Duval Muniz - professor e historiador. (FOTO/Reprodução/Eventos UFU). |
O
prefixo latino ex significa ação de tirar, saída, acabamento, ação de levar,
privação ou negação, reforço. Para descrevermos adequadamente a situação que
vivemos no país, desde a posse de Jair Bolsonaro na presidência da República, e
para descrever o comportamento do próprio presidente, devemos lançar mão desse
universo de palavras que, na língua portuguesa, se iniciam por esse prefixo
latino. Podemos descrever tanto a situação em que estamos, como o comandante
dessa situação, como sendo, no mínimo, excêntrico, ou seja, tudo aquilo que se
desvia da norma e da normalidade, tudo aquilo que é extravagante, esdrúxulo,
esquisito, fora do comum.
Jair
Bolsonaro já iniciou sua campanha à presidência se anunciando como sendo um
outsider, ou seja, uma espécie de ovelha negra no interior da classe política
brasileira. Seu marketing pessoal e político sempre se baseou na construção da
figura de um excêntrico, de um desajustado às normas que regem o politicamente
correto. Sendo medíocre em todos os sentidos, ele cedo descobriu que a melhor
forma de aparecer, de não continuar sendo fora do parlamento, o parlamentar
apagado e excomungado por muitos de seus pares, desprezado e subestimado até
pelos lobistas e pagadores de propina (o que terminou por lhe dar o trunfo de
parecer um parlamentar desligado da corrupção), por sua completa incapacidade
de articular um discurso que não seja composto de frases feitas, impropérios e
bordões reacionários destinados a produzirem o choque e o incômodo, era
elaborando esse personagem estranho, burlesco, que de tanto ser performatizado
terminou por ser subjetivado e encarnado.
Ele
foi descobrindo que milhares de pessoas nas redes sociais partilhavam com ele
essa sensação de excentricidade, de serem pessoas anômalas, de serem filhos
indesejados, de serem seres excepcionais, com toda a ambiguidade de sentido que
essa palavra carrega em nossa língua. Muitos, como ele, estavam à espera de
serem aceitos, vistos, acolhidos, representados por alguém que, como eles,
fossem os patinhos feios, as ovelhas negras da família. Se vivíamos uma
situação de excepcionalidade institucional, desde que as principais
instituições que deveriam preservar o Estado democrático de direito e a
democracia (Judiciário, Legislativo, Ministério Público, meios de comunicação),
resolveram golpeá-la, ela foi o momento adequado para que muitos daqueles que
se sentiam uma exceção à regra se manifestarem no sentido de colocar no poder
alguém que, de tão excepcional, atingia a condição de mito. O mito goza, antes
de mais nada, da condição de extemporaneidade, ele está fora e acima do tempo,
do passar do tempo. Bolsonaro apareceu, para muita gente, como aquele que
destoava do tempo de corrupção, violência, bandalheira, imoralidade, tempo do
demoníaco, do comunismo, do tempo de muitas outras fantasias e fantasmas de
maldade e degradação. Bolsonaro era uma espécie de anjo vingador que viria
recolocar os tempos nos eixos. Num tempo que parecia de exceção, somente alguém
exótico, alguém estranho, estrangeiro, distinto daquele tempo poderia trazer a
solução. Bolsonaro fez questão de se vender como o personagem antissistêmico (fantasia
que o aprisiona agora no governo e vem inviabilizando a governabilidade), como
uma excrescência em relação ao sistema político brasileiro. Atolado até a alma
em seus vícios, ele conseguiu navegar na onda da antipolítica alimentada pela
mídia em sua cruzada para retirar o PT do poder. Numa época em que o exercício
da política foi demonizado, em que ser político foi considerado necessariamente
ser uma pessoa incorreta, Bolsonaro, a encarnação do politicamente incorreto,
foi inflado à condição de salvador da pátria. Seus seguidores fanáticos, que se
consideram e, muito são vistos e tratados, como excêntricos, se apaixonaram
pelo mito que encarnava e verbalizava publicamente a raiva e a revolta de quem
se considera marginalizado, desprezado, subestimado, humilhado, maltratado.
Bolsonaro deu corpo e voz a todos os ressentidos, mal vistos, malditos e mal
amados do país. Ele encarnou e satisfez o desejo de vingança e de revanche de
muitos que se sentiam excluídos em suas famílias, em suas vidas afetivas e sexuais,
no mundo do trabalho e da crença, em sua condição de gênero e étnica, em sua
condição etária e política.
Assumindo
o governo ele se cercou de ministros que também se notabilizam pela
excentricidade, pela bizarrice, pelo fora do comum e do lugar. Bolsonaro e seus
filhos excepcionais sabem que se o pai se normalizar, se ele se conformar, se
ele se tornar um presidente comum, ele irá desaparecer, ele irá deixar cair
todas as suas máscaras e fantasias, o rei estará nu e sua mediocridade ficará
explicitada. Continuar agindo de modo excepcional é a única maneira de dar
alguma marca e distinção a um governo sem projeto claro para o país, sem
capacidade de articulação política, sem gosto pelo cotidiano da vida pública.
Bolsonaro sempre foi um parlamentar enfastiado com o dia a dia da política,
sempre teve preguiça da liturgia dos cargos que ocupou. Ser um presidente que
foge de todas as normas e regras que preside o cargo é a única coisa que
garante que ele vai continuar no centro dos holofotes. Como vai disputar
notoriedade com o juiz Moro, o queridinho da grande mídia, um homem com notória
sede de poder e notoriedade, em quem forças poderosas investem suas
expectativas de futuro? Como vai, em sua ignorância completa em administrar e
gerir a economia (e qualquer coisa) fazer sombra para o ai Jesus do mercado, o
paladino do neoliberalismo, Paulo Guedes, o vendilhão do país e o assaltante
dos direitos dos trabalhadores e dos aposentados? Tem que continuar fazendo
barulho, produzindo eventos, mesmo os mais constrangedores possíveis. Tem que,
inclusive, dar caneladas e cotoveladas periódicas em seus ministros estrelas (
e até mesmo na insignificante Damares, como ele fez questão de lembrar) para
mostrar quem manda na tropa, quem é que dá as ordens. Seu autoritarismo de
formação não permite que preste reverência ou homenagem a ninguém, a não ser a
seus ídolos políticos e intelectuais, Donald Trump e Olavo de Carvalho, que por
estarem distantes, fora do país, não ameaçam tomar o seu pirulito, tão
duramente conquistado. Foi às custas de muita humilhação, de muito
desprestigio, de muito desprezo, que conseguiu chegar onde chegou, sabendo
transformar estupidez em sabedoria, ignorância em informação, preconceito em
conceitos, malcriação em atitude política, violência em marketing político.
Ele
sabe que é um presidente extraordinário, não no sentido de ser acima da média,
mas de ser alguém que chegou lá de maneira excepcional, que conseguiu se eleger
graças a somatória de um conjunto improvável de circunstâncias, que é um presidente
fora do ordinário, fora da ordem. O fato de ter sido eleito pela conjunção de
eventos improváveis, faz com que ele julgue que só deve a ele, a seus
excepcionais filhotes e a seus seguidores nas redes, essa vitória e, portanto,
só a eles deve dar satisfação. Ele não faz ideia de que agora governa até para
aqueles que nele não votou (que foi a maioria), que ele agora chefia um Estado.
Ele continua achando que governa uma família, um clã ou no máximo um grupo de
seguidores nas redes sociais. Sua retórica e ações belicosas contra todos
aqueles que não vê como família ou seguidores, inclusive contra os aliados de
última hora, que sabe terem se aproveitado de sua popularidade, é resultado
dessa incompreensão de que agora ocupa um outro lugar, que não o permite agir
como um pai de família ou como um jovenzinho que se diverte sentado no chão com
seu celular. Durante a campanha ele parecia um moleque rebelde a fazer
traquinagens, brincando de fazer arminha com os dedos com adolescentes e
crianças, transformando o tripé de uma câmara fotográfica numa arma para
trucidar a petralhada, dando o bolo em todos os debates, levando a cola
explícita nas mãos para a sabatina do professor Bonner, contando a mentira mais
deslavada, inventando kit gays e mamadeiras de pirocas, caçando o fantasma do
comunismo em todo lugar. Na presidência continua contando petas, brincando com
fogo e armas, adorando seus ídolos de direita, disparando suas abobrinhas nas
redes sociais. Como uma criança mimada não mede as consequências do que diz e
do que faz e, assim vai improvisando uma administração que trata de satisfazer
apenas, da maneira mais desabrida, suas convicções pessoais e ideológicas. O
programa de governo é ele e suas idiossincrasias. Não importa que, simular uma
briga com os comunistas chineses, possa levar ao cancelamento de investimentos
de milhões de dólares no país, que possa significar a queda nas exportações de
produtos agrícolas; não importa que transferir a embaixada brasileira para
Jerusalém possa afastar os países árabes de nosso comércio exterior. Na sua
arrogância de menino birrento, não importa que suas atitudes de subserviência
explícita ao imperialismo norte-americano possa levar o país a perder prestígio
no mundo e afetar a relação com nossos vizinhos, comprometendo, inclusive, a
segurança nacional. Como ele mesmo diz, ele não segue o script de um presidente
da República comum e normal, que é alguém que se esforça para construir algo
que deixe a sua marca no país, ele veio para destruir. Seu rancor,
ressentimento e ódio a toda uma realidade, a todo uma sistema que o rechaçou e
rejeitou, por muito tempo, que o condenou a viver de rachadinha de salário de
funcionários e das conexões com zonas sombrias do mundo da contravenção e do
crime, o faz um presidente da destruição, ele veio para destruir muita coisa.
Seu ódio antipetista alimenta seu governo. Ele foi entronizado, mesmo que por
um acaso, no lugar do anti- Lula, por grande parte de nossas elites, e isso é
que dá norte e sentido a tudo o que faz. Como para muita gente da nossa
direita, Lula é a obsessão, é o que não sai da sua cabeça. Desmanchar, acabar,
destruir tudo o que Lula e o PT criaram é a única coisa que dá sentido a cada
uma de suas ações de governo. Se Lula participou da criação dos BRICS, ele o
destrói. Se Lula foi a alma da Unasul, ele a destrói. Se Lula investiu e criou
várias universidades, ele as hostiliza e delas retira cargos e recursos.
Trata-se do desmonte sistemático da herança do lulopetismo, que faz seu guru da
Virgínia espumar de ódio. Ele pouco está se importando com reforma da
Previdência, pelo seu gosto não a fazia, como confessou candidamente. Isso Lula
também fez e mesmo assim não agradou o mercado, que sempre quer mais. Só tem
graça acabar com o que o PT construiu: os ministérios, as conselhos nacionais,
a legislação trabalhista e sindical, as políticas sociais. Atacar os movimentos
sociais, entregar as empresas e bancos públicos, reforçadas e valorizadas na
administração do PT. Por isso mesmo se dizendo um patriota, um homem
nacionalista, entrega a nação porque o PT foi nacionalista e não ser diferente
não tem graça. Trata-se de ódio partidário, ideológico, de classe, ódio de
medíocres contra governos que contou com muita gente brilhante e capaz. É a
revolta dos extremamente fora de lugar.
Daí
porque o fato de postar uma foto escatológica nas redes sociais não deveria
causar tanto espanto. Estamos diante de um governo de gente que, durante muito
tempo, se sentiu uma excrescência, um resto, uma sobra, um erro, uma abjeção.
Qual a surpresa de que essas pessoas sintam atração pelo dejeto, pelo
excremento, pelo bizarro? Seja quem for que tenha encontrado e enviado ao
presidente aquela cena, buscando com ela resumir o que seria o carnaval, os
blocos carnavalescos, que vinham mandando sistematicamente o presidente se
utilizar do orifício por onde sai as fezes, é inegável que deseja e goza com a
visualização de tais práticas sexuais. O presidente ferido no lugar que parece
mais o preocupar, dada a sua obsessiva retórica homofóbica, (orifício que também
não sai da boca de seu guru, especialista em cunilíngua), partilhou numa rede
social oficial da presidência a cena, simbólica do que é seu governo, uma cena
escatológica e de mal gosto. Num país sério, num país não carnavalesco e não
carnavalizado, esse gesto teria lhe custado o cargo, por absoluta falta de
decoro e respeito pelo lugar que ocupa. Mas se falta de decoro fosse motivo de
alguém estar fora da vida pública, o deputado Jair Bolsonaro há muito teria
sido cassado pelos pares e condenado pela Justiça. Que surpresa pode haver no
fato de que alguém que fez da falta de decoro seu ganha pão de fama e
notoriedade, partilhar imagens indecorosas? Se Bolsonaro chegou a ser o mito
tendo comportamentos imorais e abjetos em toda sua carreira, qual a surpresa do
mito fazer do mijo sua mensagem de reinado de Momo? Do mito ao mijo não houve
assim tão grande transformação. Que espanto pode causar uma excrescência
veicular em nível nacional um ato de excreção? Se mais de um terço da população
do país foi às urnas para depositar seu vômito de raiva, ressentimento de
classe, de raça, de gênero, de condição sexual e religiosa, se fizeram da hora
de votar um momento de dejeção de seus desejos de morte, de violência, de
vingança, de domínio, de exploração, de escravização, de distinção, qual o
espanto que aquele que elegeram faça do dejeto a sua mensagem e efígie pública?
O detalhe da ignorância sobre o significado da expressão “golden shower” ainda
torna mais simbólica a cena partilhada de um governo que não só pratica mas
comemora a ignorância e a desinformação. A chuva ou o banho dourado caiu como
uma luva para exprimir o envolvimento do mandatário da nação com coisas muito
mais aparentadas do submundo, do esgoto da sociedade: suspeita de ligação com
as milícias, vínculos com os matadores de Marielle Franco, envolvimento no
laranjal do PSL, uso de caixa de dois na campanha eleitoral, uso de uma rede
internacional de difamação contra adversários, montagem de grupos de
extrema-direita armados, etc.
Estamos
vivendo um momento de privação, de inexistência, de negação do que é ter um
governo, uma administração, do que é ser um presidente da República. Todas as
ações de governo se regem pelo acabar, tirar, destruir, diminuir, cortar,
extinguir, impedir, estamos no governo em que imperam os conceitos e palavras
iniciadas pelo prefixo ex. Um governo que tudo o que promete é a privação, a
negação, a inexistência, um paraíso para aqueles que dele não precisa, um
inferno para aqueles que dele dependem. No governo da excomunhão dos que não
rezam por suas crenças ideológicas e teológicas, teremos ao final um país
esgotado, uma população exangue, de onde se precisará exumar a alma e o corpo
destruídos por esse ataque das forças da extinção e da morte. É preciso que as
forças vivas e da vida resistam e se coloquem no caminho de todo esse
excremento que ameaça nos afogar e naufragar. Não podemos deixar que reduzam
esse imenso país à condição de latrina dos grandes interesses do capital
internacional e de seus agentes indecorosos. (Publicado originalmente no Saiba Mais).
__________________________________________________
*Durval Muniz - Possui
graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual da
Paraíba (1982), mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas
(1988) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1994).
Professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Atualmente é professor visitante da Universidade Estadual da Paraíba, professor
permanente dos Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Pernambuco e Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coordenador do
Comitê da Área de História do CNPq. Tem experiência na área de História, com
ênfase em Teoria e Filosofia da História, atuando principalmente nos seguintes
temas: gênero, nordeste, masculinidade, identidade, cultura, biografia histórica,
produção de subjetividades e história das sensibilidades. (Via Lattes).
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