Estigmatizado
pela violência, colorido pela cultura popular e vívido no cotidiano de seus
moradores, o bairro João Cabral releva os contrastes e os conflitos de uma
cidade interiorana em ascensão.
Entre
as linhas imaginárias que delimitam geograficamente os bairros Romeirão,
Triângulo e Lagoa Seca está o incompreendido João Cabral, um território
marginalizado e temido, mas que possui alma tipicamente interiorana, nordestina
e brasileira. Suas ruas são desniveladas, as casas têm porta aberta, as
calçadas são um infinito sobe e desce — ora degraus, ora improvisadas rampas —
e seus moradores ainda dão aquele jeitinho de sentar ali para jogar conversa
fora.
João Cabral é, para
além do Horto e dos romeiros de Padre Cícero, motivo de jornalistas,
pesquisadores e curiosos voarem de São Paulo até o sertão caririense e aqui
sacarem suas câmeras e gravadores. Eles ficam maravilhados de espanto com a
riqueza cultural concentrada nesta terra esquecida. Apenas nos arredores da
Praça do CC, única do bairro, facilmente se contam 10 grupos de tradição que
dançam lapinha, coco, maneiro pau, reisado de congo e de couro, bacamarte e
demais folguedos. Quadrilhas de São João também existem aos montes, disputando
hora de ensaio na quadra comunitária.
Dizer
que o Cariri é celeiro de cultura popular chega a ser, de tão repetido, uma
afirmação banal. Mas para Antônio Ferreira Evangelista, 56 anos, líder de
reisado popular e brincante há mais de 40, a raiz desse pensamento está fincada
em uma localidade bastante específica: o bairro João Cabral. “Se o cabra
procurar um bacamarte aqui, ele acha. Se o cabra procurar uma lapinha, acha
também”, dispara orgulhoso, apontando para a rua. É no periférico João Cabral
que centenárias tradições culturais de Juazeiro do Norte se organizam, se
retroalimentam e descansam.
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João Cabral tem a maior concentração e grupos de tradição e festejos folclóricos do cariri. Foto: Samuel Macedo. |
Bairro
de pés descalços, fios emaranhados flutuando sobre as casas com paredes
compartilhadas, intimidades reveladas nas roupas à vista, estendidas no varal
improvisado, no João Cabral é possível encontrar grandes mestres da cultura
popular desfrutando um copo de café passado na hora por suas comadres, sentados
nos meio-fios enquanto contam engraçadas histórias de apresentações que fizeram
fora dali. Na empolgação do momento, deixam os copos sujos nas janelas alheias,
que são lembrados apenas quando a dona da casa dá fé de uma louça faltando.
Morando
aqui há 30 anos, o mestre Antônio vê com tranquilidade as mudanças pelas quais
o populoso bairro passa. “Aqui era uma grota medonha de tão profunda, onde tudo
que se via era Juremas do outro lado. Não tinha nada. Quer dizer, tinha uma
ponte de madeira que os corajosos encaravam de passar. Hoje, a grota é
praticamente uma avenida, e as Juremas deixaram de existir”. Conta ainda que,
em meados de 1987, quando se mudou para essas bandas o bairro também levava o
apelido de “baixa das almas”, pelo ruído que o vento fazia nas árvores,
assustando os pastores de cabra que ali trabalhavam.
Mas
medo de alma nenhuma assusta mais o mestre que o custo de morar. Antes do João
Cabral, morou nos bairros Limoeiro e Franciscanos, mais próximos do centro da
cidade, e foi migrando de um para o outro na medida em que o aluguel, fator
determinante, aumentou com o passar dos anos e com a relevância comercial dos
terrenos. “E do jeito que aqui anda aumentando também, daqui a pouco ele vai
morar na ‘baixa da raposa’, ali perto do Jardim Gonzaga”, brinca o irmão
Raimundo, também mestre. Antônio reza para que não.
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Foto: Samuel Macedo. |
O
bairro é, dizem os jovens moradores, dividido em dois. A parte rica das paredes
de cerâmica e dos aluguéis a R$ 500 mensais e a parte pobre, “a favelinha”, das
ruas que mais parecem paletas de cores, na simplicidade das tão diversas
fachadas, que não escondem as precárias condições de vida. Ainda que a dita
parte rica continue bastante pobre em infraestrutura básica se comparada aos
bairros vizinhos, a disputa por um status de superioridade, seja pela posse que
for, existe e é forte, como relatado no trabalho acadêmico coordenado pelo
pesquisador Antoniel dos Santos Gomes Filho.
João
Cabral é terra de conflitos, contrastes, alto índice de criminalidade, tráfico
e prostituição infantil — onde basta cruzar a rua para sair de um bairro
carente de políticas de saneamento, saúde, habitação, segurança e educação —
para adentrar na Lagoa Seca, bairro de condomínios, mansões e restaurantes
finos, onde iluminação, rede de água e esgoto e segurança pública não são
problema. E é aqui que os irmãos Antônio e Raimundo e os mestres Zé Nilton e
Francisco, o Nena, trabalham incansavelmente para dar continuidade às
tradições, atraindo crianças e adolescentes para a cultura, afastando-as das
tentações do crime.
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"Aqui a gente faz e respira cultura", diz o brincante Zé Nilton , bacamarteiro. Foto: Samuel Macedo. |
“O
João Cabral é uma peleja”, afirma o mestre Raimundo. “Enquanto a gente peleja
para tirar as crianças da rua, os mais fortes que a gente, que é o tráfico,
continua colocando elas em risco”, lamenta. Para ele, a batalha cotidiana
travada pelo trabalho social realizado pelos grupos de tradição no João Cabral
é ação educativa, cultural e de lazer que precisa de mais atenção por parte dos
poderes públicos. Entre reisado, quadrilha junina e bacamarte, são mais de 300
crianças e adolescentes diretamente envolvidos — e a meninada quer brincar!
João
Cabral é bairro novo, povoado de 1980 para cá por aqueles que não temiam a tal
medonha grota ou não tinham outra saída senão aqui se assentarem. Hoje é mar de
casas levantadas pelo esforço exaustivo daqueles que tiveram a pele queimada
pelo sol e banhada de suor e que hoje anseiam, sob o teto que construíram,
descansar assistindo ao jogo de futebol do domingo. Mestre Francisco Gomes
Novais, o Nena, grande nome da cultura popular, é exemplo disso. Morador do
João Cabral há mais de 20 anos, encontrou, aqui, lugar para desenvolver sua arte,
o bacamarte. “Nunca mexerem comigo e nunca mexeram com a cultura. Existe esse
respeito, porque eles [as facções criminosas] sabem que estamos fazendo um
trabalho bom, que valoriza o bairro”, diz.
Também
não se mexe com as religiões — pelo menos não hoje em dia, depois de tanta
resistência dos praticantes. É no João Cabral onde mais se abrigam casas de
umbanda e candomblé em Juazeiro do Norte. Justamente aqui. Na rua Pio Norões,
Daniel Guedes, 19, corre de um lado para o outro em busca dos preparativos para
uma festividade religiosa. “Apesar de alguns olhares tortos de quem não conhece
e também não faz questão de conhecer a religião, sempre fui bem tratado e me
sinto bem, me sinto confortável no João Cabral”, revela. Filho de Iemanjá,
praticante do candomblé no terreiro de Jagumar, Daniel cultiva com esmero dois
altares em casa, um para a rainha dos mares e outro para Santo Antônio,
protetor dos pobres.
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Juazeiro, em cada casa, um altar. E na do candomblecista Daniel, ritos e oferendas para Iemanjá. Foto: Samuel Macedo. |
Trabalhador,
o João Cabral é lugar onde tem de tudo um pouco, evitando, assim, a fadiga das
senhoras de chinelos gastos e varizes desenhadas nas pernas de irem longe em
busca uma mercadoria qualquer. Oficinas, mercadinhos, verdurões, cabeleireiros,
lojas de roupa improvisadas em garagens sem carro a cada esquina. Trabalha-se
onde mora e dorme-se onde trabalha. Preguiçoso, o João Cabral também abraça
comadres de certa idade que passam o dia nas calçadas forçando a vista em
caderninhos de novena ou até mesmo aprendendo com seus netos a enviar uma
mensagem de áudio no Whatsapp.
O
bairro também é casa de Maria Socorro Rodrigues da Silva, 58 anos, mãe de 11
filhos — dos quais apenas quatro estão vivos, adultos e sadios — e avó de 12
crianças, a quem ela declara com afeto ser “tudo na sua vida”. Personagem
recorrente nas histórias do bairro, Maria Socorro é conhecida por suas
aventuras alcoólicas noites adentro. Nem se orgulha nem sente vergonha de suas
noitadas quando mais jovem; prefere contá-las em atmosfera blasé, de pernas
cruzadas sobre a cama, que também serve de sofá em sua humilde e pequena casa.
Assentada
na rua Senhor do Bonfim, antes morou na rua Farias Brito, e antes mesmo disso
morava em Acopiara, de onde veio “fugida mais um bicho velho, que depois mandei
embora”. Maria Socorro viu as primeiras casas serem levantadas e viu, também,
os primeiros bares, estabelecimentos que anos atrás apreciava bastante. “Fui a
mulher que mais bebeu cachaça nesse João Cabral, você acredita?”, e gesticula
com o indicador para cima. “Juazeiro não era de ninguém, era meu. Rodei por
todos os bares e bairros dessa cidade sozinha, porque só gosto se for assim”.
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Maria do Socorro, boemia, perdas e encontros. Foto: Samuel Macedo. |
Virava
noites dançando e bebendo sozinha, mas era quando o dinheiro acabava que
“virava o diabo”. Não lembra as vezes em que foi levada pelos policiais por
desordem e, chegando na prisão, surpreendentemente ficava sóbria. “Tá boa,
Socorro?”, perguntavam os vizinhos nos dias após os virotes, preocupados. “Não,
eu não tava doente não”, respondia ela cheia de graça. E lembra os relatos que
ouvia, espantada, sobre os acontecimentos, sem qualquer lembrança deles.
“Mulher, tu me esculhambou ontem, tu dormiu na rua, tu caiu na lama, tu avançou
em cima do carrinho de picolé”.
Por
essas e outras ganhou sua fama no bairro, que atribui à pobreza material na
qual foi destinada a viver e às barreiras que enfrentou em consequência da
falta de estudo e dinheiro. Era continuar bebendo ou viver, então decidiu
viver. Hoje, do alcoolismo, ela promete, está curada. Completaram-se 12 anos
desde seu último gole, e assim está melhor. Continua sendo personagem
carismática nas histórias do bairro que tanto ama e por quem compra briga com
motorista de ônibus e moto-táxi, que voltando do forró de todo domingo em
Barbalha, tenta fazer piada dizendo: “A senhora mora no João Cabral? Ave,
Maria! Deus me livre! Tenho medo até de passar perto”.
JOÃO CABRAL, O HOMEM
Conforme
conta o historiador Raimundo Araújo, João Cabral de Medeiros não tinha renome
quando saiu de Pernambuco e chegou em Juazeiro do Norte. Tinha, na verdade,
apenas a pataca de 200 réis que seu padrinho de crisma — nada menos que Padre Cícero
Romão — lhe presenteou para começar a vida adulta. Começou sua vida como
comerciante, vendendo rapadura e farinha nas ruas. Pelo carisma, fez amizade
com figuras importante, tais como Dr. Floro Bartolomeu, que lhe apresentou ao
jogo do bicho, tornando-se o primeiro banqueiro do tipo por essas partes. João
Cabral enriqueceu com as apostas, com a agricultura e com o comércio, sob
benção do padre. Casou-se com Maria Coimbra e teve um filho, Antônio Coimbra
Cabral, que viria a ser um líder estudantil. Morreu 1971, aos 81 anos,
recebendo a homenagem póstuma de batizar um bairro.
Fonte:
Cariri Revista, edição 30. Editora 309. Juazeiro do Norte. Reportagem: Alana
Maria Soares.
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