|
Joaquim do Couto Cartaxo (FOTO | Câmara dos Deputados).
|
Por César Pereira, colunista
No
dia 18 de dezembro de 1886 o juiz municipal de Milagres, Joaquim do
Couto Cartaxo respondeu ao presidente da Província do Ceará, Miguel
Calmon Du Pin e Almeida um ofício solicitado por este último no mês
de novembro do mesmo ano de 1886. No ofício Miguel Calmon Du Pin
solicitava ao juiz deste município esclarecimentos sobre a
existência de escravos, isto é, trabalhadores escravizados em
Milagres, mesmo após o dia 25 de março de 1884.
Já
fazia mais de dois anos que o juiz Joaquim do Couto Cartaxo protelava
o envio de informações aos insistentes pedidos de notícias sobre a
permanência da escravização em Milagres. Tanto o presidente do
Ceará quanto a Assembleia Provincial tinham recebido denúncias a
existência de 331 escravos em Milagres. Somente em dezembro de 1886
após um ultimato do governo provincial foi que o juiz sentiu-se
politicamente acuado e decidiu responder o ofício de Miguel Calmon
Du Pin.
A
resposta foi dada nestes termos:
Juízo
Municipal de Órfãos de Milagres em 18 de dezembro de 1886, Ilmº e
Exmº Sr. – Respondendo o ofício de V. Excª de 22 do mês próximo
findo [...]. Tenho a honra de informar a V. Excª que desde o dia 29
do dito mês os senhores de escravos, que existiam neste termo, estão
libertando-os sem cláusula alguma, ou com a de serviços por espaço
de três anos, sendo que dous (sic), que haviam com sessenta e anos
de idade, foram alforriados sem condição, logo que abriu-se a
matrícula nos termos da lei n° 3270 de 28 de setembro do ano
passado. E creio poder assegurar a de V. Excª que antes de findar-se
este ano terei a satisfação de comunicar-lhe, que não existe um só
escravo neste município, que deixará de ser uma nota dissonante aos
demais da província, sem que para esse resultado fosse o emprego de
meios menos lícitos. (Relatório aos Presidentes da Província do
Ceará, disponível em: http://ddsnext.crl.edu, acesso em 20 de
novembro de 2021)
Os
discursos da intelectualidade e da branquitude cearense reunida no
Instituto Cultural do Ceará convenceu-se e impôs aos cearenses o
mito de que no dia 25 de março de 1884 teria havido a abolição do
trabalho escravo na província, sendo nosso estado o primeiro a pôr
fim ao trabalho escravo no Brasil, isso não é somente um mito, mas
principalmente uma inverdade criada por jornais e panfletos
abolicionistas, bem como por pessoas brancas da classe média de
Fortaleza na década de 1880.
Procurando
desmobilizar a forte atuação dos negros cearense e das lideranças
negras da capital da província que haviam assumido em 31 de agosto
de 1881 durante a Revolta dos Jangadeiros a direção das lutas
antiescravistas no Ceará, a elite escravocrata e a classe média
ciosa de seus valores da branquitude se infiltraram nos clubes e
associações antiescravistas lideradas por negros e negras,
cooptaram algumas dessas lideranças e com suas táticas de barganha
política acabaram se impondo através da imprensa como os
verdadeiros nomes por trás da campanha abolicionista cearense.
Foi
assim que os nomes de Tia Preta Simoa, José Luís Napoleão e Chico
da Matilde acabaram passando para segundo plano, e chegaram até
mesmo a serem apagados da história cearense como as grandes
lideranças antiescravistas do Ceará.
O
mito do Ceará Terra da Luz, primeiro lugar a acabar com a escravidão
prevaleceu por mais de um século, sem que nenhum historiador
questionasse ou problematizasse as condições das emancipações
coletivas “dadas” aos escravizados cearenses em 25 de março de
1884. Mas em 1965 o historiador Billy Chandler escreveu um artigo que
causou certa polêmica entre os intelectuais do Instituto do Ceará.
Utilizando
artigos do jornal O Libertador publicados entre 1884 e 1886 em
Fortaleza, esse historiador norte-americano trouxe a luz um
escândalo, que acendeu uma intensa polêmica entre os liberais e os
conservadores cearenses nos últimos anos da monarquia. Essa polêmica
era a renitência dos senhores escravocratas de Milagres em emancipar
seus escravizados após o 25 de março de 1884.
A
primeira denúncia contra os escravistas de Milagres ocorreu ainda em
fevereiro de 1885 no jornal O Libertador. Segundo um artigo publicado
neste periódico, em Milagres os senhores de escravos se recusavam a
emancipar seus cativos e tudo isto era feito com a conivência do
juiz municipal Joaquim do Couto Cartaxo e seu aliado político, o
deputado cratense Leandro Ratisbona. O jornal fortalezense denunciava
que os dois haviam utilizado os negros como moeda de barganha
política nas conturbadas eleições de 1884.
O
fato era verídico. Isto é, em Milagres ainda havia em 1885, um ano
após as emancipações coletivas de 25 de março de 1884, em torno
de 331 negros escravizados e também era verdade que o juiz Joaquim
do Couto Cartaxo havia barganhado o voto dos fazendeiros locais para
o político Leandro Ratisbona dando-lhes garantias de que poderiam
manter em suas propriedades mão-de-obra escravizada sem nenhum
problema jurídico.
Precisamos
mais uma vez reiterar que nunca houve no Ceará uma lei provincial
obrigando qualquer senhor escravista a pôr fim ao trabalho escravo
em suas propriedades no dia 25 de março de 1884, a única lei que
decretaria a proibição da escravidão no Ceará seria a Lei Áurea
de 1888. Desse modo Joaquim do Couto Cartaxo não descumpria nenhuma
lei ao não reprimir o trabalho escravo em Milagres pós 1884. O que
houve a partir de 25 de março de 1884 na Província do Ceará foi um
entendimento da maioria das cidades e vilas cearenses em emancipar
seus escravizados sem a necessidade de uma lei impondo a
obrigatoriedade da abolição geral e irrestrita como aconteceria
quatro anos depois.
As
emancipações que ocorreram ao longo dos anos de 1883 e 1884 nem
sempre foram sem condições. Quer dizer, os negros eram emancipados
muitas vezes sob a condição de trabalharem três ou mais anos para
o seu senhor, era uma forma de indenizar o fazendeiro escravocrata
pela sua suposta benfeitoria. O próprio juiz diz que em 1886 muitos
fazendeiros de Milagres estão procedendo deste modo. Emancipam seus
cativos sob a condição da prestação de serviços por algum tempo
por estes negros que deveriam ressarcir com trabalho o seu antigo
senhor para ser de fato livre.
Billy
Chandler despertou através de seu artigo, a suspeita de que o título
de Ceará, Terra da Luz não seria muito apropriado devido a
renitência dos senhores escravocratas de Milagres. O historiador
norte-americano foi chamado de inconveniente e logo surgiram vozes de
dentro do Instituto do Ceará procurando resguardar o título
cearense, um deles argumentou que 330 negros escravizados não
representavam coisa alguma em 1886 (MENEZES, 1967).
|
Manchete do Jornal O Libertado de março de 1884. (FOTO | Biblioteca Nacional). |
É
impossível que para resguardar um mito e um título puramente
simbólico apaguemos a história de centenas de homens pretos e
mulheres pretas escravizadas vivendo no sul do Ceará, na região do
Cariri em 1886. É fato que a escravidão em Milagres e em outras
localidades do Ceará continuou existindo após o 25 de março de
1884. Mas é fato mais importante ainda que a população negra do
município como também autoridades políticas e pessoas brancas não
ficaram em silêncio diante do problema.
A
luta contra a escravidão em Milagres já era antiga como em todo o
Brasil. No ano de 1881 houve um incidente que pôs os pretos livres e
escravizados da Vila de Milagres contra os escravocratas. No dia 24
daquele ano, dia de São João, um negro alforriado chamado Isaías
Conguinho promotor de sambas na
rua do Velame recebeu com outros desordeiros o destacamento da guarda
nacional sob o comando do inspetor de quarteirão da vila com paus e
pedras. O terreiro de batuques de Isaías Conguinho fora denunciado
como um local de práticas criminosas, pois lá se acoitava negros
fujões e se tramava um assalto contra a fazenda do sr. João
Felizardo Teles Quintal.
Fato
importante para Milagres foi que dia 08 de dezembro de 1882 um grupo
de cidadãos locais criou a Associação
Abolicionista Protetora da Liberdade de Milagres,
neste grupo estavam pessoas que
eram membros da Câmara de Vereadores do município como o fazendeiro
Belarmino Ferreira Lins
vereador e um dos primeiros abolicionistas da cidade, denunciado
várias vezes ao juiz por dar proteção aos negros fujões.
Além
dele havia o professor João
Clymaco de Araújo Lima,
descrito como um mulato atrevido que ensinava aos meninos de Milagres
coisas da maçonaria e do jacobinismo republicano. Numa carta que um
anônimo envia para o jornal Pedro II, João Clymaco é acusado de
ensinar negrinhos em Milagres durante a noite e que esses negrinhos
que aprendiam a cartilha com ele costumavam praticar insolências no
Largo da Matriz.
O
estudante de direito José
Antônio de Carvalho é acusado
de trazer ideias contra a propriedade dos bons homens de Milagres e
sendo ele amante de uma negra quer impor o fim da ordem nos lares da
vila. Já o comerciante José
Maria de Andrade, também
vereador e sua esposa Ana
Vitalina Quintal de Andrade
andam pedindo por todo o Cariri, Pajeú E Piranhas dinheiro com o
qual possa comprar a liberdade de cativos, criando assim o germe da
revolta entre os negros.
O
proprietário Antônio de Castro
Filgueiras, fundador da
Associação Abolicionista Protetora da Liberdade é acusado de ter
se lançado vereador não para defender os interesses da Vila de
Milagres, mas apenas para utilizar todo o tempo da sessão desta
câmara somente para pleitear a liberdade dos pretos. Desse modo, o
que podemos compreender é que apesar da renitência dos senhores
escravocratas de Milagres em emancipar seus escravizados em 1884, em
hipótese alguma podemos afirmar que a permanência da escravidão no
município até 1886 foi tranquila e feita com a conivência de toda
a sociedade local.
As
resistências contra a escravidão em Milagres partiam de várias
frentes de batalha. Da Associação Abolicionista Protetora da
Liberdade como vimos acima, da Câmara de Vereadores de Milagres que
foi a primeira a dirigir ao presidente da Província do Ceará um
ofício pedindo providências contra o juiz Joaquim do Couto Cartaxo
que insistia em não cumprir as determinações do governo e proceder
ao registro dos escravizados ainda existentes no município como
determinava a lei de outubro de 1883. A Câmara de Vereadores
denunciou o juiz como o principal responsável pela manutenção da
escravidão em Milagres e em 1884 realizou um baile de São João
para arrecadar fundos para arrecadar fundos e realizar a compra da
alforria de cativos.
Mas
precisamos destacar principalmente as lutas negras contra a
escravidão em Milagres. Homens e mulheres negros que desde sempre
lutaram contra a escravidão e que na década de 1880 estiveram
também à frente das lutas antiescravistas no município. Destaco
aqui o preto Mingu, este
negro que fora escravizado pelo alfaiate da cidade e que na década
de 1860 aparece como “negro fujão” em anúncios de jornal, é
enviado em 1866 pelo delegado Jesus da Conceição Cunha ao Crato
onde estavam convocando voluntários para servir como soldado no
exército brasileiro e que só retorna a vila em 1874, quando
pensavam que teria morrido, alcança sua liberdade prometida, compra
a liberdade de sua mãe, se instala num sítio nos arredores da vila
e trabalha alugado para comprar seus irmãos ainda escravizados.
O
negro Roberto Quengo, posto
a venda como homem de 40 anos e cheio de histórias da África, mas
que cozinhava e limpava bem. Roberto foi comprado e liberto pela
Protetora da Liberdade em 1883, mas entendeu que seus irmãos de cor
que continuavam cativos precisavam de liberdade e andava pelas vilas
e povoados do Cariri com um São Pedro de barro tirando dinheiro para
fazer a liberdade de outros pretos.
E a
negra Delfina que
invadiu a casa de sua senhora agrediu esta e conforme processo-crime
aberto contra Delfina roubou sua filha, pois sua antiga dona iria
levá-la para Cajazeiras onde seria vendida em 1882. O negro Agapito,
preto que fugiu a escravidão e
se escondeu nas matas da serra do Ouricuri de onde descia a noite
para roubar cavalos e aliciar outros negros à fuga nas fazendas de
Milagres, Buriti Grande (Mauriti) e Cuncas (Barro),
Assim
a história de Milagres não é a história da última cidade que
acabou com a escravidão no Ceará, é a história da cidade cujas
lutas contra a escravidão transcenderam o 25 de março de 1884.
Quando nos esquecemos destas lutas deixamos mais uma vez subtendido
que a escravidão só acabou por que um punhado de brancos quiseram,
o que não é verdade, a escravidão em Milagres acabou porque o
professor mulato (negro) João Clymaco de Araújo lutou contra ela,
porque Mingu voltou a Milagres em 1874 para trabalhar e comprar a
liberdade de sua família, por causa das andanças e histórias de
Roberto Quengo, do ato extremo da negra Delfina, mãe extremosa, do
terreiro de batuque de Isaías Conguinho. Homens e mulheres negras
que fizeram e são a história de Milagres.
|
Jovens negros fazem protesto nas ruas de Milagres em 2012, pedindo mais apoio para a cultura e proteção às suas vidas. (FOTO | Reprodução | YouTube). |
REFERÊNCIAS
CHANDLER,
Billy. Os escravistas renitentes
de Milagres, in. Revista do
Instituto de Ceará, Fortaleza, 1967.
Relatórios
dos presidentes da Província do Ceará, disponível em: disponível
em: http://ddsnext.crl.edu.
Arquivo
Público do Estado do Ceará, Caixas 6-7-8- seção: Milagres (1847-
1889).
SOUZA,
Carlos. Milagres, nossa terra
Cariri, Artes Gráfica e
Editora, Fortaleza, 2021.