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Por
Karla Alves, Colunista
O
silêncio de uma mulher é um eficiente sistema simbólico de
reprodução cultural dos estereótipos e preconceitos que sustentam
a dominação masculina. Este silêncio faz parte de um sistema de
governo da palavra no campo familiar, assim como também
ocorre em outras instituições do campo religioso ou político, por
exemplo. Isso está relacionado com a forma como a sociedade tem
moldado, através da cultura, os espaços de poder de gênero, nos
mostrando de maneira evidente que as diferenças de gênero e as
desigualdades permanecem em vigor, mantendo intactos os espaços
tradicionais de poder cultivados por meio do uso da linguagem.
A
linguagem é, portanto, uma das formas de reprodução e perpetuação
da dominação masculina onde seus beneficiários se negam a refletir
sobre suas práticas impositivas de silenciamento e sobre sua
necessidade de anular e/ou invalidar qualquer discurso que o leve a
refletir sobre si mesmo e sobre sua constante (consciente ou não)
prática de manutenção do seu "direito" de comandar,
controlar e oprimir para comandar.
A
linguagem possui o poder de construir representações simbólicas do
mundo social e é através dela, seja qual for o modo de expressão
(linguagem visual, musical, corporal, escrita, falada, etc.), que
vamos percebendo e apreendendo as estruturas históricas da ordem
vigente. Por isso considerei tão simbólico o fato de eu estar
sendo, pela segunda vez, ameaçada de morte por um homem (meu vizinho
e parente dos meus filhos) que alegou ter me visto “dando língua”
a ele. É pertinente, para este assunto a que venho tratar aqui,
destacar o episódio em que este mesmo homem me ameaçou de morte,
uma primeira vez, incomodado pelo uso que fiz da minha fala. Nesta
segunda vez seu delírio fantasiou a minha imagem lhe destinando a
língua, como se eu estivesse a lhe apontar uma arma, o que fez
despertar em mim a necessidade de refletir sobre este ato simbólico
que está diretamente relacionado à linguagem como mecanismo de
dominação que exige o silêncio como forma de se efetivar.
Como
parte indissociável da linguagem, o silêncio também comunica
e também expressa a estrutura histórica de dominação ao qual está
submetido, pois faz parte de um trabalho de socialização que tende
a diminuir, invalidar, negar e anular com o objetivo de conduzir a
uma "aprendizagem das virtudes negativas da abnegação, da
resignação e do silêncio" (BOURDIEU), muitas vezes levando a
pessoa silenciada a acreditar que tais virtudes negativas sejam, para
ela, positivas.
E
por se tratar de uma forma de dominação que se estabelece por meio
de vias simbólicas da produção de representações e de imagens,
na maior parte das vezes esse tipo de violência passa invisível aos
olhos da consciência da própria vítima, já que é levada a
perceber a ordem social através de "esquemas inconscientes"
de apreciação da estrutura histórica (BOURDIEU) da ordem em vigor,
que também é transmitida por herança social, como podemos perceber
no caso das mulheres através das imagens e representação da
delicadeza, sensibilidade, emotividade exacerbada e sem controle que
"dificultariam" sua expressão por meio de uma linguagem
racional. Isso tem servido de justificativa para a suposta
necessidade de proteção, de tutoria e de um mentor ou porta voz que
regule, controle, comande e, portanto, substitua o protagonismo das
mulheres sobre sua própria expressividade. Não é que a mulher não
possa ser delicada e sensível, a questão é pensar sobre o uso que
disso é feito para dar sustentação a um exercício de poder e
dominação a partir da interpretação transmitida através das
imagens e representações sobre essa delicadeza e essa
sensibilidade.
Outro
caso de imagens e representações que visam comunicar o silêncio
como norma de conduta se refere à população negra, aonde o
silêncio como mecanismo de controle vem sendo socialmente herdado
desde a escravidão e que por meio do parlamento pré-abolicionista
foi muito bem arquitetado para garantir a tutoria sobre suas práticas
nas mãos do mesmo senhoril que através da escravização humana
exerceram violentas formas de controle para, assim, explorar a
população negra e que no pós-abolição controlariam essa mesma
população através da "necessidade de proteção aos libertos"
(JOSELI NUNES MENDONÇA) para garantir que a população negra
liberta permanecesse trabalhando para seus “ex” senhores (e,
doravante, para os herdeiros destes “ex” senhores).
Porém,
ao invés das imagens representativas de delicadeza, sensibilidade e
emotividade relacionada às mulheres, aqui as imagens e
representações visam comunicar a ignorância, a incapacidade de
dirigir-se, a incapacidade civil, a indolência, a selvageria, o
baixo desenvolvimento mental, dentre outras características
racialmente atribuídas por uma ideologia racista e dominante,
justificando, com isso, a mesma necessidade de proteção, de tutoria
e de um mentor ou porta voz que regule, controle, comande e,
portanto, substitua o protagonismo desta população quanto a seu
modo de ser e de estar no mundo.
Contudo,
a proteção aqui mencionada está mais para proteger o restante da
sociedade desta possível ameaça que precisa ser vigiada e
controlada para não oferecer perigo, não se tratando, portanto, de
uma proteção patriarcal que se relaciona mais ao exemplo das
mulheres a que me referi acima. Aqui a proteção assume um caráter
racista associado à imagem de ameaça a qual a população negra vem
sendo representada ao longo da história.
E
quando o machismo se une ao racismo articulando uma linguagem que
expresse e transmita imagens e representações sobre a mulher preta
para uma sociedade submetida a um regime patriarcal e estruturalmente
racista, sendo mulher, apenas o atributo relativo ao descontrole
emocional lhe acompanha por passar uma ideia que a fará ser vista
pela virtude negativa da raiva descontrolada, por exemplo, associando
esta mulher preta à imagem e representação da agressividade como
algo inato à sua natureza.
Aqui
a imagem de “descontrole emocional” atribuído às mulheres
assume um caráter racial, criando a representação racista de uma
mulher que oferece ameaça. Sendo Preta, a esta mulher serão
associadas imagens e representações que visam comunicar a
ignorância, a incapacidade de dirigir-se, a incapacidade civil, a
indolência, a selvageria, o baixo desenvolvimento mental e outros
atributos racistas que servem de justificativa para o domínio
público sobre seu corpo e suas ideias (geralmente não conferidas a
ela), assim como para destinar a estas mulheres o lugar de servidão
na sociedade, não somente para os homens beneficiários do poder
hegemônico.
Este
lugar de servidão também é destinado às mulheres pretas pelos
homens pretos e pelas mulheres brancas e, algumas vezes, pelas
próprias mulheres pretas pertencentes a classes sociais mais
distantes e acima da pobreza e da miséria, já que a ascensão
econômica cria a ilusão de distanciamento das imagens e
representações racialmente construídas e transmitidas numa
sociedade de classes que é também patriarcal e estruturalmente
racista, cuja linguagem articulada entre estes fatores se estabelece
como forma de reprodução e perpetuação de dominação.
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Então,
se o sistema de governo da palavra se utiliza do poder que a
linguagem possui de construir representações simbólicas do mundo
social, através das quais vamos percebendo e apreendendo as
estruturas históricas da ordem vigente por meio de "esquemas
inconscientes" de apreciação da estrutura histórica, fazendo
com que o silêncio de uma mulher se torne um eficiente sistema
simbólico de reprodução cultural dos estereótipos e preconceitos
que sustentam a dominação masculina por estarmos inseridas num
processo de socialização que tende a diminuir, invalidar, negar e
anular o poder de fala das mulheres com o objetivo de conduzir a uma
"aprendizagem das virtudes negativas da abnegação, da
resignação e do silêncio" (BOURDIEU), e se as mulheres pretas
sustentam o peso de toda essa estrutura de negação e silenciamento
por estarem na extrema ponta contrária de quem ocupa o lugar de
poder nessa estrutura de dominação (homens/brancos),
consequentemente, se esta mulher preta desobedece ao sistema de
governo da palavra que lhe é imposto e que cobra dela a
correspondência necessária a manutenção e perpetuação da
dominação masculina através de seu absoluto silêncio ela, através
de sua voz, será vista como uma enorme ameaça que deve ser contida
como a um animal abatido. Sua língua é, portanto, uma arma apontada
para o sistema de dominação.
E
para que volte ao lugar de servidão que foi destinado a esta mulher
preta, ela deverá ser invalidada e controlada, seja por meio da
desqualificação verbal, geralmente cometida através da
representação simbólica de “doida” ou “louca”, seja
através da ameaça física utilizada sempre que o mecanismo
simbólico da linguagem não surte o efeito esperado. Assim a
violência se faz absolutamente necessária em nossa sociedade, para
manter a tradição de dominação prevista pela estrutura histórica
que mantém a ordem de dominação social vigente.
O
meu silêncio garante a paz injusta dos homens que se beneficiam
deste tipo de opressão. O meu silêncio mantém a ordem que
beneficia aos dominadores e os mantém confortáveis em seus lugares
sociais, ainda que seja numa micro esfera de poder, como o campo
familiar. É através desta micro esfera que o poder hegemônico se
constitui. E o meu silêncio ajuda a manter viva esta doença no
núcleo da célula que compõe o grande organismo chamado sociedade,
que permanece doente e delirante no seu desejo sádico de dominação.
É
para romper com esta ordem violentamente opressora que se fez a minha
língua, o meu corpo, o meu coração, a minha inteligência, a minha
coragem, a minha liberdade e a minha voz. Eu sou o elo que quebra
essa corrente. Avante Mulheres Pretas.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU,
Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002.
MENDONÇA,
Joseli Nunes. Cenas da abolição: escravos e senhores no Parlamento
e na justiça. São Paulo: Fundação Perceu Abramo, 2001.