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Aldeia de índios Tapuios cristãos, 1820. Johann Moritz Rugendas. |
Um
dos grandes desafios enfrentados pelos pesquisadores que se dedicam ao período
colonial na América portuguesa é o de recuperar a trajetória de indivíduos
anônimos. Diferente do que ocorre com personalidades célebres e ilustres, a
investigação sobre as pessoas comuns esbarra nos limites da documentação,
muitas vezes restrita a fragmentos, menções breves ou pequenos registros. Para
os que estudam as populações indígenas nesta época, as dificuldades são ainda
maiores. Por se tratar de povos ágrafos, quase sempre situados em posições
sociais subalternas e sujeitos a diferentes formas de tutela, os rastros sobre
os indígenas são ainda mais escassos.
Uma
rara exceção a esse quadro é Miguel Ferreira Pestana. Como tantos indígenas que
viveram no período colonial, a história desse homem poderia ter se mantido no
anonimato e se confundido com várias outras caso um fato não tivesse mudado
definitivamente os rumos de sua existência: a sua prisão pela Inquisição
portuguesa. Foram os registros escritos pelos agentes do Tribunal do Santo
Ofício, responsáveis por seu julgamento, que tornaram possível a recuperação
desta inusitada trajetória.
A
acusação que pesava sobre Pestana nos dá indícios de uma vivência que rompe com
o persistente lugar comum de passividade indígena diante da catequese cristã:
Miguel foi julgado e condenado pela Inquisição por feitiçaria, tendo sido
denunciado por fazer uso de bolsas de mandinga. Em virtude dos interrogatórios
e testemunhos registrados no processo inquisitorial, é possível entender não
somente a sua relação com a bolsa de mandinga, encarada por ele como fonte de
diferentes poderes sobrenaturais, mas também mergulhar em seu dia a dia. Adepto
de crenças diversas, o que incluía um catolicismo com contornos Tupi e práticas
de origem africana, Miguel refletia como poucos a pluralidade étnica e cultural
que caracterizava o mundo colonial. Mas quem era, afinal, este indígena?
A vida no aldeamento
Nascido
aproximadamente em 1705, o primeiro lar de Miguel Ferreira Pestana foi o
aldeamento de Nossa Senhora da Assunção de Reritiba, localizado no sul do
Espírito Santo. O lugar, famoso por ter sido onde o padre José de Anchieta
viveu os seus últimos dias, era uma das principais missões jesuíticas da
capitania. Miguel, inclusive, era parte de uma família antiga no aldeamento,
estabelecida em Reritiba há pelo menos três gerações. Filho do aldeado Joaquim
Ferreira, ele foi batizado pelo padre Afonso Pestana, o que provavelmente
explica a combinação de seus sobrenomes. Já o nome Miguel deve ter sido em
homenagem ao avô, Miguel Ferreira, ou mesmo ao dia de São Miguel, cerimônia
realizada anualmente em Reritiba. Ainda no aldeamento, ele se casou duas vezes:
a primeira com Izabel, de quem ficou viúvo algum tempo depois, e a segunda com
Ângela Joana Gonçalves, com quem teve alguns filhos.
O
cotidiano de Miguel Pestana no aldeamento era marcado pelos limites do regime
de tutela jesuítica. Responsáveis pela conversão dos indígenas em súditos
cristãos da Coroa portuguesa, os missionários estabeleceram uma rígida rotina
aos aldeados. A começar pelo trabalho diário, que para os padres era a melhor
forma de eliminar os vícios da vida nômade. Sob a supervisão dos jesuítas,
Miguel Pestana aprendeu o ofício de carpinteiro e prestava diversos serviços a
mando deles.
Do
ponto de vista da catequese, os missionários se esforçavam para substituir os
hábitos indígenas pelo modo de vida cristão, recorrendo a incessantes práticas
de evangelização que começavam já nas primeiras horas do dia. Como se não
bastassem estas obrigações, o cerco à vida privada dos indígenas se fechava com
visitas que os padres realizavam às suas casas ao menos uma vez por semana,
sendo esta uma maneira clara de vigiar e controlar os passos dos aldeados. Não
havia espaço para o ócio ou a diversão. E para os que não aceitavam esse dia a
dia, faltassem a alguma obrigação ou não se comportassem como devia, vários
eram os castigos, que iam desde as chicotadas ao tronco. Ocupando o corpo e a
mente, os religiosos buscavam cercear a autonomia indígena.
O
domínio jesuítico, porém, não agradava a Miguel Pestana, que sempre manteve um
relacionamento conflituoso com os missionários. Rebelde, o indígena tinha
grande dificuldade em seguir a vida regrada imposta pelos padres. Guiado por um
catolicismo construído à luz da compreensão indígena, Miguel não seguia
fielmente os ensinamentos jesuíticos, o que suscitava inúmeras discórdias.
Insatisfeito com a rigidez dos missionários e temendo os castigos previstos
pela pedagogia jesuítica, ele fugia com frequência do aldeamento acompanhado de
sua segunda esposa. Fora de Reritiba, ambos buscavam a liberdade que os
superiores da missão tanto impediam: novas vivências e experiências.
Trabalhando nas fazendas de colonos vizinhos quando estava ausente, Miguel
tirava proveito de seu ofício de carpinteiro para satisfazer suas necessidades,
voltando para o aldeamento quando lhe convinha. Nestas idas e vindas, o
indígena interagiu com diferentes práticas culturais e religiosas que
circulavam no mundo colonial, o que contribuiu para a formação de sua
religiosidade tão diversa.
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Porto Estrela (1835). Rugendas, Johann Moritz, 1802-1858. In: Viagem pitoresca através do Brasil. |
Em
uma dessas fugas, Miguel Pestana teve contato com uma carta de tocar, escrito
proveniente da cultura popular portuguesa e que se supunha ter propriedades
mágicas relacionadas à proteção ou a conquistas amorosas. Posteriormente, ele
chegou a ser surpreendido pelo padre superior de Reritiba com a dita carta,
prática que era condenada pelos preceitos católicos. Essa foi a gota d’água no
turbulento relacionamento de Miguel com os missionários.
Demonstrando
ser mais do que uma folha em branco pronta para que os jesuítas imprimissem o
que bem entendessem, Miguel repudiou a submissão aos padres e fugiu definitivamente
do aldeamento com a sua esposa. A sua rebeldia, porém, era um sinal da
insatisfação que rondava Reritiba e que explodiria anos depois na forma de uma
grave revolta indígena contra os jesuítas, a qual Miguel não chegaria a
conhecer. Ele havia rumado para longe do Espírito Santo na tentativa de
reconstruir a sua vida.
Uma nova vida no Recôncavo
Quando
abandonou Reritiba, Miguel Pestana perambulou por diversos locais até chegar ao
Rio de Janeiro e se estabelecer com sua esposa no Recôncavo da Guanabara, na
segunda metade da década de 1720. Situada nas proximidades do Caminho Novo das
minas, a região do Recôncavo se destacava pela produção de gêneros de
abastecimento, como arroz e mandioca, e pela ordem escravista bem consolidada.
Comparada à vida no aldeamento, esse era um cenário bem diferente do que estava
acostumado. Se por um lado ele se distanciou da rotina rigorosa imposta pelos
missionários, por outro Miguel renunciou à principal garantia que tinha perante
a escravidão: o status de indígena aldeado. Para os que não dispunham da
proteção concedida pelas autoridades coloniais aos aldeados, a linha entre a
liberdade e a escravidão era tênue. Obrigados a buscar trabalho nas fazendas
dos colonos, estes indígenas conviviam com o risco constante de serem
submetidos a outras relações de subordinação.
Miguel
Pestana não demorou a entender estas dificuldades. Precavido, o indígena
abandonou o seu passado como desertor de um aldeamento e reforjou a sua
história: ele passou a se identificar como Domingos Pedroso, proveniente de São
Paulo. A sua adaptação à nova realidade, no entanto, foi facilitada por um
elemento de sua vida pregressa: o domínio do ofício de carpinteiro, aprendido
enquanto esteve sob a tutela dos jesuítas em Reritiba, mostrou-se fundamental
para que Miguel encontrasse um lugar na sociedade local. O fato de exercer um
trabalho especializado o diferenciava de boa parte da massa de indivíduos
despossuídos e subalternizados. Em uma sociedade hierárquica e escravista como
a que predominava na América portuguesa, este era um importante fator de
distinção social, uma vez que lhe dava acesso a oportunidades de trabalho mais
vantajosas e convenientes.
Sem
dispor de uma residência fixa, Miguel transitava pelo Recôncavo da Guanabara,
abrigando-se nas propriedades de colonos para quem prestava serviços. Morando
nas senzalas das fazendas, o indígena interagia diretamente com escravizados
que coabitavam estes espaços. Ele, então, passou a conviver de perto com os
cativos e com o mundo da escravidão, possibilitando o aprendizado de códigos e
hábitos referentes aos escravizados. Isso de certo abriu caminho para outra
atividade exercida por ele no Recôncavo da Guanabara, a de capitão do mato na
freguesia de Inhomirim. Mantendo-se atento a eventuais fugas ou a rebeldias nas
senzalas onde vivia, Pestana adquiriu experiência junto aos escravizados e
angariou a confiança dos proprietários locais, fatores essenciais para que
ocupasse o posto de capitão do mato.
Trabalhando
em benefício dos colonos, Miguel Pestana passou a representar diretamente os
interesses senhoriais. Esse foi, sem dúvida, um sinal de ascensão social. Em
uma sociedade marcada pela ordem escravista, capitães como ele desempenhavam
papel essencial na defesa dessa ordem, constituindo importante aspecto de
distinção. Tal cargo possibilitava a indígenas, negros e mestiços, parcela
considerável dos indivíduos que ocupavam o posto de capitão do mato, não apenas
maior aproximação com os senhores, como também o distanciamento em relação à
escravidão e aos grupos subalternos da hierarquia colonial.
A
interação de Miguel Pestana com os escravizados, contudo, não se limitaria à
perseguição de fugitivos. Em certa ocasião, quando capturou no caminho das
minas um negro que havia fugido de seu senhor, Miguel encontrou junto a ele uma
bolsa supostamente mágica, capaz de proteger quem a utilizava. Foi o primeiro
contato do indígena com a mandinga, que se tornou indispensável em sua vida
desde aquele dia. Crente nos poderes do objeto, que era uma prática protetiva originada
na África e que combinou elementos cristãos a partir de sua circulação no
império português, o indígena converteu-se em um adepto tenaz da mandinga, a
ponto de ensiná-la a negros com quem convivia nas senzalas e de vender bolsas a
interessados em adquirir os poderes associados a ela. Não demorou muito para
que ele fosse reconhecido como um afamado mandingueiro no Recôncavo da
Guanabara.
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Capitão do Mato, 1835. Johann Moritz Rugendas. |
Ao
considerarmos a trajetória de Miguel Pestana, poucos elementos expressam tão
bem a pluralidade das relações sociais estabelecidas por ele e os intercâmbios
culturais vivenciados por esse indígena quanto à bolsa de mandinga. Esse
artefato se tornou uma espécie de catalisador das múltiplas influências que
experimentou ao longo de sua existência. Dentro da bolsa, havia itens ligados à
simbologia cristã, como hóstias e pedras d’ara, pós que ele produzia com cascas
de frutas e a carta de tocar que ele conhecia desde que vivia em Reritiba.
Peça-chave
na forma como este indivíduo interpretava a realidade, a bolsa de mandinga
funcionava para Miguel Pestana não apenas como um amuleto de proteção, mas
também como fonte de diferentes prodígios. Ele declarou acreditar que a bolsa
lhe conferia defesa contra perigos, incluindo facadas e tiros, valentia, sorte
e até mesmo poder de sedução sobre mulheres. Articulando referências cristãs,
crenças diversas com as quais dialogou e componentes materiais ressignificados
em torno de um artefato culturalmente híbrido, mas com uma evidente origem
africana, a bolsa de mandinga era uma prática que contrariava os dogmas da
Igreja Católica. Para Miguel, porém, a bolsa parecia ser acima de tudo uma
resposta para os anseios e para os dilemas com os quais este indivíduo lidava
no cotidiano colonial.
Caindo em desgraça
Em
1737, Miguel Pestana já estava plenamente inserido ao Recôncavo da Guanabara.
Reconhecido como caboclo, termo que na época era usado para se referir a
pessoas de origem indígena adaptadas à lógica sociocultural introduzida pela
colonização, ele ganhava a vida como capitão do mato ao mesmo tempo em que
lucrava vendendo mandingas para todo tipo de gente. Neste ano, porém, ocorre a
grande reviravolta na história deste sujeito. Durante uma visitação episcopal
realizada na freguesia de Inhomirim, onde morava, Miguel foi denunciado por
fazer uso de bolsas de mandinga, tornando-se alvo da ação inquisitorial.
Inicialmente
levado ao aljube do Rio de Janeiro, o indígena aguardou por cerca de cinco anos
na dita prisão até ser remetido aos cárceres secretos do Santo Ofício, em
Lisboa, uma vez que a Inquisição não atuava no Brasil. Neste meio tempo, os
testemunhos que constam em seu processo inquisitorial são unânimes em afirmar
que Miguel, mesmo preso, vendia bolsas de mandinga, pós supostamente mágicos e
cartas de tocar aos que iam procurá-lo, o que incluía negros, caboclos, assim
como mulheres brancas, que lhe davam dinheiro e prendas de ouro por seus
serviços. Prova inequívoca da circularidade de crenças referentes à
religiosidade popular colonial e da fama que Pestana possuía como mandingueiro.
Os
inquisidores buscavam indícios de pacto demoníaco em suas mandingas, mas Miguel
se esforçou para negar qualquer delito. Ao ser submetido à tortura, porém, ele
cedeu à pressão dos agentes do Santo Ofício. Depois de alguns interrogatórios,
Miguel finalmente confessou que via e se comunicava com o diabo. E não era um
diabo qualquer. Segundo o indígena, o demônio aparecia no meio do mato,
geralmente na forma de macaco, o induzindo a fazer vontades maléficas. O
diabo-macaco, incomum aos inquisidores, refletia o imaginário de um aldeado.
As
referências ao mato, a um animal recorrente no cenário brasileiro e à tentação
para o mal aproximam-se das figuras demoníacas que os jesuítas traduziram para
o entendimento indígena a partir dos espíritos da floresta presentes na
mitologia Tupi. A confissão foi o suficiente para que Miguel Pestana fosse
condenado. Em 1744, ele acabou julgado e sentenciado pela Inquisição à
prestação de trabalhos forçados em Lisboa, demonstrando que os indígenas também
estavam na mira do Santo Ofício. Miguel, no entanto, conseguiria escapar do
castigo dois anos depois, fugindo sem deixar qualquer rastro.
A
fascinante trajetória de Miguel Pestana revela o enorme potencial de se
recuperar as vidas de sujeitos anônimos no período colonial. Ainda que as
dificuldades sejam grandes, a oportunidade de mergulhar no cotidiano de pessoas
comuns e avaliar as suas possibilidades de ação fazem o esforço valer a pena.
No caso do nosso personagem, a sua história deixa a certeza de que os povos
originários se inseriram na sociedade colonial, e posteriormente nacional, de
maneiras muito mais diversas e complexas do que se costuma imaginar. O passado
e o presente do Brasil possuem, enfim, inconfundíveis contornos indígenas.
Referências
CORRÊA,
Luís Rafael Araújo. Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela
Inquisição. Jundiaí: Paco Editorial, 2008.
POMPA,
Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil
colonial. Bauru: Edusc, 2003.
SOUZA,
Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
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Texto publicado originalmente no Café
História
CORRÊA,
Luís Rafael Araújo. Mandinga Cabocla: a história de um indígena condenado pela
Inquisição (artigo). In: Café História.
Disponível em:
https://www.cafehistoria.com.br/mandiga-cabocla-a-indigena-condenado-pela-inquisicao/.
Publicado em: 13 set. 2022. ISSN: 2674-5917.