Democracia direta é utilizada na
escolha dos habitantes prioritários das novas casas construídas no município de
Marinaleda e em decisões sobre o orçamento e obras mais importantes. As
assembleias chegam a reunir mais de 10% da população de aproximadamente 2.800
habitantes do povoado espanhol. Terceira parte da reportagem especial de Naira
Hofmeister e Guilherme Kolling, de Marinaleda, Espanha.
Marinaleda
- Dez anos antes de Olívio Dutra ter implementado como prefeito o Orçamento
Participativo em Porto Alegre, um pequeno município da Espanha já adotava a
prática. Em comum entre as experiências locais ibérica e gaúcha, um governo
eleito poucos anos depois de uma longa ditadura, executivos liderados por
quadros egressos do movimento sindical e uma administração com muitas demandas
e poucos recursos.
Assim,
em 1979, Juan Manuel Sánchez Gordillo deu início a assembleias populares para
decidir o que fazer primeiro com o dinheiro da prefeitura para qual havia sido
eleito. O professor de História e líder do Sindicato Obrero del Campo fez
pequenas intervenções na cidade da Andaluzia, mas os problemas urgentes, como a
falta de coleta de lixo, eram maiores do que a vontade política - não havia
verba.
A
solução, depois de longas discussões, foi o voluntariado. Surgiam os chamados
“domingos vermelhos” de Marinaleda, em que os cidadãos se reuniam para dar
expediente de graça em prol do bem comum. Nesse caso, recolhendo o lixo.
Com
o passar dos anos e a tomada de El Humoso para os trabalhadores do campo –
principal ocupação dos habitantes da cidade – a economia local cresceu e a
discussão do orçamento se sofisticou. “Percorremos os bairros e ruas da nossa
cidade com as receitas e os gastos previstos para o ano seguinte na prefeitura,
para que os vizinhos discutam o que está bem e o que está mal e o que deve ser modificado.
Ao fim, ocorre uma assembleia geral na qual as diferentes propostas e
prioridades são apresentadas, e com a voz e o voto, a população aprova ou
rechaça o orçamento”, explica a página web da localidade.
Assim,
foi o povo quem definiu as datas de abertura e encerramento da temporada da
piscina municipal, e também o valor de três euros a ser pago para utilizar o
espaço de lazer a cada ano. A creche do povoado foi construída após ser
escolhida como prioridade. Em 2012, a demanda mais votada foi erguer um lar
para os idosos. “Até eventuais subidas de impostos são debatidos no pleno”,
emenda a vice-prefeita de Marinaleda, Esperanza Saavedra Martín.
Não
há datas fixas para a realização dos encontros, mas sempre que se percebe a
necessidade de consultar a população sobre um determinado assunto, um carro de
som percorre todas as ruas da cidade convocando a assembleia.
Outra
estratégia utilizada pela prefeitura para levar a cabo obras na cidade é a
realização de oficinas de profissionalização, que são pagas pelo governo da
Comunidade da Andaluzia. Todos os municípios tem direito a uma verba anual com
esta finalidade e Marinaleda a utiliza para beneficiar os jovens que querem
aprender um ofício e, com um subproduto, o resto da comunidade.
Por
exemplo, se faltam brinquedos na creche, se realiza um curso de marcenaria; se
é necessário construir algum equipamento público, a prioridade é por ensinar a
ser pedreiro. “Se temos que levantar uma parede, não será para colocá-la abaixo
novamente”, resume Esperanza, salientando o bom uso dos recursos públicos.
Moradia tem preço simbólico
Também
nesses encontros se define quem receberá as habitações populares construídas
pelo município em parceria com seus habitantes. “A moradia é um direito, não é
um negócio”, explica o prefeito Sánchez Gordillo, que levou a cabo a iniciativa
para bloquear a especulação imobiliária na cidade.
É
a política chamada de “casas de auto-construção”, cuja inspiração é socialista.
A prefeitura doa os terrenos e o material, e o arquiteto municipal faz o
projeto: são 90 m² construídos e 100 m² contando o pátio. Quem levanta as
paredes, entretanto, são os futuros donos das novas habitações, que tem de
cumprir uma jornada laboral mínima, que no mais recente mutirão foi de 287
dias. O outro pré-requisito, claro, é não ter casa própria.
Assim
como os trabalhadores do campo, esses pedreiros tem direito a um salário de 47
euros ao dia, que ao final da obra são descontados do valor estipulado para o
imóvel concluído. As últimas casas entregues foram avaliadas em 47 mil euros,
um preço que, abatido o total de dias trabalhados, é amortizado em quantas
prestações forem necessárias de 15 euros ao mês.
Um
detalhe importante da auto-construção é que ninguém sabe onde vai viver antes
que todas as casas estejam prontas. O direito de escolher primeiro é dado
àqueles melhores avaliados por todos que participaram das obras: os que menos
faltaram ao trabalho, os mais caprichosos, e até os mais necessitados.
Até
hoje foram entregues 317 casas para a comunidade, as primeiras datam de 27 anos
atrás. “Mas agora mesmo temos uma lista de 43 pessoas que realmente necessitam
uma casa e conseguiremos entregar até o final do ano apenas 25”, lamenta
Esperanza, indicando que parte dos que solicitaram o benefício não serão
atendidos desta vez.
Não
há um critério para definir quem ganhará antes uma moradia. “Recém-casados têm
prioridade sobre um solteiro, entretanto, quem tem filhos pequenos passa na
frente dos que estão ainda planejando família”, explica a vice-prefeita. A
palavra final sobre a lista de beneficiários, entretanto, é da assembleia.
Imigração chega através da
propaganda
Assim
como ocorre com o trabalho socializado na fazenda de El Humoso e na
agroindústria Humar Alimentos, Marinaleda recebe muita gente de fora que vem em
busca da casa própria. “Aqui o pessoal chega com um sanduíche no bolso e acha
que no dia seguinte vai ter trabalho e casa para morar”, critica um jovem que
prefere não se identificar.
A
propaganda de fato atrai muitos forasteiros, especialmente africanos que
entraram sem papéis na Espanha. E se parte da juventude se ressente dessa
invasão estrangeira, o prefeito de Marinaleda acolhe a todos os que chegam.
“Seres humanos não são ilegais”, declarou certa vez em uma reportagem de
televisão.
Aos
que pode, dá um trabalho - Dodô, da Costa do Marfim, foi recebido no time de
futebol local, que disputa a quarta divisão do Campeonato Espanhol. Mussah,
proveniente de Mali, atua como tradutor do francês e faz bicos no que pode.
“Aqui me sinto em casa, sou muito bem tratado por todos”, comenta o jovem.
A
história mais conhecida é a de Mohammed, um marroquino que depois de legalizado
foi contratado como zelador de El Humoso e hoje vive com a esposa e os dois
filhos na propriedade rural. Para aqueles que não tiveram a mesma sorte de
Mohammed, sempre há espaço no ginásio municipal, que por sinal é parte do
complexo esportivo Che Guevara.
Com informações do Carta Maior