Em
agosto de 2012, o governo federal instituiu, para todas as universidades
federais, a "Lei de Cotas"
(Lei nº 12.711), que determina a reserva de 50% das vagas das instituições de
ensino superior para estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente
em escolas públicas. Entre as vagas reservadas, metade deve ir para estudantes
de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário
mínimo e meio per capita, e metade para estudantes de escolas públicas com
renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, a lei
reserva um percentual mínimo de vagas para pretos, pardos e indígenas de acordo
com a sua representatividade em cada Estado.
Do
Nexo
A
demanda pelo ensino superior cresceu intensamente no país nos últimos anos. A
oferta de vagas aumentou, porém jovens pobres e negros continuam com baixa
representação entre os ingressantes na universidade pública. Essa realidade
motivou a instituição da política de cotas, que procura garantir a igualdade de
oportunidades entre os jovens. A medida, no entanto, também tem sido alvo de
críticas. Entre elas, está o argumento de que os alunos que entram por meio do
sistema de cotas não têm nível educacional suficiente e poderiam comprometer a
qualidade do ensino. Outras críticas mencionam que a evasão entre cotistas
seria superior à de estudantes não cotistas e que esse tipo de intervenção não
enfrenta a questão da desigualdade na educação básica, central para o debate.
O
Nexo entrevistou Naércio Menezes, professor titular e coordenador do Centro de
Políticas Públicas (CPP) do Insper, professor associado da FEA-USP, membro da
Academia Brasileira de Ciências e colunista do jornal Valor Econômico. O
economista desenvolve pesquisas principalmente nas áreas de educação,
desigualdade, mercado de trabalho, produtividade, tecnologia e desemprego.
O sistema de cotas em universidades
públicas tal como adotado no Brasil funciona? Por quê?
NAÉRCIO MENEZES
Sim, o sistema funciona bem por vários motivos. Em primeiro lugar, porque o
Brasil é um dos países com oportunidades mais desiguais no início da vida. Ou
seja, quem teve sorte de nascer em uma família rica tem uma vida bem mais fácil
do que quem nasceu em famílias mais pobres. Assim, é mais a sorte e não tanto o
mérito que define o sucesso na vida no Brasil. Logo, se os jovens mais pobres
conseguem ter um desempenho próximo da nota de corte no vestibular, mesmo
apesar de todos os desafios que eles tiveram que enfrentar ao longo da vida,
isso significa que esses jovens têm habilidades socioemocionais bem mais
elevadas do que os jovens que nasceram em famílias ricas, fizeram cursinho
pré-vestibular e ficaram um pouco acima da nota de corte. O esforço e a
variação do conhecimento entre os jovens cotistas é maior do que entre os
não-cotistas que ficaram logo acima da nota do corte. Assim, promover os jovens
que fizeram o ensino médio em escolas públicas por meio das cotas é uma questão
de mérito e não de favorecimento.
De acordo com as evidências
empíricas, o desempenho dos cotistas é inferior ao dos não-cotistas? A
qualidade dos cursos é prejudicada? A evasão entre cotistas é maior?
NAÉRCIO MENEZES
As evidências mostram que a nota dos cotistas no Enem (Exame Nacional do Ensino
Médio) realmente é menor do que a dos não-cotistas (caso contrário as cotas não
seriam necessárias), mas essa diferença é bem pequena. É como se todos os
jovens estivessem numa fila com os não-cotistas nos primeiro lugares, mas os
cotistas ficando logo atrás, a uma distância pequena dos que entrariam no
vestibular sem cotas. Como há milhares de jovens negros inteligentes que
estudam nas escolas públicas no Brasil, a distância entre eles e os poucos que
estudaram nas escolas privadas é pequena. Depois da entrada na universidade, um
estudo da UnB [Universidade de Brasília] que seguiu os alunos cotistas e não
cotistas nos cursos mais concorridos, como Medicina e Engenharia, mostra que o
desempenho dos alunos cotistas é similar ao dos não-cotistas, o mesmo
acontecendo com a evasão. Isso acontece porque as habilidades socioemocionais
dos alunos cotistas são maiores, o que faz com que eles superem as suas
dificuldades de formação.
Quais as consequências do acesso à
educação na vida do cotista a médio e longo prazo?
NAÉRCIO MENEZES
Estudar numa universidade pública, principalmente nas carreiras mais
concorridas, faz toda a diferença na vida de uma pessoa. O diferencial de
salário do ensino superior é enorme no Brasil, o desemprego também é menor,
além de todo o processo de networking que ocorre quando você estuda com pessoas
motivadas e inteligentes ("peer effects"). Além disso, os jovens
negros que entram nas universidades públicas geralmente têm uma maior
preocupação social e podem servir de exemplo para outros jovens no seu bairro
de origem.
É possível falar também do impacto
que esse tipo de política pode ter para o país como um todo?
NAÉRCIO MENEZES
Sim, sem as cotas o país ficaria pior, pois se os jovens cotistas não tivessem
entrado na universidade pública eles provavelmente ficariam sem ensino
superior, pois não conseguiriam pagar uma universidade particular, ou teriam
que ir para uma faculdade de pior qualidade. Assim, esses jovens seriam menos
produtivos, e na medida em que eles têm uma habilidade socioemocional maior do
que os não-cotistas, o país como um todo perderia produtividade. Além disso, os
jovens-não cotistas podem facilmente pagar uma faculdade privada de alta
qualidade, pois têm mais recursos financeiros por terem tido a sorte de terem
nascido em famílias mais ricas.
Por que há tanta controvérsia em
torno do tema?
NAÉRCIO MENEZES
Em parte porque a elite tenta preservar seus privilégios. Como as cotas
diminuem a probabilidade de entrada no ensino superior público dos jovens
nascidos em famílias ricas, grande parte dessas famílias, que têm um poder de
mobilização muito forte, resistem às cotas. Parte da opinião pública também
acha que o que deve valer é apenas o resultado final (no caso a nota no Enem) e
não a variação no resultado dadas as condições iniciais. Assim, elas acham que
a qualidade do aluno na universidade pública cairia com as cotas. Vale lembrar
que a maior parte dos alunos que estudam nos cursos mais concorridos nas
universidades públicas fez o ensino básico inteiro em escolas privadas e depois
frequentam o ensino superior público sem pagar nada, às custas do Estado. Isso
agrava a desigualdade de renda e diminui a mobilidade intergeracional.
Seus estudos e artigos mencionam a
importância das competências socioemocionais para a formação e trajetória dos
estudantes. O que são essas competências?
NAÉRCIO MENEZES
De forma bastante simplificada, as principais competências socioemocionais são:
estar aberto a novas experiências, ter muita perseverança, ser amável com os
próximos, não ser neurótico (preocupação excessiva com tudo) e ser
consciencioso (preparar-se adequadamente para todos os desafios na vida).
Quanto nosso sistema público de
ensino investe na formação de competências socioemocionais dos alunos?
NAÉRCIO MENEZES
Por enquanto, o sistema público investe pouco na formação dessas competências,
não só no Brasil como em vários outros países. Até porque ainda sabemos pouco
sobre a mensuração dessas competências, seu desenvolvimento ao longo da vida e
como elas podem ser mudadas pelos professores e outros profissionais. Essas
competências surgem naturalmente nos jovens cotistas que têm um bom desempenho
no vestibular apesar da origem pobre, sem que ninguém as tenha ensinado. O
Instituto Ayrton Senna está desenvolvendo um trabalho muito importante para que
possamos conhecer mais sobre essas habilidades socioemocionais.
Professor Naércio Menezes. Foto:Divulgação/INSPER. |