O Egito Negro, problematizando estereótipos

 

Kmet era uma civilização negra (Imagem disponível em: https://afrokut.com.br/blog)

Por César Pereira, Colunista

No ano de 2014 o diretor de cinema Ridley Scott lançou o filme Êxodo: deuses e reis cujo roteiro baseia-se no Midrash, conjunto de textos exegéticos sobre a Torá hebraica e no próprio livro do Êxodo da Bíblia cristã. O filme reconta a história da liderança de Moisés enquanto luta para retirar o povo Hebreu da escravidão no Egito do século XIV a.C.

Logo após seu lançamento o filme se tornou alvo de críticas tanto por parte dos cinéfilos mais inveterados que não gostaram do ritmo da ação, pois o filme procura centrar sua atenção na história de vida do patriarca Moisés e adota para isto a perspectiva cinematográfica da jornada do herói, que consiste em acompanhar ao longo do filme o amadurecimento do protagonista que deverá ter um papel decisivo até o final deste.

Os críticos de cinema analisaram o filme como uma obra irregular, pois propõe-se a fazer-se um épico, mas não desenvolve os elementos míticos que o enredo sugere, nem tampouco os fatos históricos que o roteiro levanta. Do ponto de vista histórico segundo esses críticos Ridley Scott contenta-se em ser declaradamente parcial representando os egípcios como seres humanos cruéis que massacraram e escravizaram os hebreus (a comparação com o holocausto nazista é inevitável segundo os críticos de cinema), e do ponto de vista religioso o filme procura esvaziar o invólucro mitológico que fundamenta a narrativa bíblica da história de Moisés.

Um dos motivos pelos quais o governo da República Árabe do Egito proibiu a exibição do filme no país foi precisamente esta inexatidão histórica, isto é, a representação do Egito Antigo como um estado nazista que perseguia e escravizava os hebreus para obrigá-los a erguer seus monumentos. O outro motivo foi especificamente religioso, pois o filme procura impor uma imagem estereotipada de Moisés que é considerado um importante profeta de Allah, chamado de Musa no Alcorão. Nos demais países mulçumanos onde proibiu-se Êxodo: deuses e reis os argumentos foram semelhantes, como no Marrocos onde se questionou a representação da voz de Deus através de uma criança e na Arábia Saudita que proibiu o filme pelo sionismo exagerado em que se fundamenta em detrimento dos egípcios representados como homens cruéis e antissemitas.

Alguns críticos de cinema e historiadores em geral chamaram a atenção para o profundo anacronismo do filme, pois além da evidente comparação dos egípcios antigos com os governantes nazistas da década de 1930 e 1940 o elenco é todo composto por atores brancos e logo percebeu-se o quanto é falsa essa representação do Egito Antigo como uma civilização branca:

Um problema marcante, porém, já começa a se estabelecer: não vemos sequer um negro em cena, sequer pessoas com pele mais escurecida. Estamos sim, no Norte da África, mas o “embranquecimento” dessa classe dominante só ocorreria posteriormente no período Ptolomaico, cuja linhagem real passa a ser, verdadeiramente, de origem grega. Esse exagero do caucasiano gerou, é claro, acusações de uma discriminação por parte da produção, mas, além disso, quebra o já citado realismo que o longa-metragem almeja.  Por mais que John Turturro desempenhe em satisfatório papel como o Faraó, não conseguimos acreditar que ele realmente possa ser de naturalidade egípcia. (CORAL, 2014, disponível em: https://www.planocritico.com/critica-exodo-deuses-e-reis/).



Esse embranquecimento do Egito Antigo comum no cinema, séries e telenovelas não é gratuito, isto é, não é destituído de intensões políticas e de objetivos de dominação cultural. Um Egito Antigo branco agrada a elite intelectual do mundo todo, principalmente a europeia e norte-americana. Embranquecer o Egito Antigo se tornou prática cultural comum na Europa a partir do século XVIII e se intensificou no XIX ganhado contornos definitivos através da literatura, teatro, historiografia, pintura e nos séculos XX e XXI através da arqueologia, do cinema e da televisão.

O Egito Antigo branco foi uma exigência ideológica da intelectualidade ocidental eurocentrista para aceitar a grandeza e profundidade daquela civilização que é uma das mais antigas da bacia do Mediterrâneo e que influenciou outras grandes sociedades que nesta região também se desenvolveu como a dos hebreus, gregos, macedônios, romanos.

A partir do século XVIII o discurso sobre as raças que antes pertencia principalmente a religião cristã que desde a Idade Média o utilizava para separar a cristandade europeia dos outros povos (mulçumanos do norte da África e Oriente Médio, negros do continente africano e indígenas da América), transfere-se para o campo filosófico e aí começa a se desenvolver o conceito das três raças: branca, negra e indígena (amarela). Os filósofos iluministas preocuparam-se em estabelecer quais as qualidades essenciais desses grupos étnicos, definir quais características tornavam os europeus brancos diferentes dos outros povos e como tais caracteres tornavam os brancos superiores aos africanos, asiáticos e ameríndios.

Estabeleceu-se então a ideia de uma superioridade europeia com base no ideal da racionalidade superior do branco. A razão passa a ser um qualificativo essencial para distinguir o homem civilizado, para o filósofo Emanuel Kant essa razão impõe ao ser humano a necessidade de separar-se da natureza e buscar o esclarecimento, no entanto esse homem do esclarecimento não é qualquer homem, este é um europeu branco educado nas academias científicas, de artes e filosofia da Europa.

Segundo este filósofo o homem branco aprendeu através do uso da razão a controlar o ambiente e a utilizar a natureza a seu favor, sendo assim, este homem do esclarecimento é o único capaz de protagonizar a história universal e constituir uma civilização. Os outros povos e em especial os negros eram incapazes de se desvencilharem do ambiente e vivendo nele imersos não possuíam uma razão esclarecida e, portanto, era-lhes impossível criar uma civilização o que os impedia de ter uma história.

Para Kant as outras raças viviam imersas no ambiente e raça negra segundo ele:

Os negros da África, por natureza, não têm nenhum sentimento que se eleve acima do pueril. O senhor Hume desafia quem quer que seja a citar um único exemplo de um negro demonstrando talento e afirma que dentre as centenas de milhares de negros que são transportados de seus países para outros, mesmo dentre um grande número deles que foram libertados, ele nunca encontrou um só que, seja em arte, seja nas ciências, ou em qualquer outra louvável qualidade, tenha tido um papel importante, enquanto que dentre os brancos, constantemente ele constata que, mesmo se nascidos das camadas mais baixas do povo, estes sempre se elevam socialmente, graças a seus dons superiores, merecendo a consideração de todos. Tanta é a diferença essencial entre estas duas raças; ela parece também tão grande no que concerne às capacidades quanto segundo a cor. A religião fetichista, largamente difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria que se enraíza tanto na puerilidade quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, um chifre de uma vaca, um búzio, ou qualquer outra coisa ordinária, desde o instante em que esta coisa seja consagrada por certas palavras, é um objeto de veneração e invocada em juramentos. Os negros são muito vaidosos, mas à maneira negra, e tão tagarelas que é preciso dispersá-los a golpes de porrete. (KANT,2014).



Nesta concepção o filósofo iluminista já constrói parte do argumento que nos séculos será utilizado pelo neocolonialismo europeu para justificar sua ação dominadora sobre a África. Ao argumentar que o ambiente onde vivem os negros oblitera suas capacidades intelectuais, mas desenvolve exclusivamente seu porte físico, Kant aproxima os povos de pele escura dos animais irracionais. Para Kant o que se sobressai em negro é sua corporeidade, assim por não ter uma racionalidade desenvolvida ele é indolente e desocupado, incapaz de construir uma sociedade organizada e racionalizada, e essencialmente privado de natureza humana, isto é as características fundamentais de um ser humano (razão, história e civilidade).

Com estes argumentos a intelectualidade europeia subtrai a história e a civilização da África. Para os filósofos do século XIX e os historiadores deste século o continente africano não possuía história porque nessa época a história era o progresso da civilização e os povos africanos eram incapazes de produzir uma civilização, pois não possuíam a capacidade de raciocínio claro, uma vez que seu pensamento estava envolto no misticismo, fetichismo e irracionalidade.

Ao se deparar com as maravilhas e grandezas da civilização egípcia antiga, (monumentos, riquezas, escrita, literatura, filosofia, medicina, ciência, arte, arquitetura, sistema político e religioso), essa intelectualidade europeia se impôs um dilema: se aceitasse o Egito Antigo como uma civilização negra teria que admitir a racionalidade dos grupos étnicos não-brancos e dos povos não-europeus; se admitissem haver razão, história e civilização nos negros teriam que estender o conceito de humanidade e natureza humana a todos os indivíduos em todos os continentes e isto tornaria as conquistas coloniais europeias injustificadas.

Sendo assim, as academias, a ciência, a elite, os filósofos, antropólogos, sociólogos, historiadores, políticos, escritores, passaram a construir um vastíssimo arcabouço discursivo para impor ao continente africano uma não-história e a impossibilidade dos seus povos criarem civilizações:

a África propriamente dita, tão longe quanto a história registra,  conservou-se fechada, sem laços com o resto do mundo;  é a terra do ouro, debruçado sobre si mesma, terra da infância que além do surgimento da história consciente, está envolvida na cor negra da noite...[...] O que caracteriza os negros, é precisamente o fato de que sua consciência não tenha ainda chegado à intuição de nenhuma objetividade firme, como  por exemplo Deus, a Lei, onde o homem se sustentasse na sua vontade, possibilitando assim  a intuição do seu ser... Como já dito, o negro representa o homem natural, em toda sua selvageria e sua petulância; é preciso fazer abstração de qualquer respeito e qualquer moralidade, do que se chama sentimento, se se deseja de fato conhecê-lo; não se pode encontrar nada nesse caráter que possa lembrar o homem. (HEGEL, 1987).



Na prática o que está expresso acima é uma corroboração apressada do pensamento de Emanuel Kant acima citado. Para Hegel assim como para Kant é impossível encontrar a civilização no continente africano, afirma-se assim a superioridade do homem europeu e o destino dos negros é aceitarem a dominação branca, pois a Europa é o berço da lei, da religião, da filosofia, é onde a razão universal habita e onde se realiza o movimento da história,

Foram ideias como esta que levaram ao embranquecimento do Egito Antigo a partir do Iluminismo, passando pelo Positivismo, o historicismo, o darwinismo social, o imperialismo, as concepções eugenista do final do século XIX e primeira metade do século XX.

Ao longo do século XIX a historiografia, a filosofia, a literatura e arte foram subtraindo a negritude do Egito Antigo. Através da arte a representação dos egípcios da antiguidade foi se embranquecendo, a pele cada vez mais pálida dos faraós e da nobreza egípcia se impunha como característica fenotípica essencial daquele povo antigo. Rapidamente a historiografia foi racializando a história do Egito Antigo, e essa sociedade passou a ser compreendida como uma extensão do mundo semítico (hebreu e mesopotâmico) como também grego (macedônico e ptolomaico) e finalmente romano.

Segundo Paula (2013, p. 26), é possível verificar que, na Antiguidade, os povos não eram categorizados coo raças, mas sim por sua origem tribal, isto quer dizer que não se levava em conta a cor da pele dos indivíduos que compunham um reino, um império, uma cidade-estado, uma sociedade. Partindo disso, Paula (2013, p. 26) passa a argumentar que a aplicação da cor da pele para classificar os povos aparece na Idade Média, com o objetivo dos católicos em reafirmar a cristandade a partir uma matriz ocidental e branca. Desse modo, Paula (2013, p. 27) aponta que é a partir desse período depois de alguns séculos seguintes que passa a se rotular um viés teológico procurando esclarecer a condição do não-europeu, especialmente dos negros e dos indígenas. Como já dissemos foi com o iluminismo no século XVIII, que a questão vai deslocar-se para o campo da filosofia e aí a concepção de raça passa a ser utilizada na separação da humanidade em três, o que Paula (2013, p. 27) ressalta como o fator que viabilizará uma hierarquização racial. Essa hierarquização, no século XIX, adquire um valor científico ratificando o racismo estrutural.

A civilização egípcia que brota das páginas dessa historiografia racializada é a de um Egito Antigo branco e semítico. De fato, como sugere Paula (2013) não podemos definir o Egito Antigo como uma civilização negra partindo das nossas perspectivas de raça e etnia atuais, mas não se pode adotar uma suposta neutralidade sobre as características fenotípicas dos antigos egípcios.


Figura 1: Love's Labour Lost (Edwin Long) - Fonte: Imagem elaborada pelo autor.

Sabemos pela autorrepresentação que os próprios egípcios antigos faziam de si que eles não tinham a pele clara tal como aparece nas representações europeias dos séculos XVIII e XIX, como também nas imagens veiculadas no cinema e na televisão nos séculos XX e XXI. Se não podemos classificar os egípcios antigos como negros, uma vez que esta categoria só nasceu com os discursos raciais do Iluminismo, mas certamente é possível concluir que estes tivessem a pele escura, preta.

Contra o embranquecimento do Egito Antigo e a invenção de uma civilização egípcia semítica levantou-se o historiador do século XX Cheikh Anta Diop. Foi graças as suas pesquisas, debates e textos que a partir da década de 1950 começou-se a questionar a visão eurocêntrica sobre o antigo Egito. No seu livro Nações negras e cultura: Da antiguidade negra egípcia aos problemas culturais da África negra de hoje cuja publicação foi feita em 1954 o historiador sustenta a origem africana dos egípcios e cor preta de suas peles.

Com base em fontes históricas e diversos textos da Antiguidade (incluindo autores bíblicos e documentos gregos antigos), como também as obras de arte egípcias compreendendo variados períodos, fazendo uso de análises comparativas (totemismo, circuncisão, realeza, cosmogonia, organização social, matriarcado), Diop vai desconstruindo a perspectiva eurocêntrica de um Egito Antigo branco cujas origens históricas remontava aos povos semitas da Mesopotâmia.

O historiador e filósofo senegalês baseia-se também em argumentos linguísticos para sustentar as características fenotípicas da pele preta, tais argumentos são por exemplo, a existência de um conceito pelo qual os próprios egípcios se representavam, KMT, que significaria na interpretação paleolinguística de Diop preto/do carvão.

Ele também faz uso de estudos históricos e antropológicos sobre o povoamento da África a partir do vale do Nilo contrapondo-se assim a tese criada no século XIX segundo a qual os egípcios da antiguidade descendiam de povos semitas que teriam migrado do Oriente Médio para o Vale do Rio Nilo.

Os questionamento e argumentos utilizados por Diop no seu livro e posteriormente incluídos na coletânea História Geral da África, livro editado pela Unesco e traduzido em dezenas de línguas levaram vários historiadores a despertarem sua atenção para a questão do embranquecimento proposital e ideológico do Egito Antigo. Mesmo embasado em sólidos argumentos científicos e filosófico, bem como em uma vasta documentação histórica a tese de Cheik Anta Diop não deixou de ser deliberadamente sabotada pelas academias eurocêntricas, pela historiografia e a arqueologia racista.

Segundo estes estudiosos brancos as pesquisas de Diop não podem ser admitidas como contendo verdades históricas porque a sua tática de afirmar uma civilização egípcia negra é incorreta uma que segundo eles os egípcios antigos não podem ser classificados como pertencendo a uma raça. Evidentemente que este não é o objetivo de Diop, pois ele não afirma serem os egípcios da Antiguidade um povo de raça negra, mas acima este historiador propõe a localização do Egito Antigo e dos povos que habitaram este território na África.

Para Cheik Anta Diop, bem como para outros historiadores negros que definem o Egito Antigo como uma civilização africana não é possível que as terras do Vale do Rio Nilo tenham sido povoadas, habitadas, cultivadas, por povos não-africanos, isto é, a origem dos povos que habitaram o Egito na Antiguidade é o próprio continente africano e como tal, sendo as populações deste continente negras, isto é, pretas, necessariamente a pele dos antigos egípcios teria de ser definida como sendo preta.

De acordo com os estudos de Diop era como pretos que os egípcios se viam, pois, a palavra Kṃt com a qual se identificavam na Idade Antiga significando preto/do carvão referia-se a cor de sua pele:


Portanto, se a humanidade teve origem nos trópicos, em tomo da latitude dos Grandes Lagos, ela certamente apresentava, no início, pigmentação escura, e foi pela diferenciação em outros climas que a matriz original se dividiu, mais tarde, em diferentes raças; havia apenas duas rotas através das quais esses primeiros homens poderiam se deslocar, indo povoar os outros continentes: o Saara e o vale do Nilo. (DIOP, 2012).


Ainda na Antiguidade o historiador grego Heródoto ao descrever os egípcios o fez em termos que é impossível não deixarmos de estar de acordo com Diop “De minha parte considero os Kolchu uma colônia do Egito, porque como os egípcios eles têm a pele negra e cabelo crespo”. Já o filósofo Aristóteles refere-se aos egípcios antigos nesses termos:

Aqueles que são muito negros são covardes como, por exemplo, os egípcios e os etíopes. Mas os excessivamente brancos também são covardes, com podemos ver pelo exemplo das mulheres; a coloração da coragem está entre negro e o branco. (ARISTÓTELES, 2011)



Se não bastasse a descrição que os textos antigos fazem dos egípcios como pretos também temos as obras de arte que eles próprios criaram representando a si mesmos.

Nessas imagens a pele dos camponeses, soldados, da realeza, do faraó, sacerdotes, nunca aparece representada como pálida. Os pintores procuravam pigmentos escuros, marrons, tons que jamais demonstram proximidade com a pele clara. Os cabelos são crespos, lábios e narizes grossos, maçãs do rosto volumosas, todas elas são caracteres predominantes em pessoas negras.



Figura 2: Cena de banquete da capela do tumulo de Nebamun, Egito, 1350 a. C. Fonte: Imagem elaborada pelo autor.

Entre a figura 1 que é uma representação europeia da corte egípcia e a figura 2 que é uma pintura de um artista do Egito Antigo da corte de uma rainha egípcia podemos observar diferenças radicais. Enquanto as mulheres que aparecem na figura 1 são pálidas, delicadas, lânguidas, simulando uma sensualidade idealizada pelos europeus no Oriente, as mulheres que foram pintadas na figura 2 têm os cabelos crespos, a pele escura, os traços do rosto são semelhantes aos das mulheres pretas da África e estas aparecem em pleno seu vigor feminino, são mulheres ativas e jamais passivas como sugere a figura 1.

Estamos aqui nesta figura 2 evidentemente diante de pessoas pretas, esta imagem foi produzida por um artista do Egito Antigo e como tal fica evidente que ele não representou as nobres egípcias, suas servas e servos como pessoas brancas, escolheu tons escuros e traços negroides para representá-las.

Assim como observamos as características da negritude na pintura dos egípcios antigos também podemos observá-la nas esculturas e máscaras mortuárias.


Máscara funerária de Tutancâmon, ouro, pedras semipreciosas e pasta de vidro colorido, 54 cm de altura, cerca de 1350 a. C. Conservada no Museu Egípcio, Cairo, Egito. (Fonte: Reprodução da Internet). 

Lábios grossos, nariz volumoso, maçãs do rosto salientes, esta é a representação artística do faraó Tutancâmon feita em por volta do século XIV a.C., por um artista da XVIII dinastia. Todas essas representações bem como os textos da antiguidade e os estudos realizados nas décadas de 1950 e 1960 por Cheik Anta Diop nos levam a acreditar que os antigos egípcios eram pessoas de pele preta e que a civilização egípcia foi erguida e sustentada por pessoas negras.

Foi essa certeza que levou ao embranquecimento do Antigo Egito. Com o objetivo de dominar culturalmente, politicamente e economicamente os outros povos os europeus negaram a estes uma história, negaram que eles possuíssem humanidade ou mesmo natureza humana. Procurando se impor como dominadores os europeus estabeleceram que somente pessoas brancas poderiam construir civilizações e participar da história, testemunhando a grandeza do Egito Antigo não podiam admitir que pessoas de pele preta, que homens e mulheres negros tivessem a capacidade de erguer um império tão poderoso e estável, uma sociedade tão bem estruturada quanto a deles ou até mesmo mais que aquelas que existiram na Europa.

Embranquecer o Egito Antigo foi uma estratégia política e ideológica, funcional tão bem que hoje até mesmo a elite intelectual da própria República Árabe do Egito se recusa a aceitar a negritude dos antigos habitantes do seu território.

Essa negação ficou expressa na polêmica causada pela série Rainhas Africanas disponibilizada em 2023 pela plataforma de streaming Netflix. Um dos episódios da série foi sobre Cleópatra e a produtora do programa Jada Pinkett Smith escolheu a atriz Adele James, negra, para interpretar a rainha do período Ptolomaico. Bastou apenas isto para uma enorme controvérsia erguer-se, intelectuais das universidades egípcias e fora do Egito apressaram-se em ir a público afirmar que a série estava sendo anacrônica pois segundo eles Cleópatra era uma grega e, portanto, branca.

A imagem de Cleópatra como rainha branca do Egito ficou gravada no imaginário popular graças o cinema. Na década de 1960 a atriz Elizabeth Taylor interpretou a rainha no filme Cleópatra, a rainha do Nilo e foi esta representação que consolidou definitivamente a imagem da rainha grega, da rainha branca e voluntariosa que governou o Egito.

As representações do Egito Antigo como habitado por pessoas brancas e até mesmo dos deuses egípcios como entidades brancas prolifera-se no cinema, na literatura, nas artes em geral, jogos de RPG, videogames e na internet. Os livros didáticos de história distribuídos vendidos pelas editoras ou distribuídos nas escolas também repercutem este estereótipo ideológico e falacioso.

Um filme de grande sucesso de público que arrecadou milhões de dólares no mundo inteiro foi Os deuses do Egito do diretor Alex Proyas, lançado em 2016, o roteiro narra um episódio da mitologia egípcia, a guerra entre o deus Set (deus da guerra e do caos), seu irmão Osíris (deus da fertilidade) e Hórus (deus do sol, da luz). Narra-se neste mito como Set matou Osíris e se apropriou do governo do mundo e como Hórus passou a combater o mal Set para restituir a ordem na terra.

Mais uma vez o diretor optou por um elenco de atores brancos que empobrece o filme e reforça os estereótipos de embranquecimento do Egito Antigo que vem sendo alimentado e retroalimentado desde o século XVIII.


Figura 3: Cena do Filme Deuses do Egito – Fonte: Criação do autor.

A manutenção desses estereótipos reforça o racismo estrutural, pois ao subtrair dos pretos a possiblidade de possuírem uma história de terem protagonismo histórico, reforça o poder do branco através de discursos e narrativas que se estabelecem como práticas culturais de controle social, econômico, político e ideológico.

Um filme como Deuses do Egito não é somente um produto da indústria cultural ele veicula para milhões de pessoas o discurso de poder hegemônico da branquitude. O Egito Antigo negro é um conceito é uma categoria histórica que ainda incomoda toda uma elite intelectual eurocêntrica.

REFERÊNCIAS

Aristóteles, Da fisionomia, São Paulo, Edipro, 2020.

DIOP, Cheikh Anta. Contribuciones culturales de África y sus perspectivas . IN:KOHN, Hans; SOKOLSKY, Wallace. El nacionalismo africano em el siglo XX. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1968. em: 01 de maio de 2020.

Heródoto, História, São Paulo, Iluminuras, 2002.

Kant, Emmanuel. Observações a respeito do belo e do sublime, Petrópolis, Vozes, 2012.

PAULA, Benjamin Xavier de. A educação para as relações etnico-raciais e o estudo de história e cultura da áfrica e afro brasileira: formação, saberes e práticas educativas. 2013. 346 f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2013. Disponível em: http://clyde.dr.ufu.br/handle/123456789/13652. 


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