(FOTO/ Reprodução). |
A
Preta “Tia Simoa” foi uma negra liberta que, ao lado de seu marido (José Luís
Napoleão) liderou os acontecimentos de 27, 30 e 31 de janeiro de 1881 em
Fortaleza – Ce , episódio que ficou conhecido como a “Greve dos Jangadeiros”,
onde se decretou o fim do embarque de escravizados naquele porto, definindo os
rumos para a abolição da escravidão na então Província do Ceará, que se
efetivaria três anos mais tarde. No entanto, apesar de sua importante
participação para a mobilização popular que impulsionou os acontecimentos, esta
mulher negra teve sua participação invisibilizada na história deste Estado
onde, ainda hoje, persiste a falsa premissa da ausência de negros.
As
mulheres negras cearenses são comumente indagadas sobre sua origem e
constantemente remetidas à Bahia, principalmente se não submetem seus cabelos a
processos de alisamento. Esta não aceitação de nossa identidade se deve a cruel
associação do negro à condição de escravo, que no caso do estado do Ceará, teve
seu processo diferenciado das principais capitanias importadoras de mão de obra
escravizada devido a suas condições climáticas e geográficas, o que não
significa dizer que aqui não tiveram escravos ou que não existiram negras e
negros livres, a exemplo da “Tia Simoa” que, além de liberta lutou pela
liberdade de seu povo, evidenciando uma expressiva característica da população
negra (escravizada ou liberta) deste período que ultrapassa a visão dicotomizada
entre o conformismo e a resistência, pois demonstra “uma experiência construída
historicamente pela etnia negra” (FUNES) estabelecida através de sua
sociabilidade, engajamento e luta inserida em seu cotidiano.
A
ausência desta documentação histórica se repete no tocante as demais lideranças
negras que atuaram no restante do país como Luíza Mahin (Ba), Mariana Crioula
(Rj), Tereza de Benguela (Mt) dentre tantas outras que poderiam figurar na
lista de resistência e resiliência negra feminina mas que são invisíveis na
historiografia oficial do país, bem como na história do feminismo brasileiro
que desconhece o extenso histórico de enfrentamento político e social da mulher
negra no Brasil. A omissão desta representação na história oficial perpetra o
imaginário social e destina, controla e manipula a subjetividade desse
contingente significativo de mulheres no Ceará, assim como no restante do
Brasil que, além de não veem suas demandas específicas inseridas no debate
sobre feminismo também não se percebem nos principais embates simbólicos
travados no bojo dessa importante organização política.
Atrelando
o conceito de gênero ao de “raça”, onde ambos descartam o discurso biologizante
das diferenças para se deterem ao campo semântico do conceito abreviado de “mulher
negra”, devemos considerar que este é, sobretudo, um conceito determinado pela
estrutura da sociedade e pelas relações de poder que a conduzem. Dessa forma,
conhecer a história de Simoa, mulher negra cuja história está submersa entre os
escombros da memória é, pois, estabelecer um sentido de pertencimento a um
grupo social historicamente invisibilizado no estado do Ceará. Ao sabermos da
influencia que as representações históricas exercem na organização social
poderemos compreender de que forma o discurso, inserido no pensamento social,
contribui para a construção das relações que se estabelecem neste meio.
Ao
eleger os sujeitos de uma representação histórica, estamos exercendo o que
Bourdieu chama de “poder simbólico” (2006, p.14), pois estamos nomeando um
objeto constituído na enunciação. Compreendendo o discurso como campo de
exercício deste poder e, portanto, como instrumento de dominação, ele assim se
efetua ao tomar reconhecimento e se concretiza ao tornar-se uma representação
social ideologicamente estruturada, vindo a contribuir significativamente para
a construção da realidade.
Com
isso quero dizer que, ao buscar conhecer a estrutura socioeconômica dos
responsáveis pela produção e reprodução deste discurso, podemos entender como
se formaram as configurações ideológicas acerca da imagem da população negra no
Ceará, sobretudo no discurso do período pós-abolição, onde se elegeu os
sujeitos para representarem o movimento abolicionista ao mesmo tempo em que
sepultava a memória dos “atores” esquecidos. É por meio do poder simbólico que
a historiografia oficial tende a forjar a “não presença” de negras e negros no
estado do Ceará e, assim, a naturalizar essa invisibilidade por meio da
reprodução deste discurso no âmbito educacional perpetrando o imaginário
social.
É,
portanto, percorrendo o itinerário oposto que buscamos desvendar os elementos
para compor nossa representação histórica a partir do protagonismo de mulheres
negras que tiveram sua participação omitida nos discursos sobre a série de
ações de resistência e de enfrentamento à escravidão, como no caso do movimento
abolicionista no Ceará que resultou em uma abolição pioneira no Brasil e que
este mês completa 130 anos, nos levando, mais uma vez, a refletir sobre os
desdobramentos deste processo no bojo dos discursos que se sucederam. Da mesma
forma, a omissão sobre o protagonismo de mulheres negras ao longo da história
do Brasil se reproduz no tocante a história oficial do feminismo brasileiro.
Ao voltar o olhar para o feminismo brasileiro percebemos as profundas desigualdades que se reproduzem em suas contradições internas, principalmente quando visto a partir da dimensão racial, ao desconhecer e desconsiderar o duro processo de aprendizagem em busca da construção da identidade da mulher negra. É necessário, portanto, avançar diante destas e outras contradições específicas através de um denso questionamento da lógica estrutural da sociedade, onde estará presente o racismo.
É
neste sentido que buscamos reescrever nossa história, para que possamos nos reconhecer
como sujeitos em nosso próprio discurso e, assim, fortalecer os laços de nossa
identidade através da organização coletiva. Pouco sabemos sobre a vida da Preta
“Tia Simoa”, que de forma quase que despercebida passa as vistas dos
historiadores, constando apenas um minúsculo relato sobre sua participação na
Greve dos Jangadeiros de janeiro de 1881 (GIRÂO, 1984, p.104), o que demonstra
a dívida histórica deste país para conosco.
Contudo, Simoa representa para nós uma visão alternativa de mundo ao mesmo tempo em que propõe para todos novas discussões acerca das estruturas sociais tradicionais, nos permitindo a reconfiguração de uma realidade social. Em nome dela, saudamos a todas as negras invisíveis na história e nos fortalecemos no eco de suas vozes silenciadas para dizer que aqui estamos e que daqui, do Ceará, falamos em inúmeras primeiras pessoas e dizemos que ainda há muito que se contar. Nossa história apenas começou.
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