 |
Ilustração/ Alarcão. |
As
lendas indígenas brasileiras são marcadas por histórias que tratam da natureza
e da origem das coisas, sempre cercadas de elementos místicos. São contos tão
encantadores que até mesmo escritores como Clarice Lispector, Câmara Cascudo e
Walcyr Carrasco já se debruçaram sobre eles. Aqui reunimos três fábulas
indígenas que trazem essa visão de mundo – e que certamente vão levar muita
conversa para dentro da sala de aula. Confira:
O nascimento do mundo
Lenda
maori recontada por Maria de la Luz
No
início só havia Kore, a energia, vagando na escuridão do espaço infinito.
Então, veio a luz e surgiram Ranginui, o Pai Céu, e Papatuanuku, a Mãe Terra.
Rangi e Papa tiveram muitos filhos: Tangaroa, deus das águas; Tane, deus das
florestas; Tawhirmatea, deus dos ventos; Tumatauenga, deus da guerra, que deu
origem aos seres humanos; e Uru, que não era deus de nada.
Rangi
e Papa viviam num perpétuo abraço de amantes. Acontece que esse enlace
apaixonado não deixava a luz penetrar entre seus corpos, onde ficavam os
filhos. Obrigados a viver apertados e sempre no escuro, os jovens resolveram
dar um basta na situação.
–
Vamos matar Rangi e Papa e ficar livres deles! – disse Tumatauenga.
–
Não! – disse Tane. – Vamos apenas separálos, empurrando um para cima e deixando
o outro embaixo. Assim sobrará espaço para nós e a luz vai poder entrar.
Todos
acharam a ideia excelente.
Tane,
que era o mais forte de todos, firmou bem os pés em Papa, encaixou os ombros no
corpo de Rangi e o empurrou para cima com toda a força.
Os
pais se separaram, mas – oh, decepção! – só um pouco de luz chegou ao mundo dos
filhos. Além disso, Rangi e Papa estavam nus e, longe um do outro, sentiam
muito frio.
Comovido
com a situação, Tane abrigou o pai com o negro manto da noite.
Para
a mãe fez um vestido com as mais verdes e tenras folhas e as flores mais
coloridas. Em torno dela fez ondular as águas azuis dos mares e rios de
Tangaroa. Os ventos de Tawhirmatea sopravam suavemente seus cabelos. Os filhos
de Tumatauenga já começavam a povoar o mundo recém-criado.
Olhando
lá de cima os lindos trajes da mulher e sua participação no novo mundo,
Ranginui ficou doente de inveja. Sua dor cobriu o mundo com uma névoa úmida e
cinzenta.
Refugiado
em uma dobra do manto paterno, Uru chorava e chorava por não ter sido útil em
nada aos pais e aos irmãos. Para que ninguém percebesse suas lágrimas,
escondia-as em cestas e mais cestas. Mas Tane tudo percebera:
-Uru,
meu irmão, preciso de sua ajuda!
–
Nada tenho para dar, você bem sabe!
–
Ora, Uru, você tem tantas cestas…
Surpreso
e com medo de ser descoberto em sua fraqueza, Uru abaixou a cabeça: – Não tem
nada dentro delas, irmão.
Tane
avançou e destampou uma das cestas. Dela voaram luzes faiscantes e risonhas
para todos os lados. As lágrimas de Uru haviam se transformado em crianças-luz
(para nós, estrelas)!
–
Uru, será que você podia me ceder duas de suas cestas? Seus filhos poderiam
enfeitar e iluminar a morada de nosso pai… Uru concordou. As duas cestas foram
passadas para Te Waka o Tamareriti, uma canoa muito especial. Tane conduziu a
canoa até o céu, espalhando sobre o manto de Rangi milhares de estrelinhas que
riam e piscavam umas para as outras o tempo todo.
Quando
Tane ia pegar a segunda cesta, esta tombou e se abriu, deixando as estrelas se
espalharem numa grande faixa chamada Ikaroa, que cruzou o céu de lado a lado
(para nós, a Via Láctea). Tane deixou Ikaroa e Waka o Tamareriti (que é a
“cauda” da nossa constelação do Escorpião) no espaço celeste, onde se tornaram
os guardiões das estrelas.
A dança do arco-íris
Lenda
indígena recontada por João Anzanello Carrascoza
Há
muito e muito tempo, vivia sobre uma planície de nuvens uma tribo muito feliz.
Como não havia solo para plantar, só um emaranhado de fios branquinhos e fofos
como algodão-doce, as pessoas se alimentavam da carne de aves abatidas com
flechas, que faziam amarrando em feixe uma porção dos fios que formavam o chão.
De vez em quando, o chão dava umas sacudidelas, a planície inteira corcoveava e
diminuía de tamanho, como se alguém abocanhasse parte dela.
Certa
vez, tentando alvejar uma ave, um caçador errou a pontaria e a flecha se cravou
no chão. Ao arrancá-la, ele viu que se abrira uma fenda, através da qual pôde
ver que lá embaixo havia outro mundo.
Espantado,
o caçador tampou o buraco e foi embora. Não contou sua descoberta a ninguém.
Na
manhã seguinte, voltou ao local da passagem, trançou uma longa corda com os
fios do chão e desceu até o outro mundo. Foi parar no meio de uma aldeia onde
uma linda índia lhe deu as boas-vindas, tão surpresa em vê-lo descer do céu
quanto ele de encontrar criatura tão bela e amável. Conversaram longo tempo e o
caçador soube que a região onde ele vivia era conhecida por ela e seu povo como
“o mundo das nuvens”, formado pelas águas que evaporavam dos rios, lagos e
oceanos da terra. As águas caíam de volta como uma cortina líquida, que eles
chamavam de chuva. “Vai ver, é por isso que o chão lá de cima treme e encolhe”,
ele pensou. Ao fim da tarde, o caçador despediu-se da moça, agarrou-se à corda
e subiu de volta para casa. Dali em diante, todos os dias ele escapava para
encontrar-se com a jovem. Ela descreveu
para
ele os animais ferozes que havia lá embaixo. Ele disse a ela que lá no alto as
coisas materiais não tinham valor nenhum.
Um
dia, a jovem deu ao caçador um cristal que havia achado perto de uma cachoeira.
E pediu para visitar o mundo dele. O rapaz a ajudou a subir pela corda. Mal
tinham chegado lá nas alturas, descobriram que haviam sido seguidos pelos
parentes dela, curiosos para ver como se vivia tão perto do céu.
Foram
todos recebidos com uma grande festa, que selou a amizade entre as duas nações.
A partir de então, começou um grande sobe-e-desce entre céu e terra. A corda
não resistiu a tanto trânsito e se partiu. Uma larga escada foi então construída
e o movimento se tornou ainda mais intenso. O povo lá de baixo, indo a toda a
hora divertir-se nas nuvens, deixou de lavrar a terra e de cuidar do gado. Os
habitantes lá de cima pararam de caçar pássaros e começaram a se apegar às
coisas que as pessoas de baixo lhes levavam de presente ou que eles mesmos
desciam para buscar.
Vendo
a desarmonia instalar-se entre sua gente, o caçador destruiu a escada e fechou
a passagem entre os dois mundos. Aos poucos, as coisas foram voltando ao
normal, tanto na terra como nas nuvens. Mas a jovem índia, que ficara lá em
cima com seu amado, tinha saudade de sua família e de seu mundo Sem poder
vê-los, começou a ficar cada vez mais triste. Aborrecido, o caçador fazia tudo
para alegrá-la. Só não concordava em reabrir a comunicação entre os dois
mundos: o sobe-e-desce recomeçaria e a sobrevivência de todos estaria ameaçada.
Certa
tarde, o caçador brincava com o cristal que ganhara da mulher. As nuvens
começaram a sacudir sob seus pés, sinal de que lá embaixo estava chovendo. De
repente, um raio de sol passou pelo cristal e se abriu num maravilhoso
arco-íris que ligava o céu e a terra. Trocando o cristal de uma mão para outra,
o rapaz viu que o arco-íris mudava de lugar.
–
Iuupii! – gritou ele. – Descobri a solução para meus problemas!
Daquele
dia em diante, quando aparecia o sol depois da chuva, sua jovem mulher
escorregava pelo arco-íris abaixo e ia matar a saudade de sua gente. Se alguém
lá de baixo se metia a querer visitar o mundo das nuvens, o caçador mudava a
posição do cristal e o arco-íris saltava para outro lado. Até hoje, ele só
permite a subida de sua amada. Que sempre volta, feliz, para seus braços.
O céu ameaça a terra
Lenda
contada por Betty Mindlin
Meninos
e meninas do povo ikolen-gavião, de Rondônia, sentam-se à noite ao redor da
fogueira e olham o céu estrelado. Estão maravilhados, mas têm medo: um velho
pajé acaba de contar como, antigamente, o céu quase esmagou a Terra.
Era
muito antes dos avós dos avós dos meninos, era no começo dos tempos. A humanidade
esteve por um fio: podia ser o fim do mundo. Nessa época, o céu ficava muito
longe da Terra, mal dava para ver seu azul.
Um
dia, ouviu-se trovejar, com estrondo ensurdecedor. O céu começou a tremer e,
bem devagarinho, foi caindo, caindo. Homens, mulheres e crianças mal conseguiam
ficar em pé e fugiam apavorados para debaixo das árvores ou para dentro de
tocas. Só coqueiros e mamoeiros seguravam o céu, servindo de esteios,
impedindo-o de colar-se à Terra. Talvez as pessoas, apesar do medo, estivessem experimentando
tocar o céu com as mãos…
Nisso,
um menino de 5 anos pegou algumas penas de nambu, “mawir” na língua tupi-mondé
dos índios ikolens, e fez flechas. Crianças dos ikolens não podem comer essa
espécie de nambu, senão ficam aleijadas. Era um nambu redondinho, como a
abóbada celeste.
O
céu era duríssimo, mas o menino esperto atirou suas flechas adornadas com
plumas de mawir. Espanto e alívio! A cada flechada do garotinho, o céu subia um
bom pedaço. Foram três, até o céu ficar como é hoje.
Em
muitos outros povos indígenas, do Brasil e do mundo, há narrativas parecidas ou
diferentes sobre o mesmo assunto. Fazem-nos pensar por que céu e Terra estão
separados agora… O povo tupari, de Rondônia, por exemplo, conta que era a
árvore do amendoim que segurava o céu. (Bem antigamente, dizem, o amendoim
crescia em árvore, em vez de ser planta rasteira.)
Antes
de o céu subir para bem longe, os ikolens podiam deixar a Terra e ir morar no
alto. Iam sempre que ficavam aborrecidos com alguém, ou brigavam entre si, e
subiam por uma escada de cipó. Gorá, o criador da humanidade, cansou de ver
tanta gente indo embora e cortou o cipó, para a Terra não se esvaziar demais.
__________
Com informações da Nova Escola.