveria ser efetivado de maneira a não permitir que houvesse rupturas bruscas na estrutura política nacional. No estado do Ceará, essa transição deveria realizar-se de modo a garantir a conservação do poder nas mãos das oligarquias estaduais. A eleição de Gonzaga Mota em 1982 para o comando do estado com o apoio dos “coronéis” foi uma tentativa de preservar as bases e apaziguar os possíveis dissidentes.

No entanto, o caminho tomado pelo governador Gonzaga Mota que foi o de afrontamento, enfrentamento e autonomia com relação aos “coronéis” levaram seu projeto político ao fracasso e possibilitou que um novo grupo político do estado do Ceará, agora liderado pelos jovens empresários Tasso Jereissati e Ciro Gomes emergissem como forças políticas.

As eleições estaduais de 1986 representaram a chegada ao poder da chamada “Geração Cambeba”, líderes políticos ligados ao setor industrial do Ceará que fizeram sua carreira política na década de 1980 e 1990 sustentados pelo discurso da modernização na política (contra os coronéis), a modernização do estado e o avanço da economia cearense voltada prioritariamente para o setor industrial e de bens e serviços.

Em 1988 a ditadura já desmoronara e o Brasil voltara a ser uma democracia, promulgara-se uma nova constituição, pessoas não-alfabetizadas haviam ganho o direito ao volto, pairava na alma pública o sonho de um país democraticamente forte e uma república moderna. Portanto foi num clima de otimismo que os brasileiros foram as urnas para eleger os prefeitos no dia 15 de novembro daquele ano.

Segundo o sr. Ivan Rodrigues o prefeito Francisco Gilvan Morais eleito em 1982 pelo PDS – 1 havia sido um bom gestor:

 

Gilvan Morais pra educação foi um dos melhores prefeitos, construiu muito grupo escolar. Gilvan Morais conseguiu muito calçamento, ele também conseguiu por meio de Adauto Bezerra a COELCE, o BEC, o BEC também teve a ajuda de seu Antenor Lins. Ele fez muita obra na periferia. Gilvan ele fazia obra. Gilvan fez uma escola no Valdivino, na Unha de Gato e Triângulo, recuperou as praças. Ele gostava de construir. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

         

No depoimento do sr. Francisco Ivan Rodrigues transcrito acima ele descreve o prefeito Gilvan Morais como um construtor, um fazedor de obras. Esta será uma prática política comum no Brasil das décadas de 1970 e 1980. Os administradores públicos serão avaliados pela quantidade de obras que construírem durante seu mandato. Mas enquanto os investimentos em obras e o empenhamento de verbas públicas para a execução destas obras serviam de instrumento para consolidar este ou quele prefeito como um bom gestor, os índices sociais, educação e saúde principalmente, bem como o aumento da miséria eram deixados em segundo plano.

No começo desta década de 1980 a crise da lavoura algodoeira e canavieira que eram as principais bases da economia de Milagres já estava em franca decadência, o cultivo de cereais como milho, arroz, feijão que haviam sido muito importantes pelos menos até a década de 1970 já não apresentava o mesmo volume produtivo, a concentração de terras nas mãos de um pequeno grupo de famílias ricas mantinha milhares de trabalhadores e suas famílias na miséria. 

O censo agropecuário de 1980 mostra a concentração das terras de Milagres nas mãos desse pequeno grupo de proprietários. Segundo os dados deste censo em Milagres apenas 1.137 estabelecimentos rurais estes estavam nas mãos de apenas 1.036 proprietários, mas a população economicamente ativa do município era de 14.300 pessoas em sua grande maioria vivendo na zona rural.

O efeito desta concentração de terras e renda, desta concentração do principal meio de produção para uma população eminentemente rural, isto é, a terra, será terrível, pois conduzirá milhares a sobreviver abaixo da linha da pobreza.

Sem terras e sem perspectivas de empregos e renda num município pobre do interior cearense os trabalhadores de Milagres procurarão migrar para outras regiões e estados do Brasil. Intensifica-se nessa época a prática dos trabalhadores do sexo masculino, arrimos das famílias pobres deixarem sua prole e esposas vivendo na zona rural ou na periferia do município para irem cavar o sustento de sua família no Sudeste ou Centro-oeste do país.

Apesar da construção de mais de uma dezena de escolas testemunhadas acima pelo sr. Francisco Ivan Rodrigues, na zona urbana e na zona rural do município ao longo dos seis anos de mandato do prefeito Gilvan Morais o analfabetismo em Milagres regrediu pouco entre 1980 e 1990.

No começo da década de 1970 o percentual de pessoas não-alfabetizadas em Milagres era de 81% e pelos dados do censo de 1990 esse índice era de 72,5, em duas décadas a queda nos índices de analfabetismo do município foram baixos e isto representava um déficit social enorme e um grave problema. Este alto índice de analfabetismo agravava ainda mais as condições de pobreza dos trabalhadores e seus filhos, pois sem a devida escolarização ficava difícil estes saírem do círculo da miséria.

A baixa qualidade de vida da população pobre do município refletia-se igualmente nas precárias condições de saúde pública. A mortalidade infantil era alta, os dados coletados informam que de cada 1000 crianças nascidas vivas em Milagres pelos menos 45 não chegavam aos cinco anos de idade. A população pobre estava privada dos serviços básicos de saúde, também não havia abastecimento regular de água nem na zona urbana e tampouco na zona rural.

A renda média do trabalhador no município de Milagres de acordo com o senso de 1990 era de aproximadamente NCz$ 650,00 mensais, nesse mesmo ano o salário-mínimo foi fixado pelo governo federal em NCz$ 1.283,95, isto significa que a maioria dos trabalhadores do município sobrevivia com menos de um salário por mês, levemos em consideração de que neste período o país passava por uma terrível crise hiperinflacionária que corroía a renda desses trabalhadores mais pobres.

Foi neste contexto de pobreza, concentração de renda, decadências das lavouras, altos índices de analfabetismo e mortalidade infantil que as eleições de 1988 foram realizadas em Milagres.

Com o fim da ditadura em 1985 e a derrota dos “coronéis” do Ceará, devido a vitória eleitoral da “Geração Cambeba” em 1986, algumas reordenações partidárias haviam sido feitas nos municípios cearenses e evidentemente também em Milagres.

A vitória de Tasso Jereissati em 1986 para o cargo de governador do estado do Ceará através de uma campanha de franco ataque aos “coronéis” que haviam governado o estado por mais de duas décadas criou uma atmosfera de otimismo nos setores progressistas cearenses. Logo o discurso da “mudança” e da modernização das práticas políticas foi adotado por vários políticos em todo o estado.

Foi seguindo o modelo de campanha adotado por Tasso Jereissati que o médico Helosman Sampaio de Lacerda apresentou mais uma vez sua candidatura ao cargo de prefeito municipal de Milagres em 15 de novembro de 1988. Sua campanha foi pautada pelo discurso da mudança, apresentou-se como a renovação da política em Milagres e como um novo fôlego para o combalido município caririense.

Nesse pleito o grupo político do prefeito Gilvan Morais apoiou a candidatura de outro médico de Milagres, Fernando Alves Tavares, este lançou-se candidato pelo PMB (Partido Municipalista Brasileiro). Numa disputa que até hoje é rememorada pelos que dela participaram como a mais acirrada do município, Helosman venceu com 5.288 e Fernando Tavares obteve 5.131 votos.

O médico Helosman formara aliança com o ex-prefeito Edmilson Coelho Pereira que aceitou compor a chapa do PMDB como vice-prefeito. Essa aliança mostrou-se decisiva, pois segundo aqueles que participaram da campanha fortaleceu a candidatura de Helosman que viu no farmacêutico e ex-prefeito um aliado de significativa importância para conquistar o comando do município.

Nesse pleito de 1988 o sr. Francisco Ivan Rodrigues se elegeria o vereador mais votado de Milagres. A sua vitória nas urnas segundo ele foi uma conquista pessoal, pois fora sempre um trabalhador, um homem humilde que proviera da roça e agora chegava à câmara municipal reconhecido pelos eleitores como alguém digno da confiança deles.

Além do seu trabalho e da sua humildade, o sr. Francisco Ivan Rodrigues afirma que um dos maiores responsáveis por sua eleição foi o então prefeito Francisco Gilvan Morais de quem ele e sua família era aliado. O sr. Ivan recorda-se que co começo da década de 1980 seu pai que era próximo ao empresário e político de Milagres o sr. Antenor Ferreira Lins solicitou deste um emprego público para o filho.

Obtendo este emprego ele, na época com seus quase trinta anos vai fazendo os amigos necessários para conquistar a confiança dos chefes políticos locais e estima dos grupos de poder que gravitavam em torno destas lideranças regionais:

Nessa primeira campanha minha eu trabalhava lá em Arineuma, lá no Lions, eu era porteiro. Aí eu comecei lá no Lions, meu pai muito amigo de seu Antenor, aí Arineuma conseguiu me levar pra lá, onde eu ajudava muito as pessoas. Quando o povo viu meu trabalho lá no Lions. Eu com meus 20 a 30 anos eu trabalhei com tudo. Gilvan Morais me chamava pra fazer telha e tijolo lá em Cipriano, aí tinha uma porcentagem pra mim. Eu ia sempre ajudando quem me procurava E eu lá na escola Geciana e Eva me incentivaram a me candidatar a vereador, eu disse que não tinha dinheiro. Aí Arineuma disse que ia falar com o pai dela para me apoiar e então o pai dela falou com seu Gilvan Morais. Eu comecei a trabalhar com Gilvan Morais em 1976, ele era prefeito, mas eu não era ainda vereador, mas eu estava do lado dele. Quando ele foi eleito eu trabalhei com ele. Quando falaram com ele seu Gilvan Morais me chamou e disse que tinha recebido uma verba pra construir noventa banheiros. Pra construir esses banheiros na periferia ele chamou os vereadores dele, disse que ia dar a cada dez ordens da construção de banheiro, mas aí esses vereadores que eu não quero citar o nome não aceitaram porque queria mais ordem. Então ele me deu essas ordens e eu comecei a escolher na periferia quem é que precisava desses banheiros. Fui então trabalhando, aí as pessoas começaram a falar no meu nome e foi assim que Gilvan Morais disse – “você vai ser meu candidato” – eu disse pra ele que não tinha dinheiro pra concorrer, mas seu Gilvan Morais disse que ia me ajudou e ajudou muito, me deu camisa, me deu o dinheiro pra campanha. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

         

O depoimento do sr. Francisco Ivan Rodrigues testemunha a carência em que vivia a população do município e como essa falta de meios que lhes garantisse alguma segurança econômica ou qualidade de vida era utilizada como moeda de troca eleitoral.

A troca do voto por um favor ou um valor em dinheiro muito comum segundo o próprio sr. Francisco Ivan Rodrigues nesta eleição, mas principalmente nas eleições posteriores de Milagres tornou-se uma tática da população para auferir ganhos, isto é, lucrar de alguma maneira com as disputas de poder pelos grupos oligárquicos locais.

A configuração que as disputas de poder assumiram nos municípios brasileiros no século XX e principalmente no período da ditadura militar obrigava a população a criar estratégias de trocas entre eles e os políticos. Segundo o sr. Ivan Rodrigues em sua primeira eleição de 1988, não precisou gastar com nada, o eleitor se comprometeu em votar nele e o elegeu, mas nos anos seguintes ele observou as eleições ficarem cada vez mais caras, à medida que o gestor municipal passou a governar exclusivamente através da troca de favores (consultas médicas, empregos, ajudas em dinheiro, aluguéis, distribuição de cestas básicas), o eleitor passou a barganhar cada vez mais vorazmente com seu voto:

...depois o povo só votava se desse dinheiro. Em 92 para a eleição de prefeito correu foi muito dinheiro. Um candidato andava nas casas e deixava o dinheiro com o marido. Depois foi que se percebeu que a mulher também queria receber, aí se ia lá mesma casa e entregava mais dinheiro a mulher, então a mulher fazia uma briga e dizia pro marido que não votava no político dele. Foi assim que a campanha aconteceu, o eleitor mudando de lado por causa do dinheiro. Mas em 88 já tinha sido parecido. Teve muito dinheiro nessa campanha. Veio um político de Mauriti e investiu muito dinheiro aí conseguiram vencer. Depois com esse negócio de querer ficar na prefeitura governando né dar nisso, tem que ter dinheiro. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).

 

 

O que se percebe é que o eleitor desacreditado na possibilidade de obter qualquer ganho político daqueles que se apresentavam como seus representantes passaram a agir de forma a aproveitar-se das eleições para impor aos grupos em disputa seu “valor”. Era comum segundo o depoimento do sr. Ivan Rodrigues que no dia da eleição após votar os eleitores se cumprimentarem na rua com a seguinte frase: “Já fui votar e perdi meu valor”.

Lucrar com o voto, ainda que provisoriamente e impor aos donos do poder seu valor de eleitor ainda que de forma relativa por meio dessas trocas de favores e dinheiros passou a ser comum em Milagres e nas outras dezenas de municípios do Cariri e do Ceará. Dessa forma estabelecia-se entre o eleitor e o político pleiteante a um cargo público um acordo que era firmado através da frase: “me ajude que eu te ajudo.”

Eleito vereador nas eleições de 1988, as eleições que representaram a pulverização da prática de revezamento no poder dos chefes das oligarquias locais, o sr. Ivan Rodrigues conta que todo o seu mandato foi dedicado a ajudar o povo. Sendo vereador de oposição ao prefeito eleito ele tratou de fazer sua parte como fiscalizador das obras do gestor:

 

Eu tinha Geraldo César do meu lado, era um pequeno empresário de Milagres que me ajudava dando as coisas quando eu precisava. Eu era oposição a Helosman porque toda vida eu fui aliado de seu Antenor e eu não gostava de faltar com a minha palavra. Quando eu dava minha palavra pronto. Nós fazia só fiscalizar, eu e Lacordaire, Marco Aurélio, a gente fiscalizava. Alguém dizia êi! O prefeito tá fazendo uma estrada lá no Valdevino e a gente ia lá fiscalizar, se tinha irregularidade a gente denunciava, não dava em nada, mas a gente fazia esse trabalho de denunciar a corrupção. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista I, setembro de 2021).

 

                   

No seu depoimento afirma que continuou seu trabalho de ajudar quem precisava, o mesmo que já vinha fazendo desde que havia começado a trabalhar com Francisco Gilvan Morais. Agora o seu mandato de vereador seria segundo ele usado para ajudar quem procurava ele. E numa cidade carente de serviços básicos e onde a maior parte da população vivia sob o mando de grupos de poder que desde muitas décadas utilizavam a troca de favores para se garantir no mando as pessoas pobres passaram a procurá-lo intensamente. O sr. Ivan Rodrigues afirma que não conseguia dizer não a quem o procurava, percebia que ‘um pai de família ou mãe de família era carente, então dava a ajuda que eles precisavam.’

Para demonstrar que não ganhou nada sendo vereador durante os oito mandatos consecutivos ele nos expõe sua declaração de bens ao TSE. Afirma igualmente que quando entrou para a política tinha gado e que este foi reduzido hoje a algumas “cabeças”. Vendeu também terras e nunca utilizou o seu salário de vereador para comprar uma casa ou melhorar sua moradia, comprar carro, pois até hoje seu único meio de transporte é uma velha bicicleta.

O seu salário de vereador era usado quase integralmente para ajudar quem procurava ele, pessoas que precisavam da sua ajuda:

 

...pode olhar, eu sou o único vereador que não tem nada, que não conseguiu nada com o mandato. Pergunte a Zé Crente, meu cunhado, é dono da oficina, ele vai dizer, ele ainda diz –“Ivan tinha era muito gado, o gado dele fechava uma rua”. – Hoje eu não tenho mais. O que eu tenho eu comprei com o meu trabalho aqui na escola. Mas eu ajudava muito as pessoas, elas precisavam muito, então eu ajudava. (Francisco Ivan Rodrigues, Entrevista III, julho de 2023).


Panfleto da campanha eleitoral de 1982 quando o sr. Ivan Rodrigues se elegeu para o seu segundo mandato. (FOTO | Arquivo do autor).


REFERÊNCIAS

Entrevista com o senhor Francisco Ivan Rodrigues, realizada em 03 de setembro de 2021.

https://www.tre-ce.jus.br/eleicao/resultados

www.ibgecidades.com.br