Giselle dos Anjos, especialista em questões de raça e gênero. (FOTO/ Nego Júnior/ Divulgação). |
Todo
ano é a mesma coisa: em novembro, chovem compartilhamentos de posts nas redes
sociais que questionam a necessidade de haver um Dia da Consciência Negra. Mais
do que isso: sugerem a criação do Dia da Consciência Humana. No mês que termina
hoje, não foi diferente. O campeão de reposts é o trecho de uma entrevista do
ator norte-americano Morgan Freeman, de 15 anos atrás, na qual ele diz que,
"para acabar com o racismo, é só não
falar sobre ele".
Acreditar
que basta ignorar o problema para resolvê-lo, no entanto, não é um discurso
recente. O silêncio é a marca do racismo de um Brasil que sempre cultivou a
imagem de primeira democracia racial do mundo. Calcada na ideia de que não
existiria racismo por ser um país com grande população miscigenada, que gosta
de dizer que valoriza suas raízes africanas presentes na música e na
alimentação, por exemplo. Um discurso que, na verdade, encobre o racismo e
dificulta o seu combate. Afinal, não há por que combater aquilo que não existe,
certo?
"Uma das grandes lógicas do mito da
democracia racial é o aspecto do silêncio. Quando as pessoas não falam sobre o
problema ou quando elas tendem a classificar atos racistas como piada, uma
brincadeira, é só uma forma de não ter de confrontar o próprio racismo
internalizado", afirma a historiadora Giselle dos Anjos, especialista
em questões de raça e gênero e pesquisadora do Centro de Estudos das Relações
de Trabalho e Desigualdades, uma das principais organizações do mundo no campo
da diversidade.
Mesmo
sendo teoricamente "velado", o racismo possui um caráter estrutural
no nosso país. Ou seja, para homens e mulheres negros, ele é diariamente
explícito e perverso. Basta olhar as estatísticas: negros têm 2,7 vezes mais
chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca,
segundo o Mapa da Violência.
Em
2017, 50,7% das crianças de até 5 anos que morreram por causas evitáveis eram
pardas e pretas, segundo dados do Ministério da Saúde. A taxa de analfabetismo
entre negros é de 9,1% no Brasil, quase três vezes maior que a de brancos
(3,9%), segundo dados do IBGE. Pretos e pardos também são 64,2% da população
desempregada.
É
por isso que a falta de reflexão sobre as relações raciais, segundo Giselle,
serve apenas para a manutenção de privilégios e reprodução de uma estrutura
dominante. "Os dados estatísticos nos apontam as desigualdades e negar
isso é leviano", afirma. Para Universa, a pesquisadora analisa quatro
fatos recentes que repercutiram na imprensa e denunciam por que precisamos
continuar, sim, falando sobre racismo no Brasil.
Caso 1 - ofensas racistas
No
intervalo de duas semanas, três casos muito parecidos de racismo tiveram grande
repercussão na imprensa: a cantora Ludmilla foi chamada de macaca ao vencer a
principal categoria de uma premiação musical; a miss Sabrina Paiva ouviu a
mesma ofensa durante um reality show; e, ao fim do clássico entre Cruzeiro e
Atlético, um segurança também foi chamado de macaco por um torcedor - que, à
imprensa, garantiu não ser racista por frequentar um salão de beleza em que é
atendido por um cabeleireiro negro.
Gisele dos Anjos:
Casos como esses são emblemáticos sobre por que precisamos ainda falar sobre
racismo hoje. Todas as pessoas negras, especialmente as retintas, têm uma lista
de situações de discriminação racial, exatamente como essas, para contar. E
isso demonstra de forma gritante como o racismo impacta todas as nossas
relações, como ele deturpa nossa identidade, como prejudica nossa saúde mental
e afeta nossa autoestima. E para ser alvo de discriminação não precisamos nem
sair de casa. Quando eu ligo a TV ou abro uma revista, eu já estou sendo
confrontada. Mas chamar abertamente uma pessoa negra de macaca é a prova de
como o imaginário social está conformado com a negação da humanidade desse grupo.
Não se chama alguém de macaca porque ele parece com X ou Y, mas porque querem
colocar esse indivíduo em uma condição de subalternidade tamanha a ponto de
dizer que ele não é humano tal qual as demais pessoas são.
Caso 2 - cotas raciais
Pela
primeira vez, negros são maioria nas universidades públicas do Brasil, segundo
pesquisa do IBGE. A mudança é reflexo de políticas públicas, como cotas
raciais, que proporcionaram o acesso da população preta e parda à rede de
ensino. A notícia gerou muitos comentários sobre a política de cotas ter
cumprido seu papel e a possibilidade de encerrá-la.
Gisele dos Anjos: A
gente precisa tratar essa informação com muita cautela porque ela vai tanto
fomentar pessoas negras a darem continuidade a essa luta histórica quanto
incentivar pessoas brancas e mal intencionadas a concluírem que não se precisa
mais de cotas. Esse é só o começo do processo. 61% dos jovens que não concluem
o ensino médio por terem que trabalhar ou procurar trabalho são negros. E onde
estão os estudantes negros dentro das universidades? Os cursos mais renomados,
como Direito, Medicina, Odontologia e Engenharia, ainda são dominados por
pessoas brancas. E quando o jovem negro sai da universidade ele tem as mesmas
oportunidades de trabalho que jovens não-negros? Qual a média salarial quando
chegam ao mercado? Pesquisas mostram que, ainda que tenham o mesmo nível de
escolaridade, homens e mulheres brancas recebem mais. Chega a 45% a diferença
salarial. Nos quadros de funcionários, são os brancos que estão nos cargos
gerenciais. Ou seja, o racismo nos coloca em uma desigualdade de oportunidades.
Caso 3 - descaso na saúde
Neste
mês, uma mulher negra em trabalho de parto teve o bebê na calçada após ter o
atendimento negado em um hospital de Belém. Só depois do parto improvisado é
que mãe e bebê foram levados para dentro do hospital. A maternidade, embora
particular, tem convênio com o município há mais de 20 anos.
Gisele dos Anjos:
Casos como esse mostram o quanto o Brasil é um país extremamente desigual e essa
desigualdade é diretamente pautada pelos marcadores de gênero e raça. Então,
não dá para falar sobre desigualdade sem lembrar qual o grupo mais afetado, que
é, sem dúvida, o de mulheres negras. E nós representamos 28% da população. No
âmbito da mortalidade materna, da violência obstétrica, da negligência médica,
somos as maiores vítimas.
Tem
índices que apontam que as mulheres negras têm três vezes mais chances de
sofrer com a mortalidade materna em casos evitáveis do que qualquer outro grupo
de mulheres. Isso mostra como ainda temos muito forte no imaginário racista
brasileiro que as mulheres negras são mais fortes e suportam a dor, por isso
elas podem esperar um pouco mais pelo atendimento ou tê-lo simplesmente negado.
Esse tipo de situação só evidencia que o caso de Belém não é isolado. Pode
parecer para algumas pessoas que foi um azar a mulher chegar no hospital e ter
tido o atendimento negado, mas se o debate sobre racismo for mais amplo e
pararmos para olhar as estatísticas, ficará claro o racismo institucional e
estigmatização da população negra.
Caso 4 - esportes
No
dia 10 de novembro, os jogadores brasileiros Taison e Dentinho, que atuam no
Shakhtar Donetsk, foram vítimas de racismo no clássico contra o Dínamo de Kiev,
pelo campeonato ucraniano. Quando os brasileiros pegavam na bola, os torcedores
do Dínamo faziam sons imitando macacos. Taison se revoltou em campo, reagiu
mostrando o dedo do meio, chutou a bola para longe e acabou expulso. O atacante
deixou o campo chorando.
Gisele dos Anjos:
Transformar a vítima em opressor é uma das principais lógicas do racismo. Mesmo
sendo o alvo, quando a pessoa negra reage a um ato racista é vista como quem
está atacando. Ninguém problematiza a causa. Não raro, em casos como o dos
jogadores, as vítimas são tidas como incapazes de agir racionalmente,
instáveis, perigosas por se deixarem dominar pelas emoções. Ou seja, partem de
dois estereótipos raciais: o do homem negro violento e da mulher negra raivosa.
Ambos não reconhecem a raiva de uma pessoa negra como uma reação legítima,
ainda que diante de uma violência, e é uma enorme ferramenta de deslegitimação
e silenciamento. Não há como não adoecer frente a tantas agressões e
impossibilidade de ter nossa voz ouvida.
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