Frei Betto. (FOTO/ Reprodução). |
Neste
Natal, não quero o Papai Noel das promoções comerciais, das ceias
pantagruélicas, dos presentes caros embrulhados em afetos raros. Quero o Menino
Jesus nascido no coração manjedoura, esperança acesa num pasto de Belém, Maria
a cantar que os abastados serão despedidos de mãos vazias e os pobres saciados
de bens.
Não
quero o Papai Noel das lojas enfeitadas, do celofane brilhante das cestas de
produtos importados, das garrafas em que os néscios afogam tristezas rotuladas
de alegrias. Quero o Menino palestino em busca de uma terra onde nascer e
viver, o Menino judeu arauto da paz na Terra aos homens e mulheres de boa
vontade, o Menino poupado da estupidez das guerras.
Neste
Natal dispenso abraços protocolares e sorrisos sob medida, sentimentos
retóricos e emoções que encobrem a aridez do coração. Quero o amor sem dor, a
oração só louvor, a fé comungada no sabor de justiça.
Não
quero presentes dos ausentes, a litúrgica reverência às mercadorias, a romaria
pagã aos templos consumistas dos shopping-centers. Quero o pão na boca da
criança faminta, a paz que se alarga dos espíritos atribulados aos campos de
batalha, o gozo de contemplar o Invisível.
Neste
Natal, não quero essa pavorosa troca de produtos entre mãos que não se abrem em
solidariedade, compaixão e carinho despudorado. Quero o Menino solto no mais
íntimo de mim mesmo, semeando ternura em todos os canteiros em que as pedras
sufocam as flores.
Não
quero esse ruído urbano que esmaga a alma, os ouvidos aprisionados aos
telefones, o olfato condenado por odores insalubres, a boca em cascatas de
palavras inúteis, despidas de verdade e sentido. Quero o silêncio indevassável
de meu próprio mistério, o canto harmônico da natureza, a mão que se estende
para que o outro se erga, a fraternura dos amigos abençoados pela cumplicidade
perene.
Neste
Natal, não me interessam as oscilações dos índices financeiros, as promessas
viciadas dos políticos, os cartões impressos a granel, cheios de colorido e
vazios de originalidade. Quero as evocações mais ternas: o cheiro do café coado
de manhã por minha avó, o som do sino da matriz, o rádio Philco exalando
sabonete Eucalol enquanto a babá me via brincar no quintal.
Não
quero as amarguras familiares que se guardam como poeira nas dobras da alma, as
invejas que me alienam de mim mesmo, as ambições que me tornam tristes como as
galinhas, que têm asas e não voam. Quero os joelhos dobrados no átrio da
igreja, a cabeça curvada ao Transcendente, a perplexidade de José diante da
gravidez inusitada de Maria.
Neste
Natal, não irei às ruas febris dos mercadores de bens finitos, nem disfarçarei
em algodão a neve que se amontoa em meus dessentimentos ou prenderei falsas
sinetas no frontispício de minha indiferença. Quero o segredar dos anjos, a
alegria desdentada de um pobre reconhecido em seu direito, a euforia imaculada
de um bebê acolhido em braços amados.
Não
viajarei para longe de mim mesmo, à procura de uma terra na qual eu próprio me
sinta estrangeiro, falando um idioma cujo significado me escapa. Mergulharei no
mais profundo de minha subjetividade, lá onde as palavras se calam e a voz de
Deus se faz ouvir como apelo e desafio.
Neste
Natal, não entupirei o meu verão de castanhas e nozes, panetones e carnes
gordas. Nem deixarei o que me resta de sensatez resvalar pelo gargalo de uma
bebida destilada. Porei sobre a mesa Deus fatiado em pão, a entornar de vinho
cálices alados, e convidarei à festa os famintos de bem-aventuranças.
Não
rezarei pela bíblia dos que professam o medo, nem acenderei velas aos guardiães
do Inferno. Não serei o alpinista de cobiças desmedidas, nem o coveiro de
utopias libertárias. Desfraldarei sobre o telhado a bandeira de sonhos
inconfessos e semearei estrelas no jardim de meus encantos, lá onde cultivo
essa doce paixão que me faz sofrer de saudades do que é terno.
Neste
Natal, farei de minhas gravatas uma imensa corda para enforcar o cinismo das
convenções sociais e descerei um por um os degraus dos podres poderes, até
ingressar nos subterrâneos repletos de luz dos servos da esperança. Não
sonegarei sentimentos e encantos.
Andarei
nu pelas ruas para que todos vejam como o tempo enrugou delicadamente a minha
pele, imprimiu flacidez a esses membros prenhes de história e cobriu-me de
pêlos alvos como o frescor da velhice coerente.
Não
aceitarei os brindes de mãos que não se tocam, nem irei às ceias dos que se
devoram. Não comerei do bolo que empanturra corações e mentes, nem deixarei que
a aurora do Menino me surpreenda empanzinado de sono.
Alimentado
como um pássaro, sairei na noite feliz guiado pela estrela dos magos; dançarei
aleluias entre as galáxias da Via Láctea e, pela manhã, em cada raio de sol
injetarei poesia para que todos acordem inebriados como se fossem borboletas
livres do casulo.
Neste
Natal, não direi adeus ao século que finda e ao milênio que se encerra, nos
quais recebi a vida, a fé e mais perguntas que respostas. Pisarei cuidadoso
entre mortos inocentes e alentos frustrados, e haverei de conferir no monitor
eletrônico quantos foram os dissabores disseminados pela fera disfarçada de
humano.
De
mãos dadas com o Menino, deixarei que as águas lavem o avesso de minha pele e,
em seguida, caminharemos silentes rumo ao novo século e ao terceiro milênio. E
eu estarei com os olhos fixos no Menino para que seu verbo se faça carne em meu
coração de pedra, cuidando para que ele cresça despregado da cruz, exaltado
pela vitória inelutável da Ressurreição.
Frei
Betto é escritor, autor de "A Obra do Artista uma visão holística do
Universo" (Ática), entre outros livros.
________________________________
Com
informações do Correio da Cidadania.
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