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Mapa colhido junto ao livro "Miliagre em Juazeiro ", pg. 29, de Ralph Della Cava. |
Por Karla Alves, em sua coluna no Blog
Foi neste lugar, povoado cuja sombra dos pés de Juá no centro do vale do Cariri servia de descanso para viajantes que comercializavam nas feiras das prósperas cidades ao redor, onde o cruzamento de um homem branco com uma mulher Preta provocou um "evento explosivo" (Braudel) capaz de redefinir o curso da história local. Neste lugar, um ano após a abolição da escravidão no Brasil (1889), uma mulher Preta chamada Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo (1862-1914), filha de Ana Josefa do Sacramento e de Antônio da Silva Araújo, seria protagonista de um milagre que veio a santificar o homem branco, padre e catequizador local, que havia lhe ofertado a hóstia em comunhão transformada em sangue na boca da beata Maria Magdalena, conhecida como beata Maria de Araújo.
O homem
branco missionário, santo popular da cidade de Juazeiro do Norte, é o padre
Cicero Romão Batista. Chegou ao povoado, que na época era um distrito
pertencente à cidade do Crato, em 1872 para rezar uma missa a pedido de
cidadãos ilustres (leia-se ricos e poderosos fazendeiros) do lugarejo que
carecia de um padre (catequizador/agente hegemônico) na capela local para
estabelecer ordem no povoado cujos moradores:
"Eram dados à bebida e ao samba que, naquela
época, se considerava sensual e degenerado, por ser ORIGINÁRIO DOS ESCRAVOS. Há
até mesmo uma insinuação de que várias prostitutas se tinham estabelecido, em
caráter permanente, no POVOADO-ENCRUZILHADA. Padre Cícero NÃO ERA CONTRÁRIO À
PUNIÇÃO PÚBLICA DOS PECADORES. Proibiu as danças, fez com que os homens
parassem de beber e obrigou as prostitutas a confessarem seus pecados, fazendo
PENITÊNCIA PÚBLICA e emendando suas
vidas" (Ralph Della Cava,
Milagre em Joaseiro, 2° edição, pág. 42).
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Karla Alves. (FOTO/ Reprodução/Facebook) |
Assim,
o padre "acabava pessoalmente com
folguedos e sambas, pois acreditava que os BATUQUES HERDADOS DOS NEGROS deviam
ter parte com Satanás. Até os mais ardorosos entusiastas de Cícero Romão
Batista jamais esconderam que nem só de sermões vivia o padre recém-chegado.
Para fazer valer sua autoridade de zelador das almas e dos bons costumes, não
hesitava em brandir o temido cajado em direção aos pecadores mais renitentes"
(Lira Neto, 2013, pág. 207).
Foi
neste cenário que em 1889 a beata Maria de Araújo protagonizou o milagre da
hóstia que santificou popularmente o padre enquanto a manteve enclausurada por
20 anos até sua morte, em 17 de janeiro de 1914. Acusada pela igreja de
embusteira, feiticeira e até de cacodemoníaca, enquanto mulher Preta
analfabeta, Maria de Araújo foi submetida à tortura, ao ostracismo e privada de
sua liberdade até a morte.
Seu
corpo foi sepultado no cemitério da capela Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de
onde seria mais tarde (1930) roubado sem que até hoje ninguém saiba o
paradeiro. Nesta mesma capela o corpo do padre encontra-se sepultado no altar.
Até
hoje ninguém foi responsabilizado pelos crimes cometidos contra a beata Maria
de Araújo durante sua vida e após sua morte. E foi essa a estrutura de
violência contra uma mulher Preta que ergueu a cidade de Juazeiro do Norte, a
cidade onde eu nasci.
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Karla Alves é historiadora pela Universidade Regional do Cariri (URCA), integrante do Grupo de Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa e colunista do Blog Negro Nicolau.
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