“Mostrar
às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por
verdadeiro, por evidentes, certos temas fabricados em um momento particular da
história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.”
(Michel Foucault)
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Michel Foucault fala ao megafone ao lado de Jean-Paul Sartre, em manifestação. |
Há
trinta anos, em junho de 1984, morria em Paris Michel Foucault. Um pensador do
século XX que inventou certo modo radical de pensar, que atravessa este início
de século: suas reflexões permanecem fundamentais para os movimentos de
contestação política e social; para todos aqueles que desejam “saber como e até onde seria possível pensar
de modo diferente”.
Foucault
participou teórica e praticamente dos movimento sociais que poderíamos chamar
de vanguarda de seu tempo, sobretudo durante as décadas de sessenta e setenta:
a luta antimanicomial (sua experiência num hospital psiquiátrico foi uma das
motivações que o levou a escrever História da Loucura); as revoltas nos
presídios franceses (junto com Gilles Deleuze criou o GIP – Grupo de Informação
sobre as Prisões, que buscava dar voz aos presos e às outras pessoas
diretamente envolvidas no sistema prisional; com base nessa experiência
escreveu Vigiar e Punir); o movimento gay (uma das motivações para sua História
da Sexualidade).
O
pensador francês também escreveu artigos para jornais e revistas no calor da
hora sobre acontecimentos importantes, deu conferências e entrevistas em
diversos países, inclusive no Brasil. Contrapunha seu papel de intelectual ao “intelectual universal”, isto é, uma
espécie de líder que pensa pelas massas e as dirige para a “verdadeira” luta. O
filósofo via a si mesmo como um “intelectual
específico”, aquele que em domínios precisos contribui para determinadas
lutas em curso no presente. Parafraseando Deleuze, Foucault foi o primeiro a
ensinar a indignidade de falar pelos outros.
Ele
dizia que suas pesquisas nasciam de problemas que o inquietavam na atualidade:
evidências que poderiam ser destruídas se soubéssemos como foram produzidas
historicamente; por isso fez da ontologia (o estudo do ser, um modo de reflexão
geralmente desligado da realidade histórica, uma vez que busca princípios – as
ideias, para Platão; o cogito, para Descartes; o sujeito transcendental, para
Kant – que antecedem e, por assim dizer, fundam a história) uma reflexão em
cujo cerne está o presente e, portanto, a investigação histórica.
Através
de estudos transdisciplinares (e não entre disciplinas, pois trata-se de
colocar em questão os limites entre elas), Foucault deu forma a uma crítica
filosófica que recorre sobretudo à pesquisa histórica, para questionar as
maneiras pelas quais certas verdades e seus efeitos práticos vieram a se formar
e se estabelecer no presente.
Questionava
assim os sistemas de exclusão criados pelo Ocidende quando do início da época
moderna (na cronologia de Foucault, desde fins do século XVIII):
-
o saber médico e psiquiátrico – a patologização e a medicalização como formas
modernas de dominação sobre seres economica e socialmente inconvenientes, os
loucos;
-
o nascimento das ciências humanas e da filosofia moderna como saberes que
atestam a invenção do conceito de homem, transformando o ser humano, ao mesmo
tempo, em sujeito do conhecimento e objeto de saber: o grande dogma da
modernidade filosófica;
-
a prisão e outras instituições de confinamento (tais como a escola, a fábrica,
o quartel) não como um avanço nos sentimentos morais e humanitários, mas como
mudança de estratégia do poder, que visa o disciplinamento e a docilização dos
corpos;
-
a sexualidade como dispositivo histórico de objetivação (o indivíduo como
objeto de saber e ponto de aplicação de disciplinas) e subjetivação (o modo
segundo o qual o sujeito se reconhece enquanto tal) do corpo, através dos quais
se implica uma verdade essencial do homem. Não deixa de ser notável o fato de o
Ocidente ter inventado um ritual singular segundo o qual algumas pessoas alugam
os ouvidos de outras (os psicanalistas) para falarem de seu sexo.
Às
suas pesquisas, ele chamou ontologias do presente: um modo de reflexão, segundo
Foucault iniciado por Kant, em que está em jogo o vínculo entre filosofia,
história e atualidade. A tarefa de pensar o hoje como diferença na história.
Mas se a questão para Kant era a de saber quais limites o conhecimento deve
respeitar (os limites da razão), em Foucault a questão se converte no problema
de saber quais limites podemos questionar e transgredir na atualidade, isto é,
“dizer o que existe, fazendo-o aparecer
como podendo não ser como ele é” (2008, p. 325).
Nesse
sentido, o filósofo procurava dar visibilidade às partes ocultas que formam o
presente e os fragmentos de narrativas que nos constituem lá mesmo onde não há
mais identidade, onde o “eu” se encontra fracionado pela história plural que o
engendrou. De modo que esse questionamento histórico-filosófico não nos conduz
à reafirmação de nossas certezas, de nossas instituições e sistemas, mas ao
afastamento crítico dessas instâncias e de si próprio como exercício ético e
político. Como indica Deleuze (1992, p. 119): “a história, segundo Foucault, nos cerca e nos delimita; não diz o que
somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir; não estabelece nossa
identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos”.
A
história (não a narrativa histórica ou a escrita da história, mas as condições
de existência dos homens no decorrer do tempo, que lhes escapa à consciência),
não é da ordem da necessidade; ela diz respeito à liberdade, à invenção;
pertence à ordem mais da casualidade do que da causalidade; é feita mais de
rupturas e violência do que de continuidades conciliadoras. Esse modo de
conceber a história se opõe à imagem tranquila que a narrativa histórica
tradicional criou: a história do homem como a manifestação de um progresso
inevitável – o lento processo de realização de uma utopia –, que seria alcançado
após o iluminismo pela aplicação dos métodos racionais. Como se a ciência, o
pensamento e a vida estivessem continuamente mais próximos de verdades que aos
poucos são reveladas como o destino final do homem.
Se
os estudos de Foucault mostram que os seres humanos não dominam os
acontecimentos que constituem o solo de suas experiências, eles atestam ao
mesmo tempo que, no espaço limitado do presente, as pessoas dispõem da
possibilidade de questionar o que muitas narrativas apresentam como necessário,
assim como as formas de poder e dominação que se pretendem absolutas.
Os
procedimentos de Foucault postulam, tal como Nietzsche descobrira no final do
século XIX, que é possível fazer uma história de tudo aquilo que nos cerca e
nos parece essencial e sem história – os sentimentos, a moral, a verdade etc.
Essa descoberta indica que, mesmo esses elementos aparentemente universais ou
imunes à passagem do tempo, se dão como contingências históricas, como coisas
que foram criadas em um dado momento, em circunstâncias precisas.
Trata-se,
assim, para Foucault, de pensar a história de determinadas problematizações: a
história de como certas coisas se tornam problemas para o pensamento, dignas de
serem pensadas por um ou outro domínio do saber e, através de formas de
racionalização específicas, verdades são fabricadas. De maneira que suas
pesquisas mostram que nossas evidências são frágeis e nossas verdades, recentes
e provisórias.
Textos citados:
FOUCAULT,
Michel. Estruturalismo e Pós-estruturalismo 1983. Ditos e Escritos II,
Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento, Trad. Elisa
Monteiro, Rio de Janeiro: Forense, 2008.
DELEUZE
Gilles. A vida como obra de arte, Conversações. Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.
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ele mesmo”