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(FOTO | Reprodução). |
Por César
Pereira, Colunista
Aceitou a noiva que a mãe lhe deu, mas deixou a Heleninha cozinhando em fogo baixo. A noiva não tinha pressa, pois era tarda e reconhecia a impossibilidade de se casarem logo. Casar-se assim, sem nada de seu, sem profissão, sem nosso ninho, para quê?
Heleninha ouvia promessa do noivo — se casariam depois,
quando ele pudesse dar-lhe uma vida. Até lá vai se aguentando meu anjinho. A
noiva se consolava, não tinha jeito, o Serginho, vinte e três anos e sem sorte,
arrumava uns bicos, mas nada sério, não guardava tostão.
Ela empregada de loja, já tinha uns cobres, até
dezembro pronto o enxoval, se duvidasse quem sabe em maio, novo ano, nova vida.
Quem sabe Serginho em melhor colocação? Que é um ano de esperança quando a
felicidade futura é uma promessa?
A mãe quem tinha pressa (você se casa meu filho, e
vem morar com a gente, seu pai entrevado, Heleninha uma companhia), armada a
ratoeira se ele se descuidasse estaria definitivamente enredado nos braços do
polvo. Mas sendo sua a vida. Sem tréguas, lá vinha a mãe. O quarto
trancado, ouvia, a velha parava diante da porta, sempre a escuta. O que ele fazia
o dia todo trancado no quarto. Nem com o André ele podia mais.
De repente começou a pensar e as noites se tornaram
brancas e imóveis. Deitava-se na cama e os lençóis em fogo. Quando começara
aquela agonia? O peito arfado de ódio. Ódio da mãe, ódio da noiva. Que tinham
aquelas bestas canibais com a sua vida? De raiva esmurrava a cama, jogava
objetos na parede, mordia os lábios, gosto de sangue na boca.
As mãos trabalhavam desarvoradas. O lençol pintalgado
de manchas. Deu pra fumar, pelo menos era algum consolo. Aquilo começara a
acontecer com ele não de repente, mas foi de repente que ele prestou atenção
naquilo que lhe acontecia. O ódio no peito, precisava de uma carnificina.
Telefonar ao André. Vem e me socorre Andrezinho, mas e se ele não o
compreendesse?
Terei esse direito de me sacrificar, de colher um
cacto na concha da mão? Sem temor, sem tremor? Piedade aos que não foram
caldeados pelo enxofre e a geena. Conhecer um homem é receber mil adagas de fogo,
é deitar-se em cama de pregos e aceitar a lâmina e a dor da lâmina cortando as
entranhas incendidas.
Passou a caçar. Parado nas esquinas olhava os
meninos de perna de fora no futebol de rua. O vento vinha e arrepiava-se todo.
Salivava grosso, água morna na boca, febre no corpo, suor nas mãos, chama nas
axilas em fogo.
Sentava-se nas praças e observava. O olho da cobiça,
língua no canto da boca. Belos varões caminhando sob as luzes das luminárias
frias. Ele estirava-se todo, estremunhando de êxtase e pavor. Casaizinhos
felizes encostados aos muros das casas em carícias furtivas sob o moletom ou
jeans, deu pra vigiá-los, esgueirava-se nas sombras espreitando o momento de
riste da grande adaga.
No quarto debulhava-se, dedilhava o próprio prazer
através da névoa da memória e da imaginação. Passou a se satisfazer cada vez
mais durante o dia. Emagreceu, perdeu a cor trigueira e agora pálido, vampiro intrépido
a caminhar dentro da noite.
Dentro de casa não havia consolação. A mãe queria-o
pra Cristo, mas ele recusava cruz, coroa de espinhos, capa de púrpura. Tempo do
enjaulado já ia longe. Passou das praças e das esquinas para os banheiros
públicos.
Nos mictórios o altar do grande Bezerro de Ouro, a
epifania suprema, o deus condenado ao exílio, as sombras. Todo um rito
abominado pela pudicícia das velhotas de batinas que imputavam à humanidade
inteira preleções e palavras gastas, mentiras gestadas nas cabeças aureoladas de
nefelibatas. E eu preso nessa gaiola, me proibindo os voos, me impondo corda e
baraço. Quem me impede de habitar o templo do prazer, a casa da alegria?
Não dormia mais em casa, o quarto sempre fechado, a
chave no bolso da calça. Nenhuma satisfação à mãe (meu filho, onde você está
metendo sua alma?) — Há tempo esquecido de Heleninha, ainda noivo? Prometera uma vida para a noiva, mas dar-lhe
esta vida era também perder a própria.
O pai instado pela mãe:
— Donato, você não ver que o seu filho?
— ...
— Fale com ele, rogue, as más companhias.
— ?
— Aquele loiro, o moço não presta, perdição, o
demônio entrou no corpo do nosso filho, vamos deixar que vença o Lusbel?
No outro dia enquanto comia o pão com ovo na hora do
almoço, ouviu o pai atrás, estava velho e gasto, arrastava a perna gangrenada
envolta em gaze. Se veio para dar sermão melhor voltar, não tinha mais idade
para aquilo, não tinham nada com a sua vida.
O pai entrou na cozinha e puxou a cadeira, o filho
abocanhou uma porção de pão e ovo, a gema mole escorrendo entre os dedos. Por
onde começar aquela conversa com o filho, a mulher queria porque queria que ele
falasse daquilo.
— Serginho a tua mãe está triste.
— Acredito,pois há tempos que você inútil, meu pai.
— Você não me respeita, meu filho?
— Não convém agora...
— Seu noivado, Serginho?
— Isso foi numa vida passada, meu pai.
— A pobre da moça, agora sem esperança.
— Não foi tocada, não mexi num fio de cabelo dela.
— ...
Serginho lambia a mão melada de gema de ovo, a
língua passando e deslizando entre os dedos.
— Então você — falou o pai.
— Sim, xibungo, meu pai — disse Serginho — vai lá dentro e contra pra ela.
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