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Jovens da ocupação do Colégio Estadual Central, em Belo Horizante, demonstram união e solidariedade. |
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Ana Júlia, defesa de um país mais justo, baseado no que determina a constituição, virou simbolo das lutas. Foto: Pedro de Oliveira/ALEP |
Quem,
há alguns meses, ou dias, poderia imaginar que uma das principais respostas aos
retrocessos que o país vem passando viesse de jovens, principalmente que cursam
o ensino médio, e em estados como Paraná e Santa Catarina e no Distrito
Federal, que estão entre os mais conservadores do Brasil? A reportagem da
Revista do Brasil visitou escolas, entrevistou estudantes e participou de
oficinas em locais ocupados para tentar entender quem são e o que pretendem
esses novos ativistas, que têm entre 13 e 18 anos e não haviam ainda
participado de um movimento social.
“Antes de vir para cá, a gente não tinha
nenhuma vinculação política, partido, nada”, diz Maria, uma das líderes de
ocupação numa escola na periferia de Curitiba – os nomes dos estudantes usados
na reportagem são fictícios. “Algumas pessoas falaram que o PT estava fazendo
nossa cabeça, coisa assim. Mas a gente veio por conta própria. Fizemos
assembleia e os alunos decidiram”, diz a aluna do Colégio Estadual Olívio
Belich, no bairro do Cajuru, na região leste de Curitiba.
“A gente nem se conhecia direito antes, não
tem militância até hoje. Sou contra todos os partidos”, complementa Paulo,
do Colégio Estadual Teotônio Vilela, na Cidade Industrial, também em Curitiba.
O que os move, mais do que questões do ambiente escolar – como a tentativa de
alterar a base curricular do ensino médio por meio de uma medida provisória –
diz respeito a ataques do governo de Michel Temer que, segundo eles, põem em
risco o futuro de políticas públicas afetarão as próximas gerações.
“Queremos barrar a reforma, mas não é só
isso, lutamos contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que tira
dinheiro da saúde e da educação, contra a reforma da Previdência... A saúde e a
educação já são precárias e ainda querem tirar dinheiro”, afirma Larissa,
do Olívio Belich. “O que a gente mais
queria era o apoio das pessoas que vão perder com isso. Mas a maioria não
consegue enxergar. Até porque as leis são escritas pro pessoal da elite. O
pessoal mais carente não entende o que vai perder”, avalia Marina, do
Teotônio.
A
desatenção da maioria das pessoas em não reconhecer o que está acontecendo com
o país lembra um pouco o que ocorreu com movimentos globais, como a chamada
Primavera Árabe e o Ocuppy, nos Estados Unidos. No livro Occupy (Editora
Boitempo), o geógrafo britânico David Harvey, ao escrever sobre o que levou
pessoas a tomar as ruas do coração financeiro dos Estados Unidos, diz que
aquela luta é contra o que chama de Partido de Wall Street, que “domina muito do aparato estatal, do
Judiciário, em particular a Suprema Corte, cujas decisões partidárias estão
crescentemente a favor dos interesses venais do dinheiro, em esferas tão
diversas, como a eleitoral, a trabalhista, ambiental e comercial”.
Para
Harvey, muitas pessoas decentes estão presas a um sistema que está podre. “Se querem um salário razoável, não têm outra
opção além de render-se à tentação do diabo.” Ele observa que leis
“coercitivas” da competição forçam os cidadãos a obedecer as regras desse “sistema cruel e insensível”. “O problema é sistêmico, não individual.”
De acordo com o britânico, os mais ricos acionam uma enorme variedade de
opiniões de “especialistas” e colunistas espalhados na mídia que eles
controlam. “Em um momento, só se fala da
austeridade necessária a todas as outras pessoas para tratar do déficit e, em
outro, propõe redução de sua própria tributação sem se importar sobre o efeito
que terá sobre o déficit.”
No
Brasil, essa situação é exemplificada na discussão sobre a PEC 241, agora com o
número 55 no Senado. A justificativa é de que para diminuir o déficit público
serão congelados por 20 anos os investimentos em saúde, educação,
desenvolvimento tecnológico, agricultura etc. Ao mesmo tempo, não há previsão
de limitar o pagamento de juros da dívida pública brasileira, responsável por
cerca de 90% desse mesmo déficit. São os mandamentos de Wall Street.
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Ocupação se espalharam no Paraná, com regras, debate e causa bem definida contra a Pec e a imposição da reforma do ensino médio. Foto: Maíra Kaline (Estudante de Comunicação Organizacional UTFPR) |
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Marina: 'O que a gente mais queria era o apoio das pessoas que vão perder com isso. Mas a maioria não conseguem enxergar. Até porque as leis são escritas pro pessoal da elite. O pessoas mais carente não entende o que vai perder'.Foto: Facebook Ocupação Paraná. |
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Manifestação no Paraná: organização com regras. Foto: Maíra Kaline. |
Poder da mídia
Alunos
entrevistados não citam o geógrafo britânico, mas sentem na pele os efeitos da
narrativa contra seu movimento. Após uma primeira tentativa de desqualificação,
em que foram retratados como “manipulados”, “baderneiros”, “drogados” etc.,
passaram a ser denominados como aqueles que prejudicariam milhões de outros
estudantes, que não poderiam fazer o Enem ou estudar para o vestibular. “Vêm
pressionar a gente, dizendo que estamos prejudicando seus filhos, mas eles não
deveriam estar estudando desde o começo do ano? Agora não vai adiantar nada”,
diz Marina.
A
pressão também aumentou depois que numa briga entre dois garotos dentro de uma
escola ocupada um deles foi assassinado. “Muitos
pais agora estão contra pelo medo de que aconteça alguma coisa com a gente.
Medo do que passa na Globo. A Globo só passa desgraça. As pessoas aceitam sem
saber, sem tentar entender o que está acontecendo”, diz Maria. Os pais de
Larissa apoiam, mas ficam chocados com o que veem na TV. “Hoje de manhã meu pai estava assistindo ao jornal e disse: ‘Nossa, como
eles mentem’.”
Quem
está na ocupação desfruta o convívio. “Nesse
tempo a gente ficou amigo de verdade. Antes estudávamos na mesma escola e nem
nos conhecíamos direito. Se via no corredor, mas nem se falava. É uma união
mesmo.” Ao contrário do que vem sendo divulgado, nas escolas visitadas pela
reportagem os alunos falaram da organização e das regras adotadas. Todos se
revezam para fazer limpeza, comida e manter a segurança – como nas experiências
do ano passado em São Paulo, depois Goiás, Rio de Janeiro, Ceará... É proibido
que meninos e meninas durmam no mesmo quarto, ou que se consuma bebida
alcoólica ou droga.
“Há a questão de limpeza, arrumação, deixar
organizado, comer e tapar as panelas, horário de comer e de dormir. Adolescente
é meio difícil, quer ficar direto no celular, mas a gente tem um horário de
dormir porque tem de acordar cedo”, diz Maria. Ela conta que na escola há
distribuição de leite do governo para a população e eles têm de abrir o portão
para o rapaz que faz a entrega e para os funcionários responsáveis pela
distribuição.
No
Teotônio Vilela, os primeiros dias foram difíceis, mas depois se organizaram. “Na primeira semana, a gente tinha para comer
pão, salame e mortadela. A gente ficou magro aqui. Chegamos a passar fome.
Depois abrimos a cozinha e, quando começamos a cozinhar, precisa ver nossa
alegria, ver o alho, a cebola fritando, comer um arrozinho”, afirma Paulo.
“Os pais vêm, alguns universitários também
cozinham para a gente, a gente mesmo faz.”
Além
de doar alimentos e cozinhar, estudantes universitários, professores e diversas
outras pessoas foram às escolas para contribuir com debates, workshops, aulas
abertas, oficinas. Teve oficina sobre direito à cidade por alunos e professores
de Arquitetura, acompanhada pela reportagem da RdB na escola Professor Nilo
Brandão, no Canguru, também em Curitiba. Além de rodas de capoeira, de circo,
aulas de xadrez, pingue-pongue, Português, História, Geografia, preparatório
para o vestibular, entre outras atividades.
Se
há apoio, a pressão também é grande. Vai de diretores, professores,
comerciantes do bairro, outros alunos e, principalmente, a Justiça. “Estamos
sofrendo ameaças de invasão”, diz Paulo. “Se
vierem, não vão vir desarmados, vai dar merda. A gente conhece a comunidade.
Mas estamos preparados para qualquer coisa, psicologicamente e fisicamente. Mas
não sabemos o que vai acontecer na hora.” Paulo falou numa sexta-feira, 28
de outubro. No domingo, 30, um dos colegas foi barbaramente agredido quando
saiu da escola. Mesmo querendo continuar, os outros decidiram desocupar.
Além
das pessoas no entorno e da polícia, a pressão da Justiça aterroriza. Foram
concedidas dezenas de liminares de reintegração de posse, mas os métodos vão
muito além. Em Brasília, por exemplo, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da
Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
(TJDFT), autorizou o uso de técnicas de tortura para “restrição à habitabilidade”
das escolas, com objetivo de convencer os estudantes a desocupar. Um juiz, por
ironia da vara da infância e juventude, manda impedir o contato dos jovens com
amigos e a família, restringir a entrada de alimentos e autoriza o uso de “instrumentos sonoros contínuos, direcionados
ao local da ocupação, para impedir o período de sono” dos adolescentes.
Alunos
que estavam ocupando o Centro de Ensino Médio Dona Filomena Moreira de Paula,
na cidade de Miracema (TO), também foram retirados à força pela PM acionada
pelo promotor de Justiça do Ministério Público Estadual (MPE). Foram levados
para a delegacia, alguns algemados, sem mandado judicial. Em Chapecó (SC), há
relato de invasão de policiais em uma ocupação com fuzis em punho.
Além
dessas práticas que passam por cima das leis e dos direitos humanos, os
estudantes ainda enfrentaram a atuação de grupos que agem à margem do Estado.
Com práticas que lembram a forma de atuar das milícias fascistas dos anos 1930,
1960 e 1970, organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL) arregimentam
recursos, estrutura e apoiadores para “desocupar escolas”. Isso já aconteceu em
Brasília e no Paraná. No início do ano, práticas semelhantes, associadas a
pessoas do crime organizado e milícias, ocorreram em São Paulo e no Rio de
Janeiro.
O que vem depois
A
Primavera Árabe, as manifestações de junho de 2013, o Occupy Wall Street, a
ocupação das escolas no ano passado e no início deste ano e as deste outubro
têm, pelo menos, um fator em comum: trazem para a arena da disputa política
novos atores desatrelados de partidos ou movimentos sociais tradicionais.
Na
apresentação do livro Ocuppy, feita por Henrique Soares Carneiro, o historiador
destaca o caráter espontâneo de rebeliões contra as estruturas políticas
convencionais, o que mostra a necessidade de um novo projeto que articule uma
representação dos anseios de transformação e ruptura. Argumenta também que
existe uma participação política protagonizada pela nova geração, por meio
difuso de propagação da informação, via internet, sobretudo as redes sociais. E
que esse despertar para uma nova euforia política, num mundo dominado pelos
ideais do individualismo, e pela carência de projetos coletivos para o futuro,
causa essa profunda indignação, que pode ser o germe de uma revolução.
Ao
mesmo tempo em que esses novos atores agem, as forças dominantes hegemônicas se
rearticulam, absorvem ou repelem movimentos por mudanças. Um sopro de esperança
está no aparecimento de jovens que pela primeira vez participam da disputa
política por uma sociedade melhor. É emblemática a forma como a estudante Ana
Júlia, de 16 anos, cala deputados na Assembleia Legislativa paranaense. Sua voz
em defesa de um país mais justo – baseado não em teorias revolucionárias, mas
no que determina a Constituição – virou símbolo das lutas atuais.
Mas
o que acontecerá daqui por diante? A resposta pode estar nas palavras de outra
jovem, também de 16 anos, ouvida pela revista. “A PEC 241 pode passar, a gente pode ser derrotado, mas a gente sabe o
que está tentando. O povo brasileiro está sendo roubado, literalmente, mas a
gente está fazendo nossa história.” Tanto está que a onda de rebeldia
ultrapassou a praia dos secundaristas e banhou o meio universitário. No momento
que em que esta reportagem era concluída, estudantes ocupavam campi em
Brasília, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Em todos os
casos, universidades públicas, ameaçadas pela PEC 55.