Interessa
ao filósofo não a verdade histórica, ou seja, o texto da verdadeira pregação do
Cristo, mas a reconstituição de seu tipo psicológico.
Que
possibilidades restam hoje para um diálogo entre Nietzsche e o Cristianismo?
Tomemos a frase de O anticristo que, de imediato, nos lança no campo filológico
das relações entre texto e interpretação: “Eu
volto atrás. Conto a autêntica história do Cristianismo (des Chirstenthums). Já
a palavra ‘Cristianismo’ (Christenthum) é um mal entendido – no fundo houve um
único cristão, e este morreu na cruz. O ‘Evangelho’ morreu na cruz.”1.
O
Cristianismo (Christenthum) é um mal entendido porque resulta de uma falsa
interpretação do Evangelho, da vida de Jesus de Nazaré. “O ‘Evangelho’ morreu
na cruz” – isso significa que o mal entendido consiste na fé cristã, tal como
esta se apresenta no Cristianismo histórico. Desvirtua-se a Boa Nova de Jesus,
considerando-a sob a óptica teológica do pecado, da culpa e do castigo;
tomando-o como vítima expiatória de um sacrifício vicário.
Nietzsche
estabelece uma oposição entre Christenthum (Cristianismo) e Christlichkeit e
Christ-sein (respectivamente Cristianicidade e ser-cristão). O Cristianismo
‘oficial’ consiste na redução do Ser-cristão, da espiritualidade própria à
Cristianicidade, a dogmas, fundamento da crença eclesiástica.
“Reduzir o Ser-cristão, a Cristianicidade a
um ter-por-verdadeiro, a uma mera fenomenalidade da consciência, significa
negar a Cristianidade. De fato não houve em absoluto cristãos. O ‘cristão’,
aquilo que há dois milênios se chama cristão, é meramente um mal entendido
psicológico.!”2?
A
Cristianicidade não se expressaria em estatutos, organização institucional com
cerimônias e rituais; ela consiste antes numa práxis, num fazer e se abster,
numa forma de ser.3? A Christlichkeit é uma condição natural de vida, não uma
causalidade psicológica, ativada por crenças e estados mentais. Para Nietzsche, essa práxis – esta é autêntica Boa-Nova.
O
Cristianismo (das Christenthum), por oposição a isso, é uma religiosidade da
fé. “Estados de consciência, alguma
crença, um ter-por-verdadeiro, por exemplo – todo psicólogo o sabe –, são, com
efeito, estados completamente indiferentes e de quinta ordem considerados em
relação ao valor dos instintos: dito de maneira mais rigorosa, o inteiro
conceito de causalidade espiritual é falso.”4?
Porque
considera real uma causalidade imaginária, o Cristianismo dogmático degenera a
práxis cristã; esse é o sentido da frase: De fato não houve em absoluto
cristãos. Essa degeneração resulta de uma interpretação falsificadora. O
‘cristão’ é aquele cuja forma de vida é pretensamente determinada pelo que se
acredita, por artigos de fé, pela verdade revelada.
O
anticristo visa resgatar a Cristianicidade. A reconstituição da autenticidade
perdida, cujos traços desfigurados ainda se conservam nos Evangelhos, é o
resultado de uma refinada hermenêutica que, desfazendo o mal entendido, traz à
luz o ‘verdadeiro tipo psicológico do Redentor’. Trata-se de uma confusão entre
o que Jesus de Nazaré pregou e o modo como foi sentido e interpretado. O
equívoco talvez só desaparecesse com o rigoroso exame histórico dos textos,
empregando-se métodos científicos para apurar a “verdade sobre o que ele fez,
disse, sobre como ele propriamente morreu”.5?
Nada
mais longe, porém, dos propósitos de Nietzsche. Usar os métodos científicos
sobre o que foi “traditado” pelos Evangelhos seria cometer um atentado
filológico. Quando os documentos essenciais são Heiligen-Legenden (legendas
sagradas), a cientificidade é fracasso antecipado, ociosidade erudita.6?
Interessa
a Nietzsche não a verdade histórica, ou seja, o texto da verdadeira pregação do
Cristo, mas a reconstituição de seu tipo psicológico. É a pergunta genealógica
pela personalidade que poderia ter vivido e ensinado aquilo que os Evangelhos a
ele atribuem que desfaz o mal entendido. “O
que a mim me importa é o tipo psicológico do Redentor. Este poderia, com
efeito, estar contido nos Evangelhos, apesar dos Evangelhos, ainda que muito
mutilado ou sobrecarregado com traços estranhos.”7?
Como
agiografia, os Evangelhos são, para Nietzsche, um gênero literário. Eles
fornecem o palimpsesto para o trabalho filológico, do qual brota uma
“re-interpretação” do perfil psicológico de Jesus. A hermenêutica do Anticristo
consiste, por um lado, em despojar o tipo psicológico do Redentor de traços
alheios com os quais foi sobrecarregado e, de outro lado, em reparar as
mutilações que o desfiguram.
“Não é com erudição filológica e com
metodologia que Nietzsche quer se aproximar da figura de Jesus, mas por meio de
uma reconstituição de seu tipo psicológico […] Nietzsche se coloca perante a
tradição evangélica de modo inteiramente crítico. No entanto, como obtém ele a
figura positiva de Jesus, o tipo psicológico do Redentor? Duas passagens
bíblicas ofereceram-lhe claramente um ponto de ancoragem8?; por que essas duas,
não o esclarece o próprio Nietzsche. A despeito de seu professado rigor de fisiólogo,
é necessário constatar: a reconstrução ou re—cons–tituição do tipo do Redentor
funda-se em conhecimento intuitivo, em intuição (Einfühlung).”9?
Nietzsche
intui os traços da vida e do ethos de Jesus para, a partir daí, liberá-lo dos
acréscimos incompatíveis com sua natureza. Essa intuição congenial é
viabilizada pela literatura. É por meio dessa fonte que se pode compreender por
que Nietzsche resume o essencial do Evangelho nos dois versículos de Mateus e
Lucas acima mencionados. Numa passagem de Ma Religion escreve Tolstoi: Le
passage qui devint pour moi la clef de tout fut celui qui est renfermé dans les
38e. E 39e. Versets de Math. V: Vous avez appris qu’il a été dit: œil pour œil
et dent pour dent; et moi, je vous dit de ne point résister au mal que l’ont
veut vous faire.10? Nietzsche complementa: “O reino de Deus está dentro de
vós”; “Não resistais ao mal” (Lucas XVII, 21 e V, 39); nisso ele discerne a
medula espiritual do autêntico ensinamento de Jesus, a única doutrina
compatível com seu tipo psicológico. O acesso é franqueado pela literatura:
“Conheço apenas um único psicólogo que viveu
num mundo onde o Cristianismo é possível, onde um Cristo pode surgir a qualquer
instante… É Dostoievski. Ele adivinhou Cristo: e ele permaneceu sobretudo instintivamente
protegido de se representar esse tipo com a vulgaridade de um Renan.”11?
Para
Nietzsche, Jesus pregara uma religião do amor, um budismo dos inocentes de
Deus, para quem a bem-aventurança consistiria na vivência atemporal da
realidade interior, na fuga de qualquer rigidez moralista. “Que significa a ‘Boa Nova’? A vida
verdadeira, a vida eterna foi encontrada – ela não é prometida, está aqui, está
dentro de vós: como vida no amor, no amor sem subtração, nem exclusão, nem
distância. Todos são filhos de Deus – Jesus não reclama nada exclusivamente
para si –, enquanto filho de Deus, todo homem é igual ao outro.”12? Aqui
não são firmados artigos de fé; trata-se, antes, de uma prática evangélica13?
de comunhão com o “Pai” e com o próximo. O mundo externo adquire a consistência
diáfana da parábola, alegoria da verdadeira realidade interna, sem pecado,
culpa ou expiação.
Sem
distância entre o homem e Deus, apenas a comunhão universal na inocência, como
na pureza das crianças (‘Olhai os lírios do campo’; ‘contemplai as aves do
céu’).
A
vida, a mensagem e a morte do Redentor não
eram, para Nietzsche, senão essa prática, nenhuma fórmula, nenhum rito, nenhum
cerimonial.
“O ‘reino de Deus’ é um estado do coração –
não algo situado ‘acima da terra’ ou a que se chegue ‘depois da morte’ –, a
hora, o tempo, a vida física e suas crises não existem em absoluto para o
Mestre da Boa Nova… O reino de Deus não é algo que se aguarde, não tem um
ontem, nem um “além de amanhã”, não chega ‘dentro de mil anos’ – é uma experiência
em um coração, está em toda parte, não está em lugar algum.”14?
Essa
ventura suprema, que transpõe o abismo entre Deus e homem, assim como entre os
homens, conduziu Jesus à morte, em conseqüência da pregação. O que dela
permanece não é uma doutrina, mas um ethos perante os acusadores, a
não-resistência ao ódio, mesmo à morte na cruz, antes compadecer-se de quem
pratica o mal contra si.
“As palavras ditas ao ladrão na cruz contêm
todo o Evangelho. Este foi, em verdade, um homem divino, um ‘filho de Deus’,
diz o ladrão. Se tu sentes isso – responde o Redentor –, então também estás no
Paraíso, és tu também um filho de Deus… Não se defender, não se encolerizar,
não tornar responsável, não opor resistência, nem sequer ao mau, amá-lo.”15?
Em
jargão político, Jesus seria, para Nietzsche, um “santo anarquista”16, que atraíra o povo simples, os ‘pecadores’ e
excluídos do Judaísmo oficial, em conjuração contra a ordem dominante; pois a
linguagem empregada por ele, “caso fosse
para confiar nos Evangelhos, ainda hoje também teria conduzido à Sibéria”.17?
Para seus contemporâneos, sua pregação o tornava um contestador político da
ordem vigente. Contradição, porém, que não se encontrava nele, mas em sua
interpretação.
Para
Nietzsche, Jesus não era um revolucionário, e sim, ‘com alguma tolerância na
expressão’, um espírito livre. Que essa tolerância não lhe deve ser imputada
apenas a descrédito, pode-se depreendê-lo da psicologia do ressentimento.
Segundo Nietzsche, o espírito que se tornou livre teve de amargar em si muita
negatividade, já que não se libertou sem ter ultrapassado muito de seus mais
arraigados preconceitos. Jesus, porém, não valora negativamente homem e mundo.
Consideradas as coisas mais de perto, afirma Nietzsche, “jamais teve ele um motivo para negar o mundo, ele jamais cogitou do
conceito eclesiástico do mundo. Precisamente a negação é para ele inteiramente
impossível”.18?
Aqui
seria oportuno cotejar o tipo psicológico do Redentor com a valoração moral
escrava e ressentida, tal como essa se apresenta em Para a genealogia da moral.
Nessa obra, ao descrever a dupla gênese da oposição entre Bem e Mal, Nietzsche
assim diferencia a moral afirmativa dos senhores da moral negativa dos
escravos:
“Toda moral nobre brota de um triunfante
dizer sim a si próprio, a moral dos escravos diz não, logo de início, a um
‘fora’, a um ‘outro’, a um ‘não si mesmo’: e esse não é seu ato criador. Essa
inversão do olhar que põe valores – essa direção necessária para fora, em vez
de voltar-se para si próprio – pertence justamente ao ressentimento: a moral
dos escravos precisa sempre, para surgir, de um mundo oposto e exterior – sua
ação é, desde o fundamento, por reação”.19?
Ao
tipo psicológico do Redentor não pertence negatividade, oposição, nem também o
ressentimento. Sua práxis é, pois, afirmativa, tendo sua fonte na vivência da
bem-aventurança interior. Nele, a liberdade espiritual é a libertação do
espírito de vingança. Ora, espírito de vingança é, para Nietzsche, torturante
prisão e impotência. Sendo assim, a vida de Jesus é um caso paradoxal: depurado
do espírito de vingança, a práxis evangélica não constitui uma modalidade de
ressentimento; vivendo de sua própria plenitude, ela se configura como
afirmativa, porém numa ambiência histórico-espiritual de negatividade. Isso a
aproxima do Budismo, na medida em que nesse se valoriza “uma grande mansidão de ânimo e liberalidade de costumes, a ausência
completa de militaris-mo… Como meta suprema, busca-se a jovialidade, a calma, a
ausência de desejos, e essa meta se alcança”.20?
Sabemos
que, para Nietzsche, Budismo e Cristianismo são religiões da decadência. Entre
elas, porém, vigora uma diferença abissal: o Budismo é manifestação da
decadência ingênua, enquanto o Cristianismo se configura como decadência
hostil, que aspira pelo domínio:
“O Budismo é uma religião para homens
tardios, para raças que se tornaram bondosas, mansas, superespiritualizadas,
que sentem dor com demasiada facilidade (a Europa está longe de estar madura
para ele): ele é uma recondução dessas raças à paz e à jovialidade, à dieta
espiritual, a certo endurecimento no corporal. O Cristianismo quer dominar
sobre animais de rapina – a debilitação é a receita cristã para o amansamento,
para a ‘civilização’. O Budismo é uma religião para a conclusão e o cansaço da
civilização, o Cristianismo sequer a encontra diante de si, sob certas
circunstâncias, ela a funda”.21?
Isso
enseja um novo paralelo: para Nietzsche, também a Europa do final do século 19
vive um período de ocaso – os ‘espíritos livres’ são homens tardios, legatários
dessa herança espiritual acumulada. Por isso, Nietzsche pressente, como
fenômeno característico do declínio cultural da Europa de seu tempo, a ascensão
de um budismo europeu.
Ora,
sendo essa a situação da Europa, de acordo com a genealogia de Nietzsche,
caberia perguntar: não estaria se anunciando, para o futuro da Europa, um
amadurecimento possível daquele budismo ocidental? Não seria esse o kairós para
um renascimento da Christlichkeit? Não seria por isso que Nietzsche vislumbrava
não no Cristianismo histórico, mas no Ser-Cristão uma permanente possibilidade
de vida?
“O Cristianismo é em todo instante ainda
possível… Ele não está ligado a nenhum dogma insolente que se enfeitou com seu
nome, não necessita da doutrina de um Deus pessoal, nem da culpa, nem da
imortalidade, nem da redenção, nem da fé, ele simplesmente não tem necessidade
de qualquer metafísica, menos ainda do ascetismo, menos ainda de uma ‘ciência
natural’ cristã. Quem diz hoje: ‘Eu não quero ser soldado’, ‘eu não me preocupo
com tribunais’, ‘os serviços, a polícia, não são exigidos por mim’, esse seria
um cristão… justamente aquilo que é, em sentido eclesiástico, o cristão, é o
anticristão. A práxis do Cristianismo não é nenhuma fantasmagoria, tampouco a
práxis do Budismo o é: é um meio para ser feliz.”22? Utopia presentista dos
simples de coração, sem arché nem escatologia, sem tribunal da história ou
final apocalíptico dos tempos – o Cristianismo é um estilo de vida, a todo
instante possível.
Essa
reflexão comporta duas indagações: 1) a reconstituição genealógica da
psicologia do Redentor deriva de duas realidades fisiológicas o essencial do
Evangelho. Essas ‘realidades’ são mais indicativas de debilidade do que de
força ascendente:
“Ódio instintivo à realidade: conseqüência de
uma extrema capacidade de sofrimento e excitação, que já não quer, de modo
algum, ser tocada, pois sente de um modo demasiado profundo todo contato. A
exclusão instintiva de toda aversão, de toda inimizade, de todas as fronteiras
e distâncias no sentimento: conseqüência de uma extrema capacidade de
sofrimento e excitação, que sente com desprazer […] insuportável todo opor-se”.23?
Essa ‘realidade’ fisiológica é interpretada por Nietzsche como uma forma
sublime de hedonismo, de epicurismo. Jesus e Epicuro seriam, assim, decadentes
típicos, figuras crepusculares da civilização. “A fuga da dor, até mesmo no infinitamente pequeno na dor – ela não pode
terminar em nada além do que numa religião do amor.”24?
2)
Seria isso, porém, apenas esgotamento, ou também sinal de uma nova potência,
que teria alcançado um poder sobre si mesma e, como supremo autodomínio, se
tornado forte o suficiente para poder renunciar às formas mais grosseiras de
vontade de poder? Não estaríamos aqui em
presença de uma figura de auto-superação e auto-supressão por sublimação?
Em
todo caso, há indicações abundantes dessas vertigens do paradoxo em Nietzsche.
Em seu Zaratustra, por exemplo: “Quando o
poder se torna clemente e desce até o visível: beleza denomino eu tal
descender. E de ninguém quero mais beleza do que precisamente de ti, violento:
seja tua bondade tua derradeira autoviolentação. Esse é, com efeito, o mistério
da alma: só quando a abandonou o herói é que se aproxima dela, em sonhos, o
além-do-herói”.25?
Conversão
da força em beleza, uma vez atingido o ponto culminante no desenvolvimento de
uma potência cultural – não é isso mesmo que Nietzsche chama de catástrofe? Não
significa ela um momento de crise que completa e consuma as virtualidades
inscritas no destino de um ciclo cultural e, ao fazê-lo, descerra um novo
começo, uma transvaloração de todos os valores?
Argumentando
em favor de uma resposta positiva a essa questão, pode-se invocar o exemplo da
própria filosofia de Nietzsche. Esse ‘homem tardio’ vivenciou como o proprium
de sua inscrição na tradição metafísica precisamente a crise que marca o final
de um ciclo histórico da cultura no Ocidente. Destruídos os ‘ídolos’ supremos
dessa cultura, que possibilidades restariam para a moral e seus valores? Ao
identificar na probidade intelectual a derradeira virtude, Nietzsche recorreu a
essa metáfora da catástrofe.
“A própria moralidade cristã, o conceito de
veracidade, tomado cada vez mais rigorosamente, o refinamento de confessores da
consciência cristã, traduzido e sublimado em consciência científica, em asseio
intelectual a qualquer preço […] é por esse rigor, se é que por alguma coisa, que
somos justamente bons europeus e herdeiros da mais longa e mais corajosa
auto-superação da Europa.”26?
Não
se poderia retomar nesse sentido a pergunta pelo Cristianismo como uma práxis
sempre ainda possível? Isto é, como cuidado para com o que permanece seminal
nas raízes éticas mais profundamente implantadas em nossa história de formação?