![]() |
Gerson e Geneci são as lideranças do Quilombo Flores. (FOTO/ Fabiana Reinholz). |
Em
artigo, a escritora mineira Conceição Evaristo afirmou que "é tempo de
formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias
futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta
constante". O tempo de se aquilombar está vivo em muitos tempos e
espaços.
Há
mais de seis décadas, o Quilombo da Família Flores tem reafirmado a sua
ancestralidade e lutado por pertencimento territorial no bairro Glória, Zona
Sul de Porto Alegre. Situado na rua Manduca Rodrigues, o quilombo é o sétimo
autorreconhecido da capital gaúcha.
Assim
como ocorre com outros quilombos, os Flores vêm sofrendo com ações de
reintegração de posse. O episódio mais recente aconteceu em 2015, quando a
comunidade foi surpreendida pelo esbulho cometido pela Fundação Marista -
Unidade Assunção, localizada ao lado do território. Embora alegue ser
proprietária do terreno, a entidade não apresentou registro em seu nome até o
momento.
“O
primeiro esbulho foi numa terça-feira. A gente ouviu um barulho de máquina,
fomos ver e o maquinário ia entrando. Eu fui lá para tentar dialogar com o
pessoal, entre eles estava um representante do Marista. Eu falava e a máquina
continuava tocando, e ele não me deu ouvidos. Tive que chamar o meu advogado,
que trouxe os papéis do terreno, dizendo que a gente já tinha, há três meses,
reaberto uma ação de usucapião. Havia uma ação que estava arquivada, de 1983.
Uma prova que o meu pai já tinha tentado, por meio judicial da lei branca,
fazer as coisas corretas. E mesmo assim não fomos ouvidos, mesmo assim eles
tentaram passar por cima”, relembra Geneci Flores, liderança do território.
Quilombo para mim é onde a pessoa se sente bem, é onde a pessoa possa vir e se sentir livre. Onde ela mostra o que tem de bom, onde se passa a sua cultura. Um quilombo é a nossa terra, a mãe-terra, onde a gente não se vende
Desde
o começo do processo, o quilombo perdeu dois terços da área. E, segundo a
família, a tentativa de remoção tem como objetivo a ampliação do estacionamento
do Colégio Marista Assunção.
“Estamos
na Justiça Federal, na luta até agora”, frisa Geneci. Nesta ocasião, os
Maristas construíram um muro no local. Em 2017, a Fundação Cultural Palmares
reconheceu a Família Flores como remanescentes de quilombos.
No
final de 2019, técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) foram até o local para dar início à elaboração do Relatório Técnico de
Identificação e Delimitação (RTID). No processo de titulação quilombola, o RTID
é uma etapa obrigatória. Na ocasião, Bethânia Zanatta, antropóloga do Incra
responsável pela realização do RTID, havia dito que a situação do Quilombo
Flores “é urgente em função da expropriação do terreno”, realizada em 2015 a
mando da União Sul Brasileira de Educação e Ensino (USBEE), mantenedora do
Colégio Marista Assunção. De acordo com Geneci, em 2021, um funcionário do
Incra esteve medindo o terreno. A comunidade ainda segue no aguardo.
Início de tudo
Geneci,
44 anos, juntamente com o seu irmão, Gerson Luís Flores da Silva, 45, são as
atuais lideranças do quilombo e salvaguardam a história de seus ancestrais.
Nascidos e crescidos no território, contam que na infância costumavam brincar
em um córrego do Arroio Cascata que passa nos fundos do território. Nesse
“riachinho”, como se refere Geneci, ela relembra que sua mãe o usava para lavar
roupas.
“Antigamente
dava pra tomar banho. Nós tomávamos banho, andávamos de cipó e pulávamos na
água, mas devido à poluição, não tem como a gente utilizar. As pessoas estão
botando o esgoto todo ali”, lamenta. De acordo com o Atlas da Presença Quilombola
em Porto Alegre/RS, o Arroio Cascata era ponto de encontro de mulheres negras e
libertas do século XX. Ali, elas lavavam juntas as suas roupas.
Foi
o pai de Geneci e Gerson que deu início aos vínculos da família no local.
Natural da cidade de Bom Retiro do Sul (RS), migrando para a capital na década
de 1930, onde se instalou na região da antiga Ilhota. Em 1955, se mudou para o
terreno na Glória, onde se casou com a primeira esposa, que trabalhava para a
família Azambuja, dona do lugar, que deu permissão para que eles vivessem ali.
Contudo tempo depois, segundo relata Geneci, tentaram retirá-los. “Meu pai
tinha esse pressentimento, o medo de que no dia que ele se fosse [falecesse],
como ele era uma pessoa doente, eles iam tentar fazer isso. Aí ele entrou na
justiça com uma ação de usucapião”, conta.
Após
o falecimento da primeira esposa, o patriarca Adão Fausto Flores da Silva
conheceu Rosalina da Costa Vasconcelos, mãe de Geneci e Gerson. Juntos,
continuaram vivendo no local. “Eles se conheceram num terreiro da prima do meu
pai, na grutinha da Glória. Ele batia tambores, fazia o canto. Foi ali onde
conheceu a minha mãe”, conta Geneci. Quando se conheceram, Adão era viúvo e
Rosalina tinha cinco filhos, frutos de seu primeiro casamento. Eles se casaram
em 1975, e Rosalina, que até então morava na Estrada dos Alpes, se mudou, junto
de seu pai, Eurico Lopes da Costa, e seus filhos para o território onde hoje se
localiza o quilombo.
Da
união de Adão e Rosalina, 45 famílias se constituíram. “Tenho irmãos que não
moram aqui no quilombo, mas eles sabem que independente de onde forem, são do
Quilombo Flores. Eles se autodeclaram quilombolas e isso é muito importante,
esse reconhecimento de sua origem”, ressalta Geneci. Atualmente, quatro
famílias residem no local.
Localizado em uma zona de classe média da capital gaúcha, Geneci comenta que os moradores do entorno já os reconhecem como quilombo e procuram saber sua história. Situação divergente da que passaram seus pais. “Existia um pouco de preconceito da nossa vizinhança, tudo que acontecia de ruim nas esquinas eles apontavam: ‘deve ser aquela família lá’, quando meus irmãos eram adolescentes, ‘ah deve ser aquela negrada lá do canto’. Tudo que acontecia de errado na rua eles apontavam para nós, a ‘negrada’ do canto da rua, sendo que o nosso reconhecimento vinha mesmo através da comunidade, através da periferia”, desabafa.
Agora,
afirma a liderança, a nova geração é uma geração que não se deixou abater. “A
geração da minha mãe é uma geração que não tinha muita defesa. A nossa geração
agora é uma geração que já tem mais estudo, que tem mais convívio com a
população”, complementa.
Sob a proteção de Bará e a herança dos pais
Em
frente à casa de Gerson, na entrada do quilombo, uma pequena casinha vermelha
chama atenção: trata-se da morada do Bará, de quem Gerson é filho espiritual.
Para as religiões de matriz africana, o Orixá Bará é o mensageiro divino,
guardião dos templos, casas e cidades. É o dono de todas as portas, de todas as
chaves e de todos os caminhos.
_____________
Com informações do Brasil de Fato. Clique aqui e leia o texto completo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Ao comentar, você exerce seu papel de cidadão e contribui de forma efetiva na sua autodefinição enquanto ser pensante. Agradecemos a sua participação. Forte Abraço!!!