Sessão remota da Assembleia Legislativa do Ceará. (FOTO/ Reprodução). |
Não
é de hoje que pipocam projetos de lei que se pretendem acabar com as chamadas
fake news. Apenas em setembro de 2019, eram 27 tramitando na Câmara dos
Deputados, segundo levantamento do Intervozes. De lá para cá, o volume só
cresceu. Seguindo a moda, legislativos de São Paulo e da Paraíba aprovaram
projetos sobre o tema com o argumento do combate ao novo coronavírus.
Nesta
quarta-feira 29, foi a vez da Assembleia Legislativa do Ceará aprovar texto que
fixa multa para quem dolosamente divulgar notícia falsa sobre epidemias,
endemias e pandemias, problema abordado em três artigos e cinco linhas.
Ocorre
que nem apenas de boa vontade é feita uma lei. No caso desta, o problema já
começa pela total ausência de uma definição do que se entende como “notícia falsa”. O intuito correto de
enfrentar a desinformação deve partir da compreensão da complexidade do
fenômeno e estar ancorado nos padrões internacionais de exercício da liberdade
de expressão.
Já
são muitos os documentos que tratam do tema. Para evitar uma exposição
cansativa, é útil mencionar a “Declaração
sobre a Liberdade de Expressão e Notícias Falsas, Desinformação e Propaganda”,
publicado em março de 2017 pelos relatores especiais para a Liberdade de
Expressão da Organização das Nações Unidas (ONU), OEA (Organização dos Estados
Americanos), OSCE (Organização pela Segurança e Cooperação na Europa) e CADHP
(Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos).
O texto diz que “as proibições gerais de difusão de informação baseadas em conceitos imprecisos e ambíguos, inclusive ‘notícias falsas’ (‘fake news’) ou ‘informação não objetiva’, são incompatíveis com as normas internacionais sobre restrições à liberdade de expressão, conforme se indica no parágrafo 1(a), e deveriam ser revogadas”.
É
exatamente o caso do projeto em questão, o qual em sua justificativa, para
piorar a situação, diz que “nossa preocupação
é com aqueles que, sob o anonimato e com interesses escusos, divulgam
informações sabidamente falsas” e que isso se dá “com o objetivo de
legitimar um ponto de vista ou prejudicar uma pessoa ou grupo (geralmente
figuras públicas)”.
O
que motiva o destaque? Está comprovado que são contas anônimas as que difundem
conteúdos equivocados sobre a pandemia? Ora, basta acessar as contas oficiais
da Secretaria de Comunicação do governo federal ou do próprio presidente Jair
Bolsonaro para encontrar uma primeira resposta.
Ademais,
é útil lembrar que o anonimato é permitido pela Constituição Federal e é
importante, inclusive, para que muitos defensores de direitos humanos possam
atuar na rede. Soma-se ao problema conceitual que mais uma vez aparece ao
destaque conferido às figuras públicas, que muitos projetos supostamente sobre
fake news apresentados nos últimos anos tentaram proteger – motivo pelo qual
não prosperaram.
Tal
referência sobra, ao passo que faltam menções a casos como o do Irã, país que
viu dezenas de pessoas morreram intoxicadas após beber álcool adulterado,
acreditando num boato que dizia que isso poderia eliminar a doença,
comportamento que também tem sido estimulado nos Estados Unidos, ou mesmo ao
Brasil, onde pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) mostra que 73,7% das
notícias falsas sobre o novo coronavírus circulam pelo WhatsApp. Outros 10,5%
foram publicadas no Instagram e 15,8% no Facebook.
Se o
conceito orientador da política não for explicitado, corremos o risco de cair
no critério do possível verificador que, aliás, também não é apontado no texto
do Legislativo cearense. Será a polícia a definir? O Judiciário? As
plataformas? Um colegiado criado para tal fim? Não sabemos. Não se trata de um
problema menor ou de algo que caiba apenas à regulamentação.
Essa
é uma questão central e deveria ser objeto de intenso debate, pois caso reste
às plataformas digitais ou mesmo a agências de checagem essa tarefa,
legitimaremos a avaliação e mesmo possível censura privada de conteúdos. Uma
postura que contrariaria as melhores regras sobre internet, que se pautam
sempre na multissetorialidade (envolvendo agentes públicos, empresas e
sociedade civil), caso do próprio Marco Civil da Internet. Mas o projeto foi
proposto e aprovado às pressas, em um contexto em que o debate público está
limitado pelas condições de isolamento da sociedade.
Nada
disso foi respondido. Assim como nada foi mencionado quanto ao equilíbrio
necessário para que o combate ao fenômeno não resulte na violação de direitos
fundamentais como a liberdade de expressão, o acesso à informação e a
privacidade dos usuários de internet. Também não foram propostos mecanismos que
garantam transparência das ações do órgão que porventura tenha a tarefa de
definir o que é verdade ou não (como relatórios periódicos) ou para que a
pessoa que venha a ser multada possa questionar e pedir que o enquadramento
como falso seja redefinido. Seriam melhorias possíveis no projeto e que podem
vir a ser incluídas em uma possível regulamentação.
Não
obstante, o problema de fundo não pode ser resolvido. E ele está em buscar
individualizar a questão da desinformação, o que pode gerar o efeito de
autocensura das pessoas, que podem deixar de compartilhar informações na rede.
Além disso, o remédio desconsidera a doença de fundo, pois culpabiliza pessoas
que, muitas vezes, são desprovidas de informações ou não possuem instrumentos
para verificar a veracidade de um conteúdo, afinal estamos em uma sociedade que
historicamente nega o direito à comunicação e não promove a leitura crítica
sobre a mídia.
É
legítimo buscar enfrentar o problema que levou a própria ONU a declarar, na
primeira quinzena de abril de 2020, existir uma “perigosa epidemia de desinformação”, responsável pela proliferação
de conselhos danosos para a saúde e falsas soluções.
Se é
para levar essa tarefa a sério, é recomendável partir da compreensão expressa
pela Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e ‘Notícias Falsas’ (‘Fake News’),
Desinformação e Propaganda: “a desinformação e a propaganda são muitas
vezes concebidas e implementadas com o propósito de confundir a população e
para interferir no direito do público de conhecer e no direito das pessoas de
procurar e receber, e também transmitir, informação e ideias de todos os tipos”.
Desinformação
é, portanto, algo fabricado intencionalmente, em escala industrial, arquitetada
por grupos que possuem poder político e econômico e que se valem também da
problemática economia das plataformas digitais, que se interessam e ajudam a
promover conteúdos que geram cliques, por mais que sejam falsos. É de uma
abordagem ampla que precisamos para enfrentar a questão. Saídas existem.
O
Intervozes formulou cartilha sobre o tema e também destacou dez medidas para
combater as fake news, além de outras apresentadas em dezenas de audiências
públicas e outros espaços de participação, como também têm feito diversas
organizações da sociedade civil brasileira. Outro caminho possível para isso é
o de uma investigação do que tem circulado sobre a pandemia, a fim de identificar
realmente os grupos promotores do problema e a arquitetura que viabiliza que
ele adquira o impacto que sabemos que tem.
Como
vimos em agosto do ano passado, quando parlamentares bem-intencionados
comemoraram a derrubada do veto presidencial a um dispositivo da Lei Eleitoral
que prevê pena de dois a oito anos de reclusão para quem, comprovadamente
ciente da inocência de um candidato, divulgar uma notícia falsa sobre o mesmo
durante as eleições, apenas a extrema-direita se manifestou em contrário.
Os
motivos que nos movem obviamente são diferentes. E são diferentes porque, em
primeiro lugar, para quem quer de fato acabar com a desinformação é preciso
formular mecanismos para enfrentar a questão – o que não se esgota na
apresentação de um projeto a mais, que possivelmente não contribuirá com isso.
É deseducativo e joga água no moinho das respostas fáceis, que estão longe de
apresentarem saídas reais para um tema que sabemos ser crucial tanto para o
enfrentamento da pandemia quanto para a sobrevivência da própria democracia.
____________________________
Por Helena Martins, na CartaCapital.
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