Sobre os sentidos de liberdade: entre a palavra e o ato

 

Sobre os sentidos de liberdade: entre a palavra e o ato. (FOTO/ Reprodução).

Por Karla Alves, em sua coluna no Blog

Seu Zezinho, tem aqui um que serve para o que o senhor quer: é o Chico da Matilde".

Essa frase foi dita pelo preto liberto José Luís Napoleão ao final da primeira greve dos Jangadeiros iniciada em 27 de janeiro de 1881, paralização executada pelos Jangadeiros liderados por José Luís Napoleão e sua esposa Preta Tia Simoa responsável por mobilizar a população local dando impulso à greve. Ao final, quando procurado por José do Amaral (membro da Sociedade Cearense Libertadora) para liderar a campanha abolicionista na zona praieira, José Luiz Napoleão se negou a participar do processo abolicionista como membro de uma associação formada por brancos de classe média que, movidos por interesses econômicos, empreendiam a campanha abolicionista através de suas associações. Neste mesmo momento em que se nega ele apresenta outro homem preto para o serviço: o Chico da Matilde que mais tarde seria conhecido na história como o herói negro Dragão do Mar.

Essa passagem encontra-se no livro "Abolição no Ceará" (1956) do historiador Raimundo Girão, mais precisamente no capítulo que narra a primeira greve dos Jangadeiros iniciada em 27 DE JANEIRO DE 1881 por trabalhadores negros que, a partir deste episódio, se negaram a transportar seus iguais até o navio negreiro ancorado no mar.

O referido fato histórico definiu o rumo da abolição no Ceará que se consolidaria em março de 1884. E o enfoque pelo qual início esta apresentação me faz recordar um poema de Solano Trindade intitulado "Negros", onde o poeta diz:

 

Negros que escravizam

e vendem negros na África

não são meus irmãos

 

negros senhores na América

a serviço do capital

não são meus irmãos

 

negros opressores

em qualquer parte do mundo

não são meus irmãos

 

Só os negros oprimidos

escravizados

em luta por liberdade

são meus irmãos

 

Para estes tenho um poema

grande como o Nilo.


Relaciono este belíssimo e preciso poema ao episódio da greve dos Jangadeiros. Primeiramente pela visão de liberdade que identifica e movimenta a irmandade negra, neste caso, formada pelos trabalhadores (Jangadeiros) que tinham como líder o preto liberto José Luiz Napoleão. Segundo, pela composição específica do significado de uma "irmandade negra", que ressoa nas entrelinhas do poema. 

Karla Alves. (FOTO/ Arquivo Pessoal).

A visão de liberdade aí se define pelos graus de sensibilidade alcançados através da experiência de extrema opressão resultante da escravidão. Deste modo, um preto liberto como José Luiz Napoleão soube enxergar a armadilha do sistema naquela encruzilhada histórica, armadilha que poderia vir a separar uma irmandade firmada em torno da luta por liberdade. Mas, como bem demonstra esta liderança negra com sua própria história de vida, essas mesmas armadilhas podem servir (e serviram) para reafirmar e fortalecer a conduta no centro de si mesmo em movimento sincronizado em volta do outro, tanto daquele homem branco que oferece a fama de um "lugar de fala" na sociedade cearense libertadora em troca de serviços, quanto em volta daquele outro homem preto que é visto como mais adequado ao lugar oferecido na história.

Essas são imagens de si que a sensibilidade além da superfície revela diante da mesma visão, como consequência de experiências de vida para quem é preto e não preto, bem como para um Preto que passou pela triste experiência da escravidão e está ali diante de outro Preto que não teve esta mesma experiência. Essa sensibilidade define a conduta do homem preto liberto que se negou a lutar contra o sistema escravista ao lado daqueles que estavam a serviço do capital e compõe em meus ouvidos uma canção de liberdade, ao invés de uma canção de redenção. Esta canção, assim como o poema "Negros" de Solano Trindade, fala sobre DIGNIDADE a toda pessoa preta de hoje.

E é por este motivo que o grito de liberdade do povo Preto cearense proferido em 27 de janeiro de 1881 afirmando que a partir dali, naquele porto, diante do mar, não se embarcavam mais pretos para serem escravizados no Brasil, não é uma história contada nos institutos educacionais brasileiros pois, como diria a ativista e ex Pantera Negra Assata Shakur, “ninguém vai te dar a educação que você precisa para derrotá-los. Ninguém vai lhe ensinar sua verdadeira história, seus verdadeiros heróis, se eles sabem que esse conhecimento irá lhe libertar.” São distintos significados para uma mesma palavra que se definem pelo ato, pela experiência de vidas.

Diante da palavra, o significado é definido pelo olhar. As palavras estão por aí soltas como sementes, mas a mente precisa estar livre para que os olhos colham estas palavras e as frutifiquem. Mentes libertas, visões libertas e, novamente, palavras de liberdade serão semeadas em nossa história. De nada adianta, irmão, se deixar conduzir pelo desejo de ser parte do sistema que escraviza tua mente e controla o teu corpo. A educação necessária para firmar nossa conduta de forma digna para a libertação está no modo de vida daqueles e daquelas que se davam as mãos primeiramente dentro de si. Então o movimento sincronizado em volta do outro se dá naturalmente. Aqui palavra e ato são uma coisa só. Pretos assimilados pelo sistema ou, como diria Lélia Gonzáles, pretos que se identificam com o seu opressor (e com ele contribui), possuem um imenso abismo entre sua própria mente e corpo, abismo este instituído pelo sistema opressor.

A ponte sobre esse abismo começa a ser construída a partir do momento em que nos damos as mãos recriando o sentido de coletividade, passando a compreender-se como sujeito coletivo que, como disse Chico Science, "sente a necessidade de lutar". Esse novo caminho se abre a partir da auto definição, desprezando aquela imagem de si fornecida pelo outro. É caminho de volta pra casa percorrido com os olhos bem abertos, onde enxergamos as armadilhas como bem nos alerta Chico Science quando na mesma canção nos diz que "o orgulho, a arrogância e a glória enchem a imaginação de domínio".

E você, já escolheu seu lado, irmão?

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Karla Alves é historiadora pela Universidade Regional do Cariri (URCA), integrante do Grupo de Mulheres Negras do Cariri Pretas Simoa e colunista do Blog Negro Nicolau

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