'Conta-se
uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando
gente grande, você continue em sono profundo'. (FOTO/ Leo Queiroz).
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O
samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira leva de volta à Marquês de
Sapucaí uma leitura crítica da história do Brasil. Com História pra Ninar Gente
Grande, a tradicional escola reconta o processo de ocupação do país desde o
descobrimento.
"Desde
1500 tem mais invasão do que descobrimento", diz o samba composto por
Tomaz Miranda, em entrevista recente à RBA. Para ele, manifestações culturais como as que têm sido
vistas no carnaval 2019 "vão ter papel fundamental para poder driblar todo
autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses próximos
anos".
Brasil, meu negoDeixa eu te contarA história que a história não contaO avesso do mesmo lugarNa luta é que a gente se encontra
O
argumento do enredo é contundente: "Ao dizer que o Brasil foi descoberto e
não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade,
roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis 'dignos' de
serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico,
ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma 'princesa' e não do
resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas
o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono
profundo".
A
Mangueira repete a ousadia da Paraíso do Tuiuti, vice-campeã de 2018 com o
enredo Meu Deus, Meu Deus, Está extinta a Escravidão? No ano passado, a escola
do bairro de São Cristóvão surpreendeu a avenida e cativou o público com um
histórico samba de protesto contra o racismo e as sequelas da escravidão até
hoje sofridas pela população negra do país. Uma das alas trazia
"manifestoches", ironizando o papel manipulador da mídia e das redes
sociais na formação de manifestantes que foram às ruas contra tudo e contra
todos e contribuíram para que o poder e a política permaneçam sob o controle
dos mesmos grupos econômicos de sempre.
"Meu
Deus! Meu Deus!/ Se eu chorar, não leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o
cativeiro social", dizia a letra da Tuiuti, que ficou apenas um décimo de
ponto atrás da campeã Beija Flor no carnaval de 2018.
Este
ano, a escola do carnavalesco Jack Vasconcelos volta ao samba com crítica
social, em um enredo que expõe conflito de classes e embate social. Diz trecho
da letra de O Salvador da Pátria, cuja referência tem sido atribuída à história
do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Do nada um bode vindo lá do interiorDestino pobre, nordestino sonhadorVazou da fome, retirante ao Deus daráSoprou as chamas do dragão do mar(...)Ora meu patrão!Vida de gado desse povo tão marcadoNão precisa de dotôQuando clareou o resultadoTava o bode ali sentadoAclamado o vencedor
Cultura
e resistência
O
carioca Tomaz Miranda, um dos autores do samba da Mangueira História pra Ninar
Gente Grande (ao lado de Deivid Domênico, Mama, Márcio Bola, Ronie Oliveira e
Danilo Firmino), vê um processo de resistência se impondo ao Brasil desde a
ascensão do bolsonarismo. O samba lembra, entre outros momentos da história
recente, a vereadora do Psol-RJ Marielle Franco, morta a tiros, em março
passado, junto com Anderson Gomes, que dirigia o carro em que foram emboscados,
no centro do Rio.
"Acho
que vai ficar mais aguda a tentativa de apagamento, de desconstrução da cultura
popular, principalmente ligada às origens africanas, às manifestações
culturais, religiosas e sociais verdadeiramente populares do Brasil",
disse Tomaz.
"Acho
que ao mesmo tempo essas manifestações vão ter papel fundamental para poder
driblar todo autoritarismo e o conservadorismo que a gente vai enfrentar nesses
próximos anos", pondera, admitindo que o carnaval tem seu lado
conservador: "As escolas de samba não são uma coisa só. E a gente vai
tentando jogar dentro desses espaços de contradição".
A
jornalista Hildegard Angel, colunista do Jornal do Brasil, comemorou o convite
para desfilar na Mangueira, na frente do carro dos "verdadeiros heróis de
nossa História". Segundo ela, a alegoria traz, sobre livros da história do
Brasil, um tributo fortíssimo aos heróis do tempo da ditadura. "Eu quis
declinar, não tenho mérito pra isso. Mas o carnavalesco disse que eu passei a
representar a denúncia daquele tempo. Estou comovida", disse. "Os
carros estão todos lindos e trazendo mensagens contundentes, desde a Abolição,
com heroína fake. Me vejam na TV, se é que a Globo vai me mostrar."
Hildegard
é filha de Zuzu Angel e irmã de Stuart Angel. Zuzu foi morta pela ditadura por
acuar, com sua busca obstinada, o governo militar em razão do desaparecimento e
assassinato de Stuart Angel. (Com informações da RBA).
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