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O mito da democracia racial e sua contribuição negativa para o campo político da esquerda. (FOTO/ Divulgação). |
Maria Raiane Felix Bezerra
A formação do Brasil veio por meio de muitas ruínas
e extermínios de povos racializados, que por consequência da colonização
europeia ocupa um lugar determinado a partir do racismo estrutural. Mas em
Gilberto Freyre, podemos notar como o autor pensa a formação do Brasil, que
segundo o referido, partiu de um equilíbrio de antagonismos onde permitiu que
houvesse uma mistura entre as raças de forma “harmoniosa”. Freyre (2005)
acredita que o colonizador português teve uma capacidade maior de
“flexibilidade” do que os outros colonizadores, sendo o português “mais
adaptável às situações” e por isso seria tranquilo para eles manterem relações
com pessoas negras e indígenas. Isso para Freyre resultaria no “grande sucesso
da colonização e da miscigenação brasileira” (Freyre, 2005).
Freyre localiza a família patriarcal2e
destaca-a em suma importância, pois afirma que por terem a “regalia da
escravidão”, miscigenação e produção, tornava-os o grande domínio rural que foi
responsável pela construção da mão de obra que sustentou a escravidão, que para
Freyre foi fundamental para a formação do Brasil, deixando explicito o seu
posicionamento que o problema do Brasil não era de cunho racial, e sim,
econômico (FREYRE, 2005).
É por meio desse desfecho do último
parágrafo que daremos início a discussão a qual esse texto se propõe, que é
demonstrar como a metodologia de Gilberto Freyre auxilia na escrita de autores
politicamente de esquerda.
São muitos os autores contribuintes para a
Sociologia brasileira e Florestan Fernandes é um deles. É considerado um grande
nome do pensamento social brasileiro pelo seu desempenho com a escrita
revolucionária e inovadora ao que se refere a ortodoxia marxista.
Fernandes (2017) em “o significado
do protesto negro” vai nos alertar sobre os processos da falsa abolição e
como isso foi o agravante para que a população racializada se mantivesse nas
margens da sociedade. Segundo o autor, isso teria sido esquematizado pela elite
branca que utilizou de seus interesses próprios para fazer tal situação. Os
impactos sofridos por essas amarras coloniais e escravocratas fez com que
houvesse um agravamento na divisão racial do trabalho e os negros e negras (es)
sempre estariam em desvantagem.
Em seu livro a população negra é
tratada como a esperança revolucionária e isso vem por meio de um olhar externo
daqueles que depositaram toda uma confiança em um povo que sofreu muito no
processo de colonização. A tão mencionada Luta de Classes segundo Fernandes
(2017) teria que estar lado a lado com as questões raciais para que finalmente
pudesse haver uma revolução, coisa que não aconteceu de forma natural e que
ainda está longe de se concretizar de fato, pois para além de estar lado a
lado, é preciso que cada indivíduo compreenda o seu papel e responsabilidade na
luta contra o racismo.
O mito da democracia racial fez com que
os movimentos negros lutassem muito para que essa falsa harmonia entre as raças
deixasse de ser o condutor dessa situação agravante que fazia com que a
escravização se perpetuasse de novas formas (FERNANDES, 2017). Estamos falando
de uma perspectiva em que o mundo inteiro ainda pensa sobre o país cujo
“harmoniosamente” vivem as raças (indígenas, europeus/brancos, negros e
racializados). Trazer Florestan Fernandes para essa discussão é necessário para
que possamos perceber em seu livro, que nas entrelinhas estava ali mais uma vez
o movimento negro solitário, “nós por nós”, onde todos em volta depositavam
suas esperanças, mas não se juntavam a luta contra a discriminação
racial.
Enquanto isso, vários movimentos
sociais de maioria classista ortodoxa não compreendiam e não consideravam que
todas as pessoas haviam de se responsabilizar pelo racismo e não apenas quem
era atravessado por essa estrutura. É de se questionar e refletir, quando
Fernandes é nomeado ou tratado como um militante “desobediente” em seu partido
político por fugir dessa ótica de compreender o Brasil como um país não
apenas com problemas econômicos, mas na sua dimensão racial.
Essa coisa da “desobediência” em que o
autor teve por ser de partido cujo marxismo era mais “ortodoxo”, apenas
significa que o racismo não era tratado como prioridade, que as lutas raciais
não faziam parte da agenda do partido político que ele fazia parte, ou seja, no
Partido dos Trabalhadores (PT). É preciso que falemos das problemáticas disso,
pois em um país cuja marca escravocrata ainda reina, todos devem se
responsabilizar pela dívida impagável a qual acomete o racismo.
Mesmo com alianças entre negros, indígenas,
racializados e brancos o racismo estaria longe de acabar, pois os brancos como
já vimos em Fernandes (2017), eram muito resistentes em assumir seus
privilégios, não apenas de classes sociais, mas de raça considerada superior
nessa sociedade. Assim como muitos intelectuais do pensamento social
brasileiro, Florestan Fernandes em seus argumentos e produções de saberes
acabou por reproduzir o Brasil em seus problemas com mais ênfase nas questões
econômicas, colocando o fim do racismo apenas em uma descrição de um manual de
como a militância negra deveria agir (FERNANDES, 2017).
Não é surpreendente tal situação, até porque se
formos fazer uma análise das obras dos autores geralmente lidos na
Sociologia Brasileira, notamos falhas que precisam ser expostas, pois se
a maioria dos autores da Sociologia Brasileira tratam as questões estruturais
no Brasil a partir da compreensão econômica, sendo que muitos deles foram
atuantes de partidos de esquerda e isso resulta em um retardamento das reconstruções
das identidades, coisa que os movimentos negros, indígenas e outros vem
buscando reverter à séculos.
Trago isso, pois o olhar estritamente materialista
ortodoxo, fez de muitos intelectuais da Sociologia acabar por reproduzir frases
como “discriminação social” (PRADO Jr. 1961) para se referir as pessoas com
apenas a classificação de pobres e ricos, não levando em consideração as marcas
deixadas pela colonização. O Brasil como bem menciona Lélia González (2019), é
um país cujo amefricanização está em todos os lugares, pois somos ameríndios e
amefricanos, no entanto, não há condições de descrever o Brasil sem esse
dado.
Muitos partidos políticos e outras organizações de
movimentos sociais se fundamentam pela ótica marxista-leninista. O problema não
está na dimensão de serem marxistas leninistas, mas na não abertura de novas
interpretações e questões que muitas vezes não foram bem-vindas nessas
organizações, como questões de gênero, raça, sexualidades e etc.
Trago essa reflexão para que pensemos e lembremos que Florestan Fernandes
foi do Partido dos Trabalhadores (PT) e como outros autores que também tiveram
a vida atravessada pela organização partidária sofrem desse déficit. É
inevitável não falar que o (PCB) foi o primeiro partido comunista no Brasil
fundado em 1922 e que mesmo poucos anos após a falsa abolição de (1888) não
teve a decência de tratar do racismo e da situação da população “semi livre” em
suas trincheiras. O PT também não fica atrás, até porque foi fundado na década
em que se fazia cem anos da falsa abolição e que se não fosse pela
militância negra do partido (JÚNIOR, 1987), nenhum debate e reflexão sobre a
vida da população negra brasileira teria acontecido e Lélia González nos
lembra disso muito bem, pois denuncia o (PT) nos anos oitenta por Racismo
por Omissão, porque o partido em rede nacional de TV em sua divulgação de
programa partidário não falou da situação da população negra brasileira,
e González interpretou isso como excludente (GONZÁLEZ, 1983).
O ponto crucial para pensarmos como a
metodologia de Gilberto Freyre contribuiu para que autores como esses não
despertassem seu interesse e responsabilidade com intensidade para com as
pessoas racializadas desse país, vem para explanar o quanto o mito da
democracia racial além de teoria, virou discurso que se tornou o brasão da
sociedade brasileira, no quesito apagamento de identidades e qualquer marca de
africanização/ameríndia (GONZÁLEZ, 2019).
Incrível como o PT classificou Florestan
Fernandes no lugar de “desobediência” por ele tentar observar novos elementos
fora do que já estava ali posto dentro dos partidos. Ouso em dizer que
essas atitudes omissas dos partidos foram responsáveis também pela não
valorização da identidade negra, indígena e de outros povos no Brasil,
atrasando e deixando cada vez mais distante o encontro com a
identidade/ancestralidade.
Como já havia sinalizado nas minhas
lutas diárias, que as formas de generalização que algumas organizações de base
alemã se utilizam de exemplos externos como a revolução Russa em 1917 para
comparar com a construção do Brasil e uma possível revolução brasileira, é
superficial e problemática, porque não se trata de um país homogêneo, mas de um
país pluricultural e multirracial. O problema das classes sociais existe em
todos os países de ordem econômica capitalista e imperialista, mas apenas o
recorte de classe não dá conta de toda uma multiplicidade de povos marcados
pela racialização.
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é
racismo estrutural?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e
desigualdade no Brasil / Sueli Carneiro: Selo Negro, 2011.
FERNANDES, Florestan. Significado do Protesto
Negro. São Paulo: Expressão Popular / Fundação Perseu Abramo, 2017.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global
Editora, 2005.
GONZALEZ, Lélia. Lélia por ela mesma. Epígrafe de
abertura do texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: Movimentos
sociais urbanos, minorias étnicas e outros estudos. Brasília: ANPOCS,
1983.
GONZALEZ, Lélia. A Categoria
Político-Cultural da Amefricanidade. In: Pensamento Feminista –Conceitos
Fundamentais. BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa (org.). Rio de Janeiro: Bazar
do Tempo, 2019, pp. 340-352.
JÚNIOR, Hédio Silva. O PT e a questão
racial: uma conversa que não pode ficar só entre negros – 1987. Boletim
Nacional do PT, nº 27, maio de 1987, p. 04-05. Acervo: CSBH/FPA.
PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil
Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1961. Ler: Introdução, Sentido da
Colonização e Vida Social.