22 de junho de 2025

Xibungo, meu pai

 

(FOTO | Reprodução).

Por César Pereira, Colunista

Aceitou a noiva que a mãe lhe deu, mas deixou a Heleninha cozinhando em fogo baixo. A noiva não tinha pressa, pois era tarda e reconhecia a impossibilidade de se casarem logo. Casar-se assim, sem nada de seu, sem profissão, sem nosso ninho, para quê?

Heleninha ouvia promessa do noivo — se casariam depois, quando ele pudesse dar-lhe uma vida. Até lá vai se aguentando meu anjinho. A noiva se consolava, não tinha jeito, o Serginho, vinte e três anos e sem sorte, arrumava uns bicos, mas nada sério, não guardava tostão.

Ela empregada de loja, já tinha uns cobres, até dezembro pronto o enxoval, se duvidasse quem sabe em maio, novo ano, nova vida. Quem sabe Serginho em melhor colocação? Que é um ano de esperança quando a felicidade futura é uma promessa?

A mãe quem tinha pressa (você se casa meu filho, e vem morar com a gente, seu pai entrevado, Heleninha uma companhia), armada a ratoeira se ele se descuidasse estaria definitivamente enredado nos braços do polvo. Mas sendo sua a vida. Sem tréguas, lá vinha a mãe. O quarto trancado, ouvia, a velha parava diante da porta, sempre a escuta. O que ele fazia o dia todo trancado no quarto. Nem com o André ele podia mais.

De repente começou a pensar e as noites se tornaram brancas e imóveis. Deitava-se na cama e os lençóis em fogo. Quando começara aquela agonia? O peito arfado de ódio. Ódio da mãe, ódio da noiva. Que tinham aquelas bestas canibais com a sua vida? De raiva esmurrava a cama, jogava objetos na parede, mordia os lábios, gosto de sangue na boca.

As mãos trabalhavam desarvoradas. O lençol pintalgado de manchas. Deu pra fumar, pelo menos era algum consolo. Aquilo começara a acontecer com ele não de repente, mas foi de repente que ele prestou atenção naquilo que lhe acontecia. O ódio no peito, precisava de uma carnificina. Telefonar ao André. Vem e me socorre Andrezinho, mas e se ele não o compreendesse?

Terei esse direito de me sacrificar, de colher um cacto na concha da mão? Sem temor, sem tremor? Piedade aos que não foram caldeados pelo enxofre e a geena. Conhecer um homem é receber mil adagas de fogo, é deitar-se em cama de pregos e aceitar a lâmina e a dor da lâmina cortando as entranhas incendidas.

Passou a caçar. Parado nas esquinas olhava os meninos de perna de fora no futebol de rua. O vento vinha e arrepiava-se todo. Salivava grosso, água morna na boca, febre no corpo, suor nas mãos, chama nas axilas em fogo.

Sentava-se nas praças e observava. O olho da cobiça, língua no canto da boca. Belos varões caminhando sob as luzes das luminárias frias. Ele estirava-se todo, estremunhando de êxtase e pavor. Casaizinhos felizes encostados aos muros das casas em carícias furtivas sob o moletom ou jeans, deu pra vigiá-los, esgueirava-se nas sombras espreitando o momento de riste da grande adaga.

No quarto debulhava-se, dedilhava o próprio prazer através da névoa da memória e da imaginação. Passou a se satisfazer cada vez mais durante o dia. Emagreceu, perdeu a cor trigueira e agora pálido, vampiro intrépido a caminhar dentro da noite.

Dentro de casa não havia consolação. A mãe queria-o pra Cristo, mas ele recusava cruz, coroa de espinhos, capa de púrpura. Tempo do enjaulado já ia longe. Passou das praças e das esquinas para os banheiros públicos.

Nos mictórios o altar do grande Bezerro de Ouro, a epifania suprema, o deus condenado ao exílio, as sombras. Todo um rito abominado pela pudicícia das velhotas de batinas que imputavam à humanidade inteira preleções e palavras gastas, mentiras gestadas nas cabeças aureoladas de nefelibatas. E eu preso nessa gaiola, me proibindo os voos, me impondo corda e baraço. Quem me impede de habitar o templo do prazer, a casa da alegria?

Não dormia mais em casa, o quarto sempre fechado, a chave no bolso da calça. Nenhuma satisfação à mãe (meu filho, onde você está metendo sua alma?) — Há tempo esquecido de Heleninha, ainda noivo?  Prometera uma vida para a noiva, mas dar-lhe esta vida era também perder a própria.

O pai instado pela mãe:

— Donato, você não ver que o seu filho?

— ...

— Fale com ele, rogue, as más companhias.

— ?

— Aquele loiro, o moço não presta, perdição, o demônio entrou no corpo do nosso filho, vamos deixar que vença o Lusbel?

No outro dia enquanto comia o pão com ovo na hora do almoço, ouviu o pai atrás, estava velho e gasto, arrastava a perna gangrenada envolta em gaze. Se veio para dar sermão melhor voltar, não tinha mais idade para aquilo, não tinham nada com a sua vida.

O pai entrou na cozinha e puxou a cadeira, o filho abocanhou uma porção de pão e ovo, a gema mole escorrendo entre os dedos. Por onde começar aquela conversa com o filho, a mulher queria porque queria que ele falasse daquilo.

— Serginho a tua mãe está triste.

— Acredito,pois há tempos que você inútil, meu pai.

— Você não me respeita, meu filho?

— Não convém agora...

— Seu noivado, Serginho?

— Isso foi numa vida passada, meu pai.

— A pobre da moça, agora sem esperança.

— Não foi tocada, não mexi num fio de cabelo dela.

— ...

Serginho lambia a mão melada de gema de ovo, a língua passando e deslizando entre os dedos.

— Então você — falou o pai.

— Sim, xibungo, meu pai — disse Serginho — vai lá dentro e contra pra ela.

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