Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil, no evento “Mulheres Notáveis do Brasil”, em São Paulo. (Foto: Mathilde Missioneiro/Folhapress) |
Tenho
lido a conta-gotas o livro “No Enxame –
Perspectivas do Digital”, do filósofo Byung-Chul Han, um crítico mordaz da
sociedade de consumo. A obra afirma que vivemos tempos de “indivíduos empoderados”.
São
pessoas que confiam profundamente em suas crenças e que, solitárias, se
expressam com autoridade pelas redes sociais. Falam todas juntas sem se ouvir,
num vozerio que lembra um enxame. Um monte de gente. Mas são um monte de “uns”.
Antes, diz o autor, as pessoas eram capazes de defender sonhos coletivos. Eram
multidões que falavam em uníssono, embora com divergências. Existia a
capacidade de encontrar um terreno comum, um projeto, que mudava o jogo da
política. Eram indivíduos com histórias próprias, mas capazes de fazer recuar
seus desejos individuais em favor de um projeto coletivo.
Hoje,
os muitos “uns” vão para as ruas, mas parecem sozinhos. Haiti, França, Espanha,
Colômbia, Hong Kong, Bolívia, Irã e outros —em todos esses lugares, as pessoas
protestam para mostrar que estão desapontadas e zangadas com um sistema
político que, elas acreditam, não foi capaz de melhorar suas vidas.
Infelizmente, na maior parte dos casos, a resposta das autoridades responsáveis
tem sido violência policial e perseguições, violando o direito de livre
manifestação.
O
que as notícias que nos chegam desses lugares contam? Elas sugerem que ir para
as ruas denunciar e protestar não tem sido suficiente para mudar as coisas que
queremos que sejam mudadas. Faltaria a esse enxame descobrir e enunciar o mundo
que se quer construir. Falta o sonho coletivo. Uma nova utopia.
O
sonho da minha geração era construir uma sociedade de direitos. Por muito
tempo, acreditamos que o Brasil avançava nessa direção. Acreditamos na
Declaração Universal do Direitos Humanos —que, em 2019, completou 71 anos. Era
uma aposta que parecia ganha quando, em 1988, foi promulgada a Constituição
Cidadã. Apostamos que o Brasil poderia escolher um novo rumo institucional.
Confiamos que essa escolha teria reflexos na vida cotidiana. E chegamos até
aqui.
Hoje,
o desânimo nos faz crer que fomos derrotados nessas apostas, apesar do muito e
importante que se construiu. No começo de dezembro, nove pessoas morreram
durante uma ação policial na favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo.
O
massacre aconteceu enquanto aqueles jovens, muitos recém-chegados à maioridade,
se divertiam em um baile funk. O caso engrossou a lista de graves violações de
direitos humanos cometidas pela polícia brasileira —uma das mais letais do
mundo— e uniu-se à sequência ampla de violências estruturais que ocorrem no
Brasil desde a sua fundação. A sociedade de direitos com a qual sonhávamos em
1988 ainda não foi concretizada.
A
derrocada dessa nossa utopia, no entanto, é anterior a 2019. O Brasil avançou
nos últimos 30 anos, não podemos negar. Mesmo assim, uma parcela ampla da
população continuou sem acesso a direitos básicos.
O
cotidiano de tantos e tantas seguiu contrariando a aposta. Nunca se encarcerou
tanto no país quanto nas últimas três décadas. O Brasil tem a terceira maior
população carcerária do mundo, uma multidão de pessoas pobres e negras atrás
das grades, cerca de 40% delas sem condenação. Nas favelas, crianças são
mortas. Nas aldeias, indígenas são assassinados. Para a maioria dos
brasileiros, “direitos humanos” não passam de palavras.
As
promessas não cumpridas tiveram suas consequências. As pessoas se zangaram.
Tomaram decisões baseadas na raiva e no medo. O Brasil elegeu um presidente
autoritário, que se opõe abertamente à sociedade civil organizada e aos
direitos humanos.
O
enxame, no entanto, está na rua. Quer ser ouvido. Chama para si uma
responsabilidade. Quer operar mudanças. Talvez, o que falte é a utopia que
poderá unir o enxame. É preciso recolocá-la. Qual é ela? Ainda não sabemos.
Podem ser muitas.
A
utopia de Greta Thunberg, seu projeto para o coletivo, é deter o aquecimento
global. A de Ailton Krenak é adiar o fim do mundo. Qual utopia vai nos fazer
levantar da cama amanhã? O enxame na rua cobra resposta. Precisamos dialogar
para descobrir um caminho. Porque o fim do mundo está aqui perto. A utopia?
Ainda precisamos construir.
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Com
informações da Folha de São Paulo e Geledés.
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