28 de junho de 2025

Não furtarás

 

(FOTO | Reprodução | WhatsApp).


Por César Pereira, Colunista

O menino ouviu o pai caminhando pela casa e abriu os olhos dentro da noite. O teto do quarto estava baixo, pois a treva dentro do quarto era espessa e fria. O menino procurou olhar o dia através da escuridão, mas seus olhos não viram nenhuma margem, voltou a fechá-los pensando que afinal poderia dormir mais um pouco, pensou também que logo o pai tomaria as ferramentas e deixaria a casa outra vez em silêncio, pronta para dormir.

Quando o menino voltou a acordar já era dia claro e o sol entrava com força por entre todas as frinchas da casa. Ele então se levantou da cama e saiu para a cozinha onde a mãe havia deixado um copo de leite coberto com o pano-de-prato.

O menino aproximou-se da mesa, mas não tomou o leite. A casa jazia numa enorme ausência. Ausência da mãe que estava na Patroa. Então ele pensou na mãe, mas descobriu logo atrás desse pensamento a presença do pai. O dia começara quando ele tinha acordado com o barulho do pai que já estava saindo de casa para trabalhar.

O pai acordava de noite e começava a trabalhar antes que ele pudesse pensar amanheceu. Era uma coisa para o pai. O menino olhou pra um canto da cozinha, olhou também para trás da porta onde o pai deixava as ferramentas, nenhuma.

Antes que fosse de manhã o pai já se levantara e tomara as ferramentas e descera para a roça do Patrão. O pai lá estava sempre — fazendo a limpa do mato, capinando, capinando. Aquelas mãos escuras do pai despenteavam a erva, cavavam os sulcos, semeavam a terra.

Os braços do pai — pretos e duros de sangue assistiam ao cio da terra desde à semente ao fruto. Primeiro era o esforço de pôr o campo nu, de cavar as leiras, carquilhas que recebiam o plantio. Vinha a chuva, vinha o sol e depois a planta pálida e esguia se levantava do chão. O pai via que tudo germinava, que cada cova era uma vida e se orgulhava da sua coragem e talento de lavrador.

A alegria do pai — a terra era boa, a semente era boa, tinha bom sangue, pois fora sua a mão que despertara as sementes do seu sono de grãos. Então o Patrão comparecia, vinha fazer cálculos. Aquele homem feliz olhava o campo cultivado, pesava as espigas maduras, acariciava o ventre dos frutos nas ramas, decidia que aquele tinha sido um ano bom e precisaria de toda a renda da terra delegada.

Quando o pai voltasse para o almoço a mãe também já teria voltado pra casa. O menino olhou o sol subindo acima das nuvens e logo depois crepitando sobre as telhas. Veio um pássaro coberto de sol e o menino se disse que se ele fosse uma ave como aquela voaria até o sol para pedir mais sombras para a tarde. O dia já tinha se consumado num vasto céu azul sem nuvens quando aquele menino saiu de casa para encontrar a mãe.

A mãe estava envolta numa espiral de poeira e bosta de vaca. Era o dia do varre-varre da chácara da patroa e a mãe não o pudera esperar acordar para se pôr no serviço com ela. Quando a Patroa acordasse lá dentro já encontraria o terreiro limpo, as galinhas alimentadas e os porcos nutridos. Com o trabalho assim adiantado a mãe estaria cedo em casa.

Os primeiros raios de sol encontraram a mãe quebrando guaxuma para a vassoura. Reuniu as hastes em dois ramalhetes e os jungiu com embira de bananeira pondo-se em seguida a varrer atrás da casa. Pensou no menino de repente acordando sozinho em casa, mas não quis trazê-lo para a lida. A mestra dissera que aquele era um menino inteligente, de boa cabeça.

Sendo como ela dizia valia nada trazer o menino para o serviço, desperdício de menino, deixasse ele nos estudos, convencer o pai a não o sacrificar na roça foi muito bom. Enquanto ela podendo e as forças não lhe faltando os filhos não seriam como ela, escravos de uma Patroa.

Mas afinal o Patrão não era gente ruim. O seu homem pediu e teve permissão para ser morador naquela casa onde vinham vivendo. Ele também trabalhava na terra arrendada e o Patrão pedia pouco, só pedia mais quando a terra dava muito. O problema é que ela se cansava tanto fazendo os mandados daquela Patroa.

No entanto, o menino seria livre. A mãe acreditava que sendo mesmo como a mestra falava e o menino tendo boa cabeça era capaz de um dia ter um voo próprio. O deus livrasse o menino daquela vida. Uma vida tão rala, uma vida cheia de galinhas com fome e porcos esperando os restos no cocho. A mãe pressionava o pé para remover uma placa de bosta de vaca que se tinha aderido insistentemente ao chão, quando enfim realizou o feito voltou a agachar-se para juntar mais um montículo de terra, folhas e lixo.

As folhas de guaxuma soltavam um cheiro forte de ervas pisadas e cansadas. A mãe sentia uma pontada na espinha ao se inclinar para o chão. Procurou erguer-se um pouco, mas o sol bateu rudemente no seu rosto cegando-a um pouco. Pôs a mão direita sobre a testa para quebrar o sol e olhou em volta contemplando o serviço quase acabado.

Era tempo, pois lá dentro, na casa-grande, a Patroa tilintava xícaras e o odor quente e longo do café chegava até ela. A mulher abaixou-se para apanhar um punhado de pedregulhos pra espantar as galinhas que se distraiam espalhando o lixo. Assustou-as e limpou as mãos na saia, as mãos pardacentas da mãe estavam empoeiradas, os cabelos pretos da mãe estavam empoeirados, os olhos da mãe estavam empanados de lágrimas e pó.

O menino aproximou-se da mãe, olhou-a, pôs-se a caminhar ao seu lado.

Então você veio — disse a mãe.

Porque está aqui — disse o menino — então eu vim.

Só sabe andar atrás de minha saia — disse a mãe.

Posso ajudar muito — falou o menino.

Então ajude — disse a mãe.

Onde começo — falou o menino.

As galinhas já estão espalhando o lixo — falou a mãe — então você não ver?

O menino apanhou pá e carro-de-mão e foi recolher os montículos de lixo que a mãe deixara pela chácara. De repente ele dilatou as narinas e agitou-as no ar, era o cheiro de bolo, era o odor do café. O menino sentiu um vazio no estômago, olhou em volta, o vento estava parado nas folhas da mangueira. Aproximou-se da mãe.

Mãe, eu quero café.

Está me achando com cara de bule? — falou a mãe.

Não é bule, é café — disse o menino.

Não me chateei, seu chato — falou a mãe.

O pai já bebeu café — quis saber o menino.

Antes de ir pra roça, eu acho — disse a mãe.

Então por que eu não bebi café — falou o menino.

Porque você bebeu leite, não se lembra — disse a mãe.

Ah! — fez o menino.

Aproximou-se de um montículo de lixo e esterco onde uma galinha catava vermes e abaixou-se para contemplar a ave distraída. Se pudesse ser uma ave ele não seria uma galinha seria o vento e voaria com o sol e as nuvens para um céu com fatias de bolo e xícaras de café quente e preto.

O cheiro do café o encarava, deixava-o nervoso. O Patrão bebia café grosso e escuro, comia fatias de bolo macias e amarelas. O menino arrancou um ramo de fedegoso e esfregou-o na palma da mão, cheirou aquelas folhas podres maceradas entre os dedos como impondo um tormento contra si mesmo para esquecer o café.

Durante a tarde ele precisaria de muito mais daquelas folhas de fedegoso, pois teria muito que esquecer que o Patrão estava sentado a uma mesa comendo arroz e vaca. Aquela hora o pai já estaria em casa almoçando, a mãe a um canto da cozinha, ele sentado no chão olhando o pai comendo o angu, e o seu ódio ao angu crescendo em lágrimas e dor.

Ainda angu hoje, minha mãe — perguntou o menino.

Você sabe que sim — disse a mãe — pra ser feliz.

Eu não sou feliz — disse o menino.

E você sabe o que é ser feliz?

Os dois se olharam e depois olharam também uma galinha que fugia apavorada de dentro do mato.

Sei sim, ora — falou o menino — ser feliz não é ser Patrão?

A mãe deu umas vassouradas no chão para afastar o peru que vinha de leque aberto para perto dela. Depois retomou o trabalho, mas parou logo pra responder ao filho:

Por que você não termina esse negócio aí e vai pra casa?

O que eu faço em casa — quis saber o menino.

Ora, brinque, estude, ajude sua irmã.

Não quero brincar — disse o menino.

Estude — falou a mãe.

Não quero estudar — disse o menino.

Então não amole.

Depois que a mãe acabou o serviço na chácara precisou entrar na casa para começar a limpeza dos quartos, dos móveis e dos pratos. Sem poder segui-la o menino ficou debaixo da mangueira. O dia era um dia sem vento e de muito sol, as vezes ele tinha vontade de brincar, mas acalmava-se e apenas recolhia pedras e folhas no chão.

Quanto as folhas ele encontrou uma especialmente sua, pois era uma folha que vira se desprendendo do galho quando a mangueira tinha se balançado levemente ao toque dos raios de sol. Ele a viu ceder ao peso do amarelo e da ferrugem que se acumulara lá nela. Quando a folha caiu no chão ele a apanhou antes que as galinhas viessem e levassem para seus ninhos.

Quanto as pedras ele só pode respirar tranquilo quando guardou a mais redondinha e a mais lisinha no bolso do calção. Apanhou-a no leito seco do córrego, limpou-a na camisa e guardou-a sigilosamente até de si mesmo. Sempre costumava esquecer as pedrinhas que guardava no bolso e muito tempo depois tinha a alegria de descobri-las lavadas entre as dobras do pano.

O menino avançou para dentro do pomar, ele pisava as folhas secas e os antigos frutos que haviam apodrecido, secado nos galhos e enfim tinham caído no chão. Aquela hora o sol projetava enormes sombras sobre a terra, então ele sentou-se sobre uma raiz que se projetava de dentro do solo como uma cabeça de cavalo.

Ele pôs-se a cavalgar a raiz olhando a distância que poderia percorrer até chegar na beira do rio. Lá no rio havia lambaris prateados nadando na água clara e cascudos comendo areia no fundo da lama. Se ele pudesse entrar num búzio iria calmamente até bem perto dos lambaris e os pegaria com as mãos, então não teria que almoçar angu, seu almoço sendo somente lambari frito.

Foi quando o menino levantou os olhos para o galho próximo que ele viu a fruta. E era um intenso pêssego fresco e aureolado. Olhou a sua volta, nem as galinhas nem o cão. Curvou-se sobre a raiz, as asas do cavalo abriram-se e o volume de saliva cresceu. O menino ergueu-se, caminhou por baixo da árvore, o vento parado, duro.

Estendeu a mão para o fruto e ele deslizou para a sua palma. Sentiu-o, era um fruto quente e dourado. O primeiro pêssego daquele pomar. Aguardava-o a Patroa, o ansiava o Patrão. O menino mordeu a fruta, o suco escorrendo nos dentes, na língua, na boca, entre os dedos. O anelo da terra com a boa mão do semeador. O pêssego se desfazendo no menino, se desfazendo em alegria e lágrimas, a boca ardendo de delícia e êxtase, a hora exata do fruto e do apanhador.

César Maria Francisco, 25/06/2025

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