A mestra Edite, natural de Pernambuco, aprendeu tudo sobre o coco de roça no Ceará. (FOTO/ Fabiane de Paula). |
Edite
teve pressa para chegar ao mundo. Não esperou nem a mãe voltar do trabalho na
roça para nascer. Agricultora que era, Dona Salvelina começou a sentir os
sinais da novidade enquanto apanhava fava. Sozinha, ela deitou no chão de terra
amarelinha da cidade de Bom Conselho, no agreste pernambucano, onde foi
fortaleza até a criança, que mais tarde viria a se tornar mestra da cultura no
Ceará, aparecer.
O
primeiro a encontrar mãe e rebento foi o pai, José, que chegou logo após o
parto e, surpreso com a situação, correu para pedir ajuda à sogra Vicença. No
bolso, a avó de Edite carregava um chifre de bode cheio de algodão, além de uma
faquinha amolada com a qual cortou o umbigo da bebê. "Eu tive foi sorte que não morri", diz a neta sobre aquele 6 de
agosto de 1940.
Concluída
a pequena cirurgia ao pé da serra, dona Vicença pegou a barra da saia para
fazer um balaio e, com os retalhos de sua roupa e da filha Salvelina, envolveu
a recém-nascida para finalmente levá-la. As expectativas para a criança
"vingar" não eram muitas.
"E a bichinha vai morrer? E morre, não morre. Minha vó rezava muito, aprendi com ela e hoje rezo nas crianças que vão lá em casa. O que cura é a fé da pessoa que pede. Só sei que me curaram. No fim, foi simbora minha vó, minha mãe, meu pai, ficou só eu... É linda essa história, né?", conta Edite, hoje aos 79 anos.
A
pernambucana, formada cearense após cinco décadas vivendo aqui, na cidade do
Crato, herdou a agonia daqueles dias e ainda mantém um ritmo apressado em seu
cotidiano. Até para conceder entrevista, ela cronometra o tempo. "Já ligou
o gravador? Melhor começar logo a perguntar, antes que o pessoal me
chame", disse, apressada, num intervalo de atividades do XIII Encontro
Mestres do Mundo, em Sobral.
Dona
Edite foi até lá para receber dois diplomas: o de Mestre da Cultura pela Secult
e o de Notório Saber pela Universidade Estadual do Ceará, ambos como um
reconhecimento à tradição do coco de roça, expressão que desenvolve há 40 anos
no bairro Batateiras.
"Essa coisa do coco foi toda aqui. Em
Pernambuco tinha, mas eu não conhecia, não sabia nada de coco lá. Aqui o grupo
foi criado em 1979, dez anos após a minha chegada. Não tinha ninguém da minha
família que dançava. Eles sabiam as músicas, mas não sabiam dançar. Nem eu",
contextualiza. "Mas o coco foi um
dos filhos que eu não senti a dor pra nascer, mas senti o amor de criar",
completa.
TRADIÇÃO
Quando
começou a dar aulas pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), Edite
conheceu Antônia Selma Gomes. A amiga sabia todas as toeiras (canções) e,
juntas, as duas cativaram os estudantes para formar um grupo e realizar algumas
apresentações pela cidade. No primeiro ano, dançaram no Dia do Folclore, na
ExpoCrato e na abertura da festa de Nossa Senhora da Penha. À pernambucana
cabia a parte de coordenação, visto que ainda estava engatinhando na atividade
artística.
Anos
depois, com o fim do Mobral e a morte precoce de Selma em um acidente, Edite
teve de conquistar a mãe da colega para cantar no grupo, além de levar a
cultura do coco para a comunidade em que vivia. Lá, nascia para o mundo as
Agentes do Coco - Mulheres da Batateira, inicialmente constituído por 17
participantes, número mantido até hoje, com algumas substituições.
"Aprendi tudo ouvindo e ajudando. Hoje eu já
tô é dançando, cantando as toeiras sozinha", afirma, ao tempo que
emenda uma das canções de roça: "Tá
no pendão do milho, no pendão do milho, no pendão do milho, passarim não canta
mais". A dança pode ser em roda ou em pares, e a pisada é acompanhada
de instrumentos como triângulo, zabumba e pandeiro. Este último, aliás, é um
dos que Edite não solta.
CONQUISTAS
O
trabalho que a mestra realizava com o coco se expandia à medida que ela se
integrava a outras funções na comunidade. "Me chamavam de representante do bairro, porque eu tava cuidando do povo
mais pobre. Depois eu fui ser uma presidente da sociedade, uma professora numa
escolinha maior do que o Mobral, fui secretária do Sindicato do Trabalhador
Rural e também de outra entidade chamada Trabalhadores Orgânicos",
recorda.
O
engajamento foi importante para que ela se consolidasse como referência entre
as mulheres do coco também. Hoje, ela olha para as companheiras, a maioria em
sua faixa etária, como se fossem suas filhas. "Quando digo 'vamo fazer isso', todo mundo faz. Quando digo 'não vamos fazer', ninguém faz",
orgulha-se.
Receber
o reconhecimento pela Secretaria de Cultura do Estado e pela Universidade
Estadual do Ceará são conquistas celebradas.
"Esse título é tudo na minha vida. É meu saber, a prova do meu trabalho, e também um dinheirinho que a gente recebe todo mês. A professora do colégio do meu bairro já disse que se eu recebesse esse diploma - que vale que nem o diploma de um doutor, é uma formatura, posso me chamar até Doutora Edite - eu ia ficar contratada pelo Município para dar aula na escola dela, onde ela ensina", comemora.
Ainda
que as pernas não aguentem mais dançar por tanto tempo, a mestra cultiva um
sonho da tradição: reformar o seu terreiro. "Eu queria agora era levantar umas colunas e fazer uma coberta por cima".
Lá, ela pretende abraçar diariamente os filhos, netos e bisnetos de sangue, e
também aqueles de coração. Atendido esse desejo, o coco que aprendeu no Ceará e
a reza que trouxe de Pernambuco guiarão as terreiradas sem fim do bairro
Batateira.
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Com informações
do Diário do Nordeste.
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