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Cartaz criado pelo CONSED para celebrar os 20 anos da criação da
Lei n° 10.639/2003. (FOTO | Divulgação). |
Por César Pereira, Colunista
No ano de 2008, três anos
após a criação da Lei n° 10.639/2003 esta passaria por modificações
importantes, pois a sua abrangência seria ampliada com a introdução da
obrigatoriedade de estudar a História e Cultura Indígena nas escolas.
No dia 11 de março de 2008,
o Diário Oficial da União publicou a Lei n° 11.645 que modificava mais uma vez
a LDBN/1996 que já havia sido modificada cinco anos antes com por meio da Lei
n° 10.639/2003 que criou a necessidade de mudanças nas diretrizes e bases da
educação nacional para se instituir nas escolas o ensino da História e da
Cultura Africana e Afro-brasileira.
Leiamos o texto da nova lei:
LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008.
Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a
seguinte Lei:
Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo
incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio
na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas
social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura
afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileiras.” (NR)
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 10 de março de 2008; 187o da
Independência e 120o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Fernando Haddad (Texto da Lei
n° 11.6345/2008, Disponível em http://www.planalto.gov.br, acesso em 13 de junho de 2021).
O objetivo da nova lei não era substituir a de 09 de
janeiro de 2003 que instituiu o ensino de História e Cultura Africana e
Afro-brasileira, seu principal objetivo como fica bem claro no corpo do texto é
o de estender aos indígenas o direito de ter sua história e cultura igualmente
abordadas no currículo escolar das instituições de ensino básico brasileiras.
No entanto ao fim do primeiro lustro da Lei n°
10.639/2003 não havia nenhum sinal de que a Secretaria de Educação do Estado do
Ceará estivesse interessada em promover a sua efetivação, pois até o ano de
2007 as da ERER (Educação para as relações étnico-raciais) ainda eram
desconhecidas como políticas antirracistas pelos docentes cearenses.
A Lei n° 10.639/2003 obtivera das autoridades
cearenses em educação pouquíssima atenção institucional, os órgãos estaduais
responsáveis pela estrutura e funcionamento da educação no estado pouco sabiam
sobre políticas educacionais antirracistas. O papel da SEDUC até aquele momento
se limitara a enviar orientações às CREDE’s/SEFOR, que por sua vez deveriam
enviar orientações para as coordenadorias escolares a fim de incluir a ERER nos
estudos das semanas pedagógicas de 2007 ou 2008.
Tais orientações eram vagas e chegaram às escolas
apenas como sugestões de trabalho e não como projetos de estudos obrigatórios
para serem desenvolvidos ao longo do ano letivo. Muitas escolas ignoraram as
orientações, ignoraram principalmente porque desconheciam a Lei 10.639/2003 e a
nova Lei 11.645/2008 era igualmente ignorada pelos educadores, gestores e
coordenadores das escolas.
Outro fator que contribuiu para que entre os anos de
2008 a 2012 a ERER ficasse praticamente desconhecida das escolas cearenses foi
à falta de preparo dos professores e coordenadores pedagógicos para desenvolver
currículos e aulas voltadas para o ensino de História e Cultura Africana,
Afro-brasileira e Indígena. Como praticamente não houve formações realizadas
pelas secretarias municipais de educação e pela secretaria estadual de educação
para compor bancos de formadores escolares sobre a ERER, o negro e o indígena
continuaram a margem do cotidiano das salas de aula cearenses.
Apesar
de o Movimento Negro atuar intensamente desde o ano de 2005 na busca de
efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense, as ações
desenvolvidas no período de 2005 a 2010 seriam pontuais. Tais ações não
chegaram a atingir o corpo docente da rede de enino do estado e dos municípios
o que ocasionou um enorme vácuo nas práticas de ERER na cultura escolar
cearense por quase uma década após a sanção da lei em 09 de janeiro de 2003.
Ao
final da primeira década do século XXI o negro continuava invisível nos
currículos da escola cearense e nos materiais didáticos sobre a história do
Ceará os relatos tradicionais onde a história dos afrocearenses aparece apenas
limitada ao projeto de abolição no Ceará predominam.
O
mesmo discurso que permeavam as produções didáticas de Batista Aragão nas
décadas de 1980 e 1990 quando ao abordar a histórias dos pretos cearenses
restringe-se sua participação na historiografia do Ceará ao breve capítulo
sobre a abolição em 1884 e aos relatos sobre a suposta escassa mão-de-obra
escravizada utilizada pelos proprietários de terra cearenses.
Um
exemplo de material tradicional sobre a história do Ceará e que mantém o negro
e o indígena invisibilizados na história do nosso estado é o manual didático Ceará, história para a construção da
cidadania de Marlene Corrêa, editora FTD, primeira edição publicada em
2004, livro aprovado pelo PNLD/2004 e posteriormente muito utilizado no ensino
de História Regional no ensino fundamental das escolas cearenses.
O
livro foi amplamente aceito e suas sucessivas edições e reedições mostram que
ele se tornou uma referência didática para os professores de História no Ceará
durante uma década. O livro possui uma estrutura tradicional dividida da
seguinte forma: Introdução; Vivendo e aprendendo; 1. O estudo da História; 2.
O Ceará colonial; 3. No tempo dos imperadores; 4. O Ceará republicano; 5. Nossa
cultura, nossas tradições. O
indígena aparece no capítulo 2 e desaparece nos seguintes, o negro aparece nas
páginas finais do capítulo 3 e não é mais citado no livro.
A representação do negro que a autora faz é
estereotipada na figura do escravo que se submete a escravidão e aguarda
pacientemente a redenção através das mãos dos abolicionistas brancos, o único
negro citado no livro como personalidade história é Francisco José do
Nascimento, o Dragão do Mar que é nomeado esporadicamente quando da greve dos
jangadeiros de 1881.
Narrativa estereotipada, tais narrativas ao serem
usadas pelo professor através manual didático no espaço das salas de aula em
nada contribui para promover uma educação antirracista e nem tampouco incluir o
negro e o indígena no cotidiano do ensino de história das salas de aula das
escolas públicas do Ceará.
Assim mesmo após as DCN’s/2004 a educação cearense
continuava a margem de um projeto efetivo de ERER e mesmo com a atuação do
Movimento Negro a resistência daqueles que procuravam sustentar a crença de que
no Ceará não havia negro e que não havendo negro era desnecessário uma lei cujo
objetivo era promover uma educação antirracista continuava sendo eficaz e
travando a efetivação da Lei n° 10.639/2003 no estado.
Sem nenhum preparo para abordar questões
étnico-raciais os professores continuavam dando aulas a partir da perspectiva
de uma história exclusiva da branquitude. Mesmo os conflitos escolares, isto é,
os episódios de flagrantes práticas racistas no cotidiano escolar eram tratados
apenas como indisciplina escolar.
Pois segundo Munanga:
(...) alguns professores por falta de preparo ou por preconceitos
neles introjetados não sabem lançar mão das situações flagrantes de
discriminação no espaço escolar e na sala de aula como um momento pedagógico privilegiado
para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a
riqueza que ela traz a nossa cultura e na nossa identidade nacional. (MUNANGA,
2001, p. 7-8).
Assim,
de acordo com Munanga, é praticamente impossível promover uma educação
antirracista se não há uma formação de professores que atuem na sala de aula
como promotores de um ensino que construa uma mentalidade antirracista nos
estudantes. Professores sem formação apenas repetirão os discursos
segregacionistas da mídia e dos livros didáticos escritos pela branquitude.
O
descaso da SEDUC-CE com a efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino
cearense, a precariedade dos materiais didáticos disponíveis e o despreparo dos
professores e gestores das escolas para atuar de forma direcionada sobre a
questão ERER Se tornarão ao logo das décadas de 2000 e 2010 empecilhos
significativos que impedirão a introdução de uma prática de educação
antirracista nas escolas cearense.
Em
2008 a historiadora Simone Souza reuniu vários outros historiadores cearenses
para um projeto de fôlego editado pela Fundação Demócrito Rocha. Esse grupo de
novos historiadores cearenses produziu o livro Uma Nova História do Ceará,
nesse importante trabalho há um capítulo do historiador Eurípedes Funes
intitulado Negros no Ceará, (Página
103 a 134). Ocorre nesse livro uma importante mudança de perspectiva com
relação à presença do negro na história do Ceará, pois já não vemos mais a
narrativa do negro passivo, da escravidão sem traumas, do branco escravocrata
amigo do negro, do negro escravizado tratado como pessoa da família, narrativa
que prevalecera na historiografia cearense do século XX.
Infelizmente
o livro não chegou às escolas cearenses, não chegou aos professores da rede
pública cearense e sua leitura ficou praticamente restrita aos professores universitários
e aos interessados na história do Ceará. Mesmo assim as mudanças de perspectiva
com relação à história do negro em nosso estado se intensificavam e vários
pesquisadores instigados pela possiblidade de propor uma nova abordagem da
questão da escravidão, da abolição e pós-abolição no Ceará, bem como da
participação decisiva e o protagonismo evidente dos afro-cearenses na cultura e
na história do estado começaram todo um processo de reescrita dessa história.
Ao
longo da década de 2010 presenciaremos o aumento das pesquisas sobre a história
do negro no Ceará. Em 2010 haveria um ganho importante para a população
Cearense e em especial a população negra, seria instalada em Redenção,
município da Zona Norte do estado à sede da UNILAB (Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira).
A
escolha de Redenção foi proposital, pois segundo uma tradição historiográfica
do Ceará teria sido a primeira cidade do estado a abolir o trabalho escravo em
01 de janeiro de 1883. A partir desse momento começará a ocorrer um importante
intercâmbio cultural e epistêmico entre o Movimento Negro Cearense, Movimento
Negro Brasileiro e principalmente com os países africanos, pois vários
estudantes das nações lusófonas da África vêm estudar no Ceará.
O número
de pesquisadores sobre o negro, sua história e cultura no Ceará cresce em
decorrência não somente dos estudos realizados na UNILAB, pois vários
pesquisadores da Universidade Regional do Cariri (URCA) passam a dedicar sua
atenção e pesquisas ao estudo da escravidão no sul do estado, dedicam também
suas pesquisas ao estudo do protagonismo negro na cultura caririense.
A
atenção das universidades volta-se também para a efetivação da Lei n°
10.639/2003 nas escolas cearenses. Durante a década de 2010 a SEDUC-CE e as
secretarias municipais de educação serão cobradas para realizarem seminários,
fóruns e formações pedagógicas voltadas para as ERER.
Incluir
a História e a Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nos currículos das
escolas do Ceará exige necessariamente uma reescrita da história do Ceará, pois
a crença geral é a de que no estado quase ou não existem negros e nem tampouco
índios. Logo a pergunta que os professores se fazem é esta – por que ensinar
sobre um conteúdo que não interessa aos cearenses?
O
absurdo dessa crença está no fato de ela haver se incrustado de tal modo na
mentalidade cearense que vigora a falta percepção de uma população cearense
amplamente miscigenada onde brancos, negros, pardos, índios, vivem
harmonicamente, numa sociedade com pleno equilíbrio étnico, cujo alicerce é a
aceitação mútua e a plena participação de todos os cearenses na estrutura
social, econômica e política do estado.
Não
há racismo no Ceará porque não há negro no Ceará, essa é a crença geral. Foi
esse tipo de pensamento que sempre buscou travar as lutas negras em nosso
estado, foi esse tipo de ideologia racista que procurou insistentemente impedir
a efetivação da Lei n° 10.639/2003 nas escolas cearenses.
Procurando
manter uma celebração do projeto de abolição da escravidão forjado pela
branquitude a intelectualidade cearense invisibilizou o negro da história do
estado, criou uma versão onde a população afro-cearense nunca está presente,
uma história que ensina sobre negros passivos diante da escravidão, sobre
intelectuais brancos que se revoltam contra a escravidão que envergonhava o
Brasil perante as nações civilizadas, uma história que inventa heróis brancos
para serem cultuado nas salas de aula.
A
ausência do negro, sua história e cultura no cotidiano das salas de aula
cearenses atravessou a primeira década do século XXI e foi pela década de 2010
adentro. Somente em meados dessa segunda década do século e devido às pressões
do Movimento Negro, dos professores egressos das licenciaturas que a partir de
2008 passaram a ter na grade curricular de seus cursos a disciplina de História
e Cultura Africana e Afro-brasileira e Didática do Ensino da História e Cultura
Africana e Afro-Brasileira, tudo isto foi importante para impulsionar o caminho
para a efetivação da Lei n° 10.639/2003 na rede de ensino cearense.
É
neste momento que se desenvolve um mal-entendido sobre educação para as
relações-étnico raciais nas escolas cearenses. Tal mal-entendido está no fato
de que gestores e professores passam a comemorar o dia 20 de novembro, dia da
consciência negra como sendo uma prática pedagógica inclusiva na escola. O dia
20 de novembro passa a ser estereotipado como o dia do negro e de sua cultura
exótica.
Essa
prática pedagógica que consiste em escolher o dia 20 de novembro para realizar
algumas atividades escolares sobre a questão da escravidão no Brasil, geralmente
atividades sobre a abolição da escravidão, composta de eventos ou aulas sobre o
Quilombo dos Palmares, a capoeira, as danças folclóricas, as comidas baianas. Mas
depois de passado o dia 20 de novembro a história do negro volta a cair no
esquecimento para ser lembrada de forma apenas pontual e sempre voltada para a
questão da escravidão ao longo do ano letivo;
Adotar
ações pontuais ligadas exclusivamente ao dia 20 de novembro como sendo uma
forma de cumprir a Lei 10.639/2003 é um engano e um autoengano a qual os
professores e as escolas em geral se impõem. A lei como vimos instrui os
docentes e autoridades em educação sobre a necessidade de que a História e a Cultura
Africana e Afro-brasileira devem fazer parte do currículo escolar e
principalmente estarem devidamente distribuídas ao longo do ano letivo no
ensino das disciplinas escolares. Nenhuma ação pontual satisfaz a lei e não a
torna eficaz no seu maior objetivo que é o de criar uma prática de educação
antirracista nas escolas brasileiras.
A
programação dessas ações pontuais desenvolvidas nas escolas não somente do
Ceará, mas da maioria das escolas brasileiras, restritas ao dia 20 de novembro
ou a semana em que está inserida a data, é uma programação de carácter
meramente expositivo e quase sempre apenas repete os estereótipos do senso
comum sobre o negro na sociedade brasileira escravocrata do século XIX ou os
estereótipos da sexualização dos corpos negros, principalmente do corpo da
mulher negra.
Na
rede social Youtube é possível encontrar registros dessas comemorações alusivas
ao dia 20 de novembro nas escolas. Analisamos cinco desses vídeos para refletir
sobre os procedimentos pedagógicos adotados nas escolas com relação à questão
das ERER e como professores e gestores escolares interpretaram a necessidade de
trabalhar a História e a Cultura Africana e Afro-brasileira restringindo a
efetivação da Lei n° 10.639/2003 e as DCN’s/2004 aos eventos esporádicos em uma
semana de novembro.
No
vídeo intitulado Thiago participando da
coreografia da C.E. Prefeito Luiz Guimarães - Consciência Negra (escravos), publicado
no endereço https://www.youtube.com/watch?v=NLHivoDNn1E, fotos capturadas
abaixo nas figuras 4 e 5 adolescentes fantasiados de escravos encenam uma
coreografia da escravidão. Vestidos com calças brancas de algodão, meninos
negros fazem mímicas de negros acorrentados que de repente quebram os grilhões
da escravidão enquanto uma banda marcial toca músicas para que eles desfilem seminus
no centro da cidade logo atrás de meninos brancos vestidos de colonizadores.
Para a mentalidade da branquitude o negro não
tem história além da história da escravidão narrada nos livros didáticos aos
próprios estudantes negros, ela é responsável pela mentalidade que ver nos
pretos apenas coadjuvantes de uma História predominantemente branca. Conforme
podemos observar na Figura 3 ensinamos nas escolas que o preto só aparece como
trabalhador escravizado na história nacional. Conforme (MUNANGA, 2008), a elite
que sustenta esse tipo de ensino de história impõe a ideologia de que o Brasil
não é branco, nem tampouco negro, o país é miscigenado e o negro e o índio
contribuíram para a formação dessa nação. É ainda segundo (MUNANGA, 2008) o
discurso racista que atribuí ao banco o protagonismo na nossa História e ainda
uma vez mais afirma que negros e indígenas tiveram papel político relevante
nela. A ideia de um Brasil miscigenado mais uma vez tranquiliza a consciência
racista da nossa elite e da nossa intelectualidade branca, pois garante algum
lugar do escravo passivo para o negro na História e permite a crença de que o
problema do país não é racial, mas unicamente social. Observemos as Figuras 4 e
5 que mostra a exposição pública de estudantes fantasiados de escravos e
indaguemos: se não há racismo no Brasil, então por que as narrativas da
branquitude sobre a história do negro no país se restringe a escravidão?
Segundo Prescyla de Fátima Vieira Venâncio:
Quando falamos em representatividade negra percebermos o quanto
atualmente se vem falando sobre o tema, más muitas pessoas desconhecem o real
significado e o efeito que trás na construção da identidade negra. Infelizmente
a história da escravatura é abordada de forma a minimizar o impacto que a
escravidão causou no negro “escravo”, no negro “escravo liberto” e o impacto
que causa no negro “descendente de escravos”. (Representatividade como
construção de identidade, Disponível em: https://www.geledes.org.br/representatividade-como-construcao-da-identidade/,
acesso em 22 de jul. de 2021).
Atuando como mostra a Figura 4, a escola fortalece
a imagem da escravidão ligada ao negro em vez de propor um amplo debate sobre
essa parte nefanda da história do Brasil. As Figuras 4 e 5 mostram que não há
nenhuma disposição de reflexão a intensão do desfile foi apenas mostrar o negro
como escravo. A comunidade escolar não tendo compreendido o objetivo proposto
pela Lei n° 10.639/2003, apenas reproduziu o discurso corrente de que a
história do negro no Brasil se restringe basicamente aos anos de escravidão e
as suas contribuições (na linguagem racista) com algumas danças e costumes para
a cultura brasileira.
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Figura 4. Desfile cívico-escolar C.E. Prefeito Luiz
Guimarães. (FONTE | Fonte:
https://www.youtube.com/watch?v=NLHivoDNn1E, acesso em 13 de julho de 2021).
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A
imagem reproduz com evidência notória todos os estereótipos sobre o negro no
Brasil. Através desse vídeo vemos que a associação entre negros e escravidão
ainda prevalece, isto é, para os professores das escolas brasileiras, falar do
negro é naturalmente falar sobre os escravos e o sofrimento da escravidão. Não
há um posicionamento crítico ou reflexivo. A opção da escola em questão foi
expor em via pública crianças e adolescentes fantasiados de escravos para
abordar a história do negro.
Ao
fazer essa exposição pública de seus estudantes vestidos como negros
escravizados estereotipados o corpo docente da escola sustentou e manteve a
narrativa tradicional, expôs uma história fictícia sobre a população negra
brasileira e em vez de aproveitar o evento para problematizar o racismo
estrutural e a negação da razão negra, trabalhou no sentido oposto, favoreceu
ainda mais o discurso racista e fortaleceu o racismo estrutural do qual a
própria escola comunga como instituição inserida dentro de uma sociedade
racista.
A
exposição pública de crianças e adolescentes fantasiados de escravos em nada
contribui para a reflexão sobre a escravidão e as lutas contra ela no Brasil,
observemos na Figura 5 como o desfile cívico apenas reproduz os estereótipos
sobre o negro brasileiro.
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Figura 5. Estudantes do C.E. Prefeito Luiz Guimarães
participando do Desfile Cívico de 13/09/2008. (FONTE | Foto do Youtube, capturada em 19 de abril de
2021). |
Este
desfile ocorreu no ano de 2008, data em que o vídeo foi publicado, portanto em
plena a vigência da Lei n° 10.639/2003 e quatro anos após a construção do
documento das DCN’s/2004. O desfile é uma remontagem dos estereótipos das
telenovelas sobre a população negra e sua função é evidentemente fortalecer a
ideologia racista brasileira que sempre representa o negro na história nacional
como escravo, nunca como protagonista de uma história de lutas políticas,
culturais e de transformação social e econômica do país. O menino que
protagoniza o vídeo é um adolescente negro que juntamente com outros foram
expostos na rua diante da população da cidade e do palanque das autoridades
como representações de uma história branca numa sociedade racista.
Os
vídeos Escola em Pacajus comemora o dia da Consciência negra publicado em https://www.youtube.com/watch?v=9aF3XftKbCc,
como também o vídeo Dia da Consciência Negra na Escola no Município de Potengi
disponível no endereço https://www.youtube.com/watch?v=_2XLbLmZoyk, são ambos
de 2015 e repetem os mesmos estereótipos, pois são ações pontuais que elegeram
o dia 20 de novembro para festejar alguns traços da cultura negra e expor
publicamente as narrativas tradicionais sobre a história do negro no Brasil e
no Ceará.
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Figura 6. Comemoração do Dia da Consciência negra em Escola Municipal de Pacajus. (FONTE | Foto capturada pelo autor https://www.youtube.com/watch?v=9aF3XftKbCc,
acesso em 13 de julho de 2021).
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No
caso das escolas de Pacajus, Figura 6, município da região metropolitana de
Fortaleza, a secretaria de educação da cidade optou por uma programação voltada
principalmente para exposição de elementos da cultura afro-brasileira e
africana. Na fala dos professores engajados no projeto há alusão à produção de
máscaras africanas, oficina de pintura corporal, danças como zumba e funk, além
disso, um dos professores entrevistados pela reportagem informa que cada turma
teria ficado com um aspecto da história dos negros ou da cultura africana.
Quando
prestamos atenção nas falas dos docentes entrevistados no vídeo compreendemos
que eles apenas criaram uma exposição do que os alunos produziram durante a
preparação para o Dia da Consciência Negra, isto é, não houve um trabalho
durante o ano letivo de 2015 para criar uma consciência antirracista na escola,
trata-se apenas de mais uma ação pontual que foi proposta pela secretaria
municipal de educação para o dia 20 de novembro.
E
como observamos na figura 6, houve um equívoco na oficina de pintura corporal,
pois as pinturas não reproduzem as pinturas corporais africanas, os
adolescentes foram pintados com máscaras do cinema, no caso do estudante
entrevistado que aparece no vídeo, ele diz que escolheu uma máscara de zumbi,
provavelmente confundiu o líder quilombola Zambi dos Palmares com um personagem
dos filmes de terror e ficção.
No
município de Potengi localizado no sul do Estado do Ceará a Escola Antônio de
Figueiredo Taveira escolheu uma programação também voltada mais para a arte do
que para a história. No vídeo vemos os pré-adolescentes vestidos casualmente
coreografando uma dança do ritmo baiano conhecido como axé. As meninas
vestem-se com shorts curtos e elas dançam sensualmente para os meninos que as
acompanham também com bermudas, a coreografia sugere uma sensualidade dos
meninos e meninas negras que participam da dança.
Observamos
que o espaço onde ocorre a coreografia está tematizado com cartazes sobre a
história da escravidão e há toalhas com estampas africanas sobre as mesas. Mas
apesar do esforço dos professores podemos compreender pela coreografia que mais
uma vez houve um equívoco no entendimento sobre a efetivação da Lei 10.639/2003
e como aplicar as DCN’s/2004 no cotidiano da sala de aula.
Pelos
materiais publicados nas redes sociais entre 2008 a 2019 que nós analisamos
pudemos observar o despreparo dos professores e das escolas para trabalhar com
as ERER. A falta de formações de professores promovida pela Secretaria de
Educação do Estado do Ceará e pelas secretarias municipais de educação inviabiliza
a introdução do negro, da sua história e de sua cultura nos currículos das
escolas cearenses. É importante destacar que Potengi é um município cearense
que possui uma comunidade quilombola e um patrimônio histórico e cultural
afro-brasileiro reconhecido institucionalmente pela SECULT (Secretaria de
Cultura do Estado do Ceará), a saber, o Reisado e os Ferreiros de Potengi. As
Figuras 7 e 8 mostradas abaixo mostram as escolhas feitas pela escola para
comemorar o dia da Consciência Negra. São estudantes pré-adolescentes
reproduzindo uma dança do carnaval baiano, mais especificamente o que eles
fazem é reproduzir os passos criados pelo cantor Léo Santana e seus bailarinos
de axé music.
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Figura 7. Adolescentes de Escola de Potengi- CE
coreografam dança baiana em 2015. (FONTE | Foto capturada pelo autor em 19 de abril de
2021). |
Observemos
que na Figura 7 adolescentes fantasiados de escravos e índios e aparecem ao
lado dos colegas que coreografam a suposta dança afro. Vemos que o equívoco da
escola ao trabalhar os pontos da Lei 10.639/2003 foram muitos. Tal como já
ocorrera nas encenações mostardas nas figuras 5 e 6 aqui as contradições e
interpretações erradas sobre a cultura afro-brasileira ainda predomina. Isto
acontece por causa da pouca preparação dada aos professores para trabalhar com
educação antirracista nas redes estaduais, municipais e privadas.
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Figura 8. Adolescentes de Escola de Potengi- CE
coreografam dança afro em 2015. (FONTE | Foto capturada pelo autor em 19 de abril de
2021). |
Até
o ano de 2015 as formações de professores em ERER no Ceará foram escassas.
Mesmo diante da necessidade de promover um amplo debate sobre a reorganização
curricular e a criação de um projeto de educação antirracista na rede de ensino
do Estado do Ceará e mesmo perante a obrigação de fomentar a adoção de projetos
municipais de educação étnico-racial os envolvidos na criação de ações que
dessem aos professores da rede estadual e municipal condições de abordar a
História e a Cultura Africana e Afro-brasileira a partir de uma perspectiva
crítica e reflexiva permaneceram à margem de um compromisso profundamente
engajado na efetivação da Lei n° 10.639/2003 no Ceará.
Sem
preparação quase nenhuma para cumprir as diretrizes para uma educação
antirracista estabelecida em 2004, os professores cearenses não têm como
incluir uma prática efetiva de ensino antirracista nas suas aulas e as escolas
não compreendem como criar um currículo antirracista. Diante dessas falhas das
autoridades de educação do Estado do Ceará as ações pontuais se multiplicaram
dentro das escolas e a ausência de uma proposta clara de educação antirracista
no Ceará atravessou a década de 2010 mantendo assim o negro fora do currículo
das escolas da rede de ensino de nosso estado.
Em
2015 finalmente a SEDUC-CE estruturou a realização de uma formação intensiva de
professores da rede estadual e municipal sobre a ERER. A formação foi realizada
na cidade de Fortaleza na modalidade presencial e semipresencial e contou com a
participação do CEFOP (Célula de Formação Programas e Projetos). O processo de formação de
professores ocorreu entre agosto de 2015 a janeiro de 2016 e o objetivo era
criar uma equipe de replicadores que levariam para os munícipios do interior do
estado e para as CREDE, as orientações necessárias para viabilizar o ensino de
Historia e Cultura Africana e Afro-brasileira na rede pública de ensino do
estado.
Para
o curso foram disponibilizadas 150 vagas nas quais poderiam se inscrever os
professores das escolas estaduais independente da disciplina que lecionassem.
Do total de vagas ofertadas somente 125 foram preenchidas. Concluídas as
inscrições os participantes foram redistribuídos em cinco turmas cada uma delas
sob a responsabilidade de um tutor. Os dados do curso que estão disponíveis no
site http://ead.seduc.ce.gov.br/course/index.php?categoryid=74, informam que os
tutores responsáveis pelas turmas foram Jenilson Sousa Nogueira (CEFOP),
Rosilene Aires (E. E.F. M Senador Osires Pontes), Viviana Cavalcante Pinheiro
de Lima (CEFOP), Anna Maria de Lira Pontes (E. E. F. M Jáder Moreira de
Carvalho), Antônio Alex Pereira de Sousa (E.E.F.M Polivalente Modelo de Fortaleza),
portanto professores pertencentes ao CEFOP e também à rede estadual de ensino.
O
curso de História e Cultura Afro e Indígena Cearense teve duração de 120 horas
e foi dividido em dois módulos. A primeira etapa na modalidade presencial
ocorreu em Fortaleza no dia 18 de setembro de 2015 e contou com a colaboração
de professores convidados das universidades cearenses que realizaram seminários
e oficinas visando preparar os participantes do curso para promoverem nas suas
escolas e municípios a efetivação da Lei n° 10.639/2003 e a Lei n° 11.645/2008.
A
etapa seguinte correu na modalidade a distância através da Plataforma da
Secretaria de Educação do Estado do Ceará entre o período de 27 de setembro de
2015 a 31 de janeiro de 2016. Os conteúdos trabalhados no curso foram: 1) Percebendo
a Identidade; 2) Reconhecendo o contexto; 3) Pensando o cotidiano; 4)
Refletindo o currículo escolar e 5) Vivências e Práticas. Depois de mais de uma
década de vigência da Lei n° 10.639/2003 essa foi à primeira formação contínua
e não esporádica realizada pela SEDUC-CE com o objetivo de preparar os
professores da rede de ensino de nosso estado para trabalhar as ERER no
cotidiano da sala de aula e viabilizar as possibilidades de um currículo
escolar antirracista nas escolas cearenses.
A
realização de atividades escolares tematizando a educação para as relações
étnico-raciais apenas de forma pontual, restritas apenas ao dia 20 de novembro,
o silêncio das escolas do estado sobre a história e acultura dos afrocearenses
e a falta de formações para os professores preparando-os para ensinar a
História e a Cultura Africana e Afro-brasileira no cotidiano de suas aulas
revela que as escolas cearenses refletem os principais aspectos da sociedade do
Estado do Ceará.
Assim
percebemos que a escola é o espelho da sociedade brasileira estruturalmente
racista, a escola cearense é igualmente um espelho da sociedade cearense
igualmente racista. Como historicamente o negro foi invisibilizado e extirpado
da história e da historiografia do Ceará, mesmo com o advento da Lei n°
10.639/2003 sua presença no Ceará continuou sendo negada durante mais de uma
década após a promulgação da lei em 09 de janeiro de 2003. Foi preciso uma
atuação política e pedagógica do Movimento Negro Cearense para que o negro
passasse a ser visível na História do Ceará e dentro das escolas do estado.
O
censo de 2010 mostrou que o Ceará possui uma população composta por
aproximadamente 63% de negros (Pardos 61,84% e pretos 1,24%), isto significa
que apesar do discurso da branquitude tentar impor a falsa narrativa de que no
Estado do Ceará não havia negros, estes resistiram e compõem hoje a maior
parcela da população cearense.
Mesmo
com uma população majoritariamente negra e com as escolas públicas frequentadas
principalmente por crianças e adolescentes negros os currículos escolares no
Ceará continuaram eurocentrados e promovendo a história e a cultura da
branquitude como sendo o padrão epistêmico e estético natural.
REFERÊNCIAS
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus
identidade negra, Belo Horizonte, Autêntica 2009.
VENÂNCIO,
Prescila de Fátima Vieira. Representatividade como Construção da identidade,
Disponível em https://www.geledes.org.br/representatividade-como-construcao-da-identidade/,
Acesso em 23 de jul. de 2021.
Esta célula integra
a estrutura organizacional da Superintendência das Escolas Estaduais de Fortaleza
– SEFOR. É constituída por uma equipe técnico-pedagógica que oferta assessoria
aos profissionais da educação, ficando responsável por realizar encontros
formativos, orientações e acompanhamento de ações pedagógicas nas escolas.