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(FOTO/ Reprodução/ Geledés). |
Artigo
na Folha de São Paulo informa que o Brasil sustentou luxo de escravocratas
holandeses, cujos retratos são mostrados em exposição na Holanda. De modo mais
específico, aparecem retratos do casal de senhores de escravos no Recife,
Marten Soolmans e Oopjen Coppit, pintados por Rembrandt. Mais adiante, continua
o texto:
“Com
a exposição, o museu faz um movimento no sentido de restaurar a verdade
histórica. Como diz Tacco Dibbits, diretor-geral do museu, ‘a escravatura não é
um conceito abstrato. Durante mais de 250 anos, foi parte integral de nossa
história, que tem de ser estudada e aprofundada se quisermos ter uma imagem
mais completa de nosso passado e uma melhor compreensão da sociedade de hoje”.”
Isso
na Holanda! E o que dizer do Brasil? Por favor, não tirem as crianças da sala,
porque elas precisam aprender.
Para
a nossa própria história, e do Nordeste do açúcar em especial, para o que não
se destaca em Gilberto Freyre, para o que em Gilberto é prosa encantatória, a
realidade de escravos assassinados, enquanto a rotina do engenho seguia, tudo
isso é tão Brasil, amigos. Hoje mesmo, aqui na minha cidade, em qualquer cidade
brasileira, jovens são amarrados em postes, numa recuperação dos velhos
pelourinhos. Os novos escravos são espancados, enquanto comunicadores na
televisão aprovam e ganham dinheiro e fama por açular a massa para o
linchamento de marginais.
E
como é Brasil, até hoje, a tortura em presos nas delegacias de polícia, nos
presídios, como se fossem escravos sob o chicote. É ilustrativa a sobrevivência
física e até o elogio, no governo Bolsonaro, a torturadores da ditadura
brasileira. Se fosse representada ao
nível do real, do histórico, a tortura dos costumes brasileiros daria vômitos
pela agonia da dor, ainda que apenas representada. Porque a realidade é ainda mais
cruel que o imaginado em representações. Os corações mais delicados, e
hipócritas por extensão, se recusam a ver que os negros escravos, quando se
rebelavam, eram passados em moendas de cana, que expulsavam suas vísceras como
bagaço. Outros após o chicote, antes da morte, tinham as feridas abertas
lambidas por bois. E aqui não preciso falar o quanto é áspera, cruel e ferina a
língua de um boi.
Poupemos
os corações mais delicados. Mas, de passagem, menciono que negros eram ferrados
no corpo como os quadrúpedes na fazenda. Eles não tinham a marca do dono por
uma medalhinha, como aparece no escravo Salomon do filme “12 anos de
escravidão”.
Mais
de uma vez, pude notar um dos sintomas da barbárie nacional, quando vi que os
melhores relatos vivos sobre a nossa escravidão vêm de estrangeiros, como os descritos
em Charles Darwin e Vauthier, o engenheiro francês que viveu no Recife. Ou de
Maria Graham, a digna escritora que visitou Pernambuco em 1821. Cito as
palavras da inglesa:
“Os
cães já haviam começado uma tarefa abominável. Eu vi um que arrastava o braço
de um negro de sob algumas polegadas de areia, que o senhor havia feito atirar
sobre os seus restos. É nesta praia que a medida dos insultos dispensados aos
pobres negros atinge o máximo. Quando um negro morre, seus companheiros
colocam-no numa tábua, carregam-no para a praia onde, abaixo do nível da
maré-cheia, espalham um pouco de areia sobre ele”.
Mas
na perigosa escrita de Gilberto Freyre o mesmo quadro se conta assim:
“Foi
numa praia perto de Olinda que Maria Graham, voltando a cavalo da velha cidade
para o Recife, viu um cachorro profanando o corpo de um negro mal enterrado
pelo dono. Isto, em 1821. Olinda pareceu à inglesa extremamente bela vista do
istmo e da praia pela qual, indo do Recife, chegou até ao pé dos montes da
primeira capital pernambucana”.
Vocês
viram: o horror ocupa uma só linha em Gilberto Freyre, perdida na bela vista de
Olinda. Quem quiser, confira, essa ocultação do real está em sua “Olinda, Guia
Prático, Histórico e Sentimental de uma Cidade”.
De
Vauthier cito: “Madame Sarmento nos contou que como sua negrinha lhe tinha
roubado seis vinténs, ela amarrou-lhe as mãos e deu-lhe umas boas chicotadas!!!
Levantando- lhe a roupa!!! Sem nenhum constrangimento!!! Diante dos filhos!!! O
mais velho deles observou que o posterior da negrinha não era mais bonito do
que o de um cavalo, quando levanta a cauda. Qualquer pessoa poderia chegar a
praticar coisas semelhantes num momento de excitação e envergonhar-se delas
depois, mas contá-las. Que mulher! Que alma!…
Hoje
o cadáver de um negro ficou boiando na praia, debaixo das nossas janelas,
levado e trazido pelas oscilações das marés. Mil pessoas passaram, viam-no,
pararam um instante antes de seguirem caminho muito filosoficamente. Aprecio
pouco as ideias geralmente admitidas sobre cadáveres que tendem em alguns casos
a conceder mais cuidados aos despojos sem alma do que ao ser quando está vivo –
mas este descaso, essa indiferença geral perante a morte – é verdade que era um
negro! Um negro vivo já é pouca coisa: o que será então um negro morto? Essa
incúria generalizada com as exalações que emanam de um cadáver, tudo isso
caracteriza de modo bem saliente esta barbárie, engastada na selvageria e mal
maquilada em civilização”.
No
Brasil, até hoje vale o que narrei em um personagem, retirado da minha memória:
muitas vezes, a descendência de pessoas negras se dá pela mãe. Isso quer dizer,
o pai não passa de um elemento fecundador, essa palavra suave, pouco afeita a
modos nada corteses. Melhor à maneira mais crua: o pai não passa de um fodedor.
É como uma tradição, emprenhar a negra e sumir. Foder a negra, foder muitas
vezes a negra, mas, diabo, parece obra do diabo, o bucho da negra cresce. Mais
tarde, filhos assim rejeitam esse passado coletivo. Apesar de se moverem em uma
sociedade de classes e de preconceito de cor, jamais valorizam o lado paterno,
porque para isso teriam de valorizar a gala que partiu.
Entre
nós, neste dias, ainda perduram denúncias de trabalho escravo ou semiescravo.
Entre as empregadas domésticas então, o desconhecimento de direitos elementares
como privacidade, respeito, a falta de atenção para ver nelas uma pessoa igual
aos patrões, sobrevive a qualquer mudança legal. É que continua em vigor o
Direito Não-Escrito de Escravos. É histórico no Brasil, é como se estivesse no sangue,
como se fosse genético, de um caráter irreprimível. Até antes das empregadas
vão a democracia e a igualdade. A partir delas é outra história. Quantas vezes
vemos nos restaurantes jovens casais com seus lindos filhos, tendo ao lado as
escravas, que nem sequer têm direito a provar da bebida e da comida? Isso nos
domingos e feriados! É justo, não é? A cidadania só alcança os iguais.
Em
todas as situações desconfortáveis, se ousamos estranhar, ou agir com pelo
menos um olhar atravessado para essa infâmia, recebemos a resposta de que as
domésticas são pessoas da família. Parentes fora do sangue, apenas separadas
por deveres, notamos. É o que se pode chamar de uma opressão disfarçada em
laços afetivos. A ex-escrava é considerada como um bem amoroso, íntimo, mas que
por ser da casa come na cozinha e se deita entre as galinhas do quintal. O que,
afinal, é mais limpo que se deitar com os porcos no chiqueiro. Não estranhem,
porque não exagero. Não faz muito tempo
no Recife era assim. E por que estranhar esse tratamento? Olhem os grandes e
largos e luxuosos apartamentos do Rio e de São Paulo, abram os olhos para os
minúsculos quartinhos das empregadas, entrem nos seus banheiros, que Millôr
dizia serem a prova de que no WC as empregadas brasileiras não têm sexo.
Quando
pesquisei para o Dicionário Amoroso do Recife, pude ver que na língua
portuguesa o nome Zumbi significa alma que vagueia a horas mortas, ou fantasma
de animal morto, ou com o sentido último de ser o título do chefe de um
quilombo, zambi. Estranho, não? Ou melhor, faz um sentido histórico, porque
alma de assombração ou fantasma de animal morto lembra mais uma vingança
póstuma contra um herói na luta contra a escravidão.
E
quanto ao bairro? O Zumbi, no Recife, foi o Engenho de Ambrósio Machado, lugar
de cultivo de cana no trabalho escravo, desde a dominação holandesa. O
sociólogo e jornalista José Amaro Correia, amigo já falecido, assim me
informou, lembrando o bairro onde ele viveu na infância: “Diziam para as
crianças: ‘Zumbi vai te pegar’. O medo que havia nos senhores de engenho foi
transferido para os explorados. O explorado repetia à sua maneira a consciência
do explorador. Até os meus 14 anos de idade, para mim e para todos os meninos,
Zumbi não era coisa boa. Esse nome era associado ao bairro. Para as pessoas de
fora, nós dizíamos que morávamos na Madalena. Nos anos 50, ainda falavam para
as crianças que Zumbi ia voltar, como se fosse uma ameaça. Era o comentário,
era o aviso na infância: ‘Zumbi vai voltar’. As mães do bairro diziam para os
filhos: ‘não volte tarde, porque Zumbi pode te pegar’”
E
assim pude ver a origem histórica do bairro e do seu nome. De lugar de
escravos, de terras de senhor de engenho, a lugar onde voltaria Zumbi, desta
vez como uma ameaça aos proprietários, e para os descendentes dos explorados,
até hoje, como uma assombração, no registro dos dicionários. Que deveria
receber um novo significado, que a consciência do novo tempo nos ensina. Deixo
a sugestão para atualizar o verbete nos dicionários:
Zumbi,
substantivo masculino. Nome do herói brasileiro, pessoa de rara coragem, que se
levantou contra a escravidão. Falecido no dia 20 de novembro, deu origem ao dia
da consciência negra.
Como
bem escreveu Joaquim Nabuco, “a escravidão permanecerá por muito tempo como a
característica nacional do Brasil”. Ao que acrescentamos, a característica
brasileira mais oculta, como um crime envergonhado que se reflete na cor.
Podíamos pelo menos seguir o exemplo da Holanda. Lá, o conhecimento da
escravidão brasileira, sem idealizações, vai entrar no currículo das escolas.
_________________
Por Urariano Mota, no Portal Vermelho.
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