Nos
últimos anos, pesquisadores e pesquisadoras dos Estudos de Gênero vêm sofrendo
uma série de ataques (alguns, violentos) contra as temáticas que estudam e
problematizam. A princípio, nada de novo, uma vez que os Estudos de Gênero
foram durante muito tempo marginalizados por setores dentro das próprias
universidades. No entanto, o aumento da propagação de discursos equivocados
sobre o campo nos últimos anos, especialmente no Brasil, chama a atenção para
um de seus principais combustíveis: a desinformação.
A
fim de desfazer certas confusões – algumas mal-intencionadas – proponho
discutir o que é, afinal de contas, o conceito de gênero. De uma forma simples,
direta e acadêmica, pretendo contribuir para um debate bastante pertinente
tanto no campo das pesquisas como nos debates públicos que ocorrem pelo país.
Gênero e Feminismos
Não
é possível entender o que são Estudos de Gênero sem compreender o movimento
feminista, que começa no cenário internacional no século XIX e reivindica
direitos civis para as mulheres. É muito reconhecida a luta pelo direito ao
voto, mas é importante lembrar que essa não era a única reivindicação – as
mulheres tinham pouco direitos e muito pelo que lutar. A mulher casada, por
exemplo, era considerada pela lei brasileira “incapaz” e sob tutela do marido –
o que somente foi alterado na legislação em 1962, com a Lei 4.121.
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Diversidade e respeito são questões importantes na perspectiva social dos Estudos de Gênero. (Foto: Pixaby). |
No
espaço universitário, os feminismos – no plural devido à heterogeneidade do
movimento – iniciaram uma trajetória em meados do século XX. Na História, por
exemplo, a incorporação da categoria mulher está relacionada a todo um
movimento historiográfico de renovação no campo de conhecimento. A história demográfica,
a história da família e a ideia de uma história “vista de baixo”, na qual
também deveriam ser contadas as vidas de pessoas comuns, de operários e
operárias, de camponeses e camponesas, entre outros, contribuíram
significativamente para a compreensão de que era necessário se escrever sobre
Mulher – nesse primeiro momento ainda no singular, ou seja, ainda pensada como
uma categoria homogênea.1
Entre
o fim dos anos de 1970 e o início da década de 1980 as historiadoras feministas
– principalmente ligadas ao feminismo norte-americano – começaram a
problematizar as particularidades que existiam entre elas próprias. A categoria
Mulher já não dava conta de explicar a multiplicidade de experiências e
subjetividades. Joana Maria Pedro argumenta que as mulheres negras,
particularmente, questionaram o gesto excludente da escrita da História das
Mulheres, revelando as fraturas internas não só da História, mas do próprio
feminismo acadêmico ao mostrar as armadilhas e ilusões da categoria Mulher.
Desde então, feministas como Angela Davis e Bell Hooks, colocaram o dedo na
ferida ao dizer que as mulheres não viviam da mesma forma a experiência de ser
mulher. Outras variáveis precisavam ser levadas em consideração, como classe,
cor, escolaridade, dentre outros aspectos que precisavam ser compreendidos.
Gênero: que negócio é esse?
É
neste contexto que chegamos à questão do uso da palavra Gênero no final da
década de 1980. Quando Joan Scott publicou seu famoso artigo “Gênero: uma
categoria útil de análise”, na American Historical Review, em 1986 (clique para
ver o original em inglês e traduzido para o português em 1990), ela visava
demonstrar que a imensa produção da História das Mulheres havia chegado a um
impasse: ou ficava numa categoria suplementar ao mainstream historiográfico, ou
forçava uma transformação no interior da disciplina e do conhecimento
histórico. Defendendo a segunda posição, Scott então propõe o gênero como
categoria de análise e não como um tema ou um objeto. E como categoria, ela
propõe a perspectiva de gênero para análise, inclusive, das estruturas e dos
discursos políticos:
O
gênero é uma das referências recorrentes pelas quais o poder político tem sido
concebido, legitimado e criticado. Ele não apenas faz referência ao significado
da oposição homem/mulher; ele também o estabelece. Para proteger o poder
político, a referência deve parecer certa e fixa, fora de toda construção
humana, parte da ordem natural ou divina. Desta maneira, a oposição binária e o
processo social das relações de gênero tornam-se parte do próprio significado
de poder; pôr em questão ou alterar qualquer de seus aspectos ameaça o sistema
inteiro (SCOTT, 1990, p.92).
Scott
aponta, de maneira muito interessante, para um dos eixos mais polêmicos que os
Estudos de Gênero enfrentam hoje no Brasil. Não se trata de negar as diferenças
sexuais e corporais entre homens e mulheres, mas de compreendê-las não como
naturais e determinadas, mas como relações sociais e de poder, que produziram
hierarquias e dominação. Para Scott, gênero é a organização social das
diferenças sexuais. É um saber que estabelece significados para as diferenças
corporais.
Já
em 1989, Judith Butler publica “Gender Trouble", que no Brasil foi lançado em
2003 com o título “Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade",
mostrando o caráter performativo do gênero. Nele, Butler questionou a ideia de
que sexo está exclusivamente ligado à biologia e de que gênero relacionado à
cultura, como o debate era apresentado até aquele momento por boa parte das
pesquisadoras e pesquisadores da área. Ela questionou a ideia de que o gênero
fosse uma espécie de “interpretação cultural do sexo”.
Para
Judith Butler, a ideia de performatividade de gênero compreende a noção de que
sexo e gênero são discursivamente criados e que, ao se desnaturalizar o sexo,
deve-se também desnaturalizar o gênero. Portanto, não se trata de negar a
existência de sexo ou de gênero, mas de historicizar tais diferenças,
procurando analisar as estratégias discursivas que as consolidaram. Nesse ponto,
a meu ver, encontra-se uma das contribuições mais significativas da obra de
Judith Butler: dar visibilidade ao fato de que existem corpos que “importam” –
corpos enquadrados no sistema heteronormativo – e corpos que “não importam” – o
que a autora chama de corpos abjetos. Esses, dentro da lógica binária, podem
ser vistos como “corpos desviantes”, culturalmente inintelegíveis e que ameaçam
as estruturas de poder. Pessoas gays, lésbicas, transexuais e intersexuais
acabam por demarcar fronteiras que não deveriam ser cruzadas dentro do sistema
heteronormativo e, dentro desse sistema excludente, seus corpos não são
aceitos, ou melhor, a existência dessas pessoas não é aceita. Tal exclusão
acabou por colocar em risco a vida dessas pessoas, gerando intolerância, mortes
e inúmeras outras violências.
Assim,
Butler propôs a reflexão sobre as armadilhas na naturalização do gênero. De lá para cá, se passaram 30 anos. E todo
esse período foi de muita luta para a consolidação de um campo de investigação
acadêmica.2
A
expressão “ideologia de gênero”, que tanto tem sido empregada nos dias de hoje
para criticar os Estudos de Gênero, não é uma categoria acadêmica ou um objeto
de pesquisa. Como vimos, os pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam o
entendem justamente no contrário: que gênero não é uma ideologia. Para eles, a
expressão “ideologia de gênero” é estranha, uma anomalia. Quem fala (e muito)
em “ideologia de gênero” são os movimentos conservadores – muitas vezes com
explicações falsas e sem fundamento.
Estudos
de gênero hoje
Os
Estudos de Gênero nunca tiveram como objetivo modificar a sexualidade de
ninguém – até porque os pesquisadores e pesquisadoras da área não acreditam que
a orientação sexual ou a identidade de gênero das pessoas sejam modificáveis
como querem fazer crer seus detratores. Nunca defenderam pedofilia ou
incentivaram a erotização infantil. Nunca foram “ideologia”.
Os
Estudos de Gênero nunca tiveram como objetivo modificar a sexualidade de
ninguém. Estudar Gênero significa estabelecer um recorte sobre aspectos da
realidade social existente – no presente e/ou no passado – que têm como peça
fundamental a organização de papeis sociais baseada numa imagem socialmente
construída acerca do que foi consolidado como sendo masculino ou feminino por
exemplo. Portanto, procura compreender como a ideia de uma masculinidade
hegemônica influencia nas relações e restringe as opções sociais de mulheres,
de crianças e dos próprios homens, e propor estratégias de libertação. Aqui,
nos Estudos de Gênero, estão as pesquisas sobre violência doméstica, violência
sexual, feminicídio, desigualdade econômica e outras assimetrias relacionadas às
desigualdades de gênero.
Aliás,
os Estudos de Gênero possuem como uma de suas principais características a
interdisciplinaridade, o que amplia seus temas de pesquisa. Diferentes áreas,
não só das Ciências Humanas, mas também as Ciências Sociais Aplicadas, as
Ciências da Saúde e as Ciências Exatas vêm se dedicando às pesquisas em Gênero.
Trata-se,
ainda, de respeitar as diferenças sexuais e enxergar sujeitos históricos que
têm sido apagados das narrativas históricas: gays, lésbicas, trans,
intersexuais e bissexuais. Significa compreender que o “mundo privado” também é
político e que, portanto, o direito à cidadania deve efetivamente ser de todas,
todos e todes.
Pesquisas
sobre sexualidades existem dentro dos Estudos de Gênero, porém – e parece ser
necessário repetir – não se trata de conspirar para mudar a orientação sexual
de ninguém. As pesquisas sobre sexualidade variam em quantidade proporcional e,
na maioria das vezes, procuram analisar trajetórias, sociabilidades ou mesmo
subjetividades dos indivíduos relacionando tais conceitos à sexualidade – sejam
os indivíduos heterossexuais ou não.
Também
são temas dentro dos Estudos de Gênero: a maternidade, os sentimentos, a
religiosidade, a assistência, a participação política, os racismos, as
interseccionalidades e o próprio movimento feminista, isso só para citar
algumas poucas áreas.
Não
existe ideologia de gênero! E se os Estudos de Gênero puderem impactar de forma
transformadora em nossa sociedade, será na construção de um mundo mais justo e
igualitário. Um mundo em que meninas não sejam mortas por namorados. Um mundo
sem violência doméstica, sem exploração sexual. Um mundo em que ninguém tenha
medo da igualdade de direitos e deveres.
Notas
1
É importante destacar, assim como fez Joana Maria Pedro (2011), que não existe,
pelo menos no Brasil uma total linearidade entre as categorias mulher,
mulheres, gênero. Tais palavras/conceitos/categorias, transitam em títulos de
artigos e projetos variados, sem um rigor cronológico.
2
Os Estudos de Gênero hoje figuram como uma das áreas mais consolidadas nas
universidades internacionais e brasileiras. No Brasil contam com revistas
especializadas de alto impacto como a REF (Revista de Estudos Feministas)
vinculada à UFSC e os Cadernos Pagu, da UNICAMP, dentre inúmeras outras
especializadas no tema. Além disso, a área já possui um curso de bacharelado
específico (Bacharelado em Gênero e Diversidade, na UFBA), disciplinas de
graduação e pós-graduação em várias áreas, além de inúmeros projetos de
pesquisa e extensão.
Referências Bibliográficas
ALVES,
B. PITANGUY, J. O que é feminismo. 8aed. São Paulo: Brasiliense, 2003
BUTLER,
Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. 8aed. São
Paulo: Civilização Brasileira, 2015.
SCOTT,
Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
Realidade. v.lS, n.2, jul./dez. 1990.
PEDRO,
Joana Maria. Traduzindo o Debate: o uso da categoria gênero na pesquisa
histórica. HISTÓRIA, São Paulo, v.24, N.1, P.77-98, 2005.
________.
Relações de Gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.
Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 270-283.
*Georgiane Garabely Heil Vázquez
é historiadora e feminista. Doutora e Mestra em História pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). É professora do Departamento de História da
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), coordenadora do GT Estadual de
Estudos de Gênero da Associação Nacional de História – Seção Paraná, (ANPUH/
PR) e membro fundadora do LAGEDIS – Laboratório de Estudos de Gênero,
Diversidade, Infância e Subjetividades.