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Em 1961, resistência popular impulsionada por Leonel Brizola barrou golpe desencadeado por renúncia de Jânio Quadros. (FOTO/ Museu da Comunicação Hipólito José da Costa). |
A
Terra é Redonda – Será que o povo existe? Será que ele é como o monstro do Loch
Ness, na Escócia, que quanto mais se deixa vislumbrar em fotos fugidias, mais
se levantam as dúvidas sobre sua existência? Dizem as constituições que o povo
é soberano e que os poderes serão exercidos em seu nome, mas a gente sabe que
isto é uma quimera. As esquerdas, em geral, não gostam do termo “o povo”, vendo
nele uma artimanha das classes dominantes para manter o jugo sobre as classes
subalternas. Mas as esquerdas, em geral, também não gostam das palavras “nação”
e “nacionalismo”. No entanto, elas existem, e mobilizam. Claro, podem mobilizar
à direita, com xenofobia e outros preconceitos. Mas também podem mobilizar à
esquerda, junto com a luta anti-imperialista.
São
palavras que podem mudar de sentido, conforme a latitude e a longitude em que
estejam. Na Europa, em 90% dos casos, “nacionalismo” aparece nos discursos da
direita, com “xenofobia” e “autoritarismo” em conexão. Porém, ao cruzar o
Atlântico, a palavra foi mudando de cor, se avermelhando, até florir na América
Latina junto com as lutas de libertação contra o jugo colonial e imperialista.
Aqui
e ali, o Povo, de fato, se deixa vislumbrar, num alumbramento, para quem o viu
e ouviu. Um destes momentos foi o do final de agosto de 1961, sessenta anos
atrás. Eu tinha 14 anos e meio. Um belo dia, 25 de agosto, como um raio em céu
de brigadeiro, estourou a notícia: o presidente Jânio Quadros renunciara.
Auto-golpe
Por
que ele fez aquele gesto? Para dar um auto-golpe, dizem uns, esperando que o
Povo aparecesse e o reconduzisse ao poder com poderes excepcionais, descartando
a Constituição Federal. Mais ou menos como o atual usurpador do Palácio do
Planalto quer fazer, sem recorrer a renúncia. Há uma diferença entre ambos: Jânio
queria mesmo que o Povo, assim com maiúscula, o reconduzisse. Já a usurpador de
hoje, cada vez mais acuado, espera que o “seu povo” o reconduza, essa arraia
miúda composta pela soldadesca, oficiais de ou sem pijama, por milicianos,
bandidos, motoqueiros da segunda e da terceira idade, a escória empresarial, os
ruralistas e caminhoneiros de cabeça quente e arma debaixo do casaco, a
lumpen-burguesia, os negociantes dos templos em nome de Jesus, a ralé, a
escória e quejandos. A ver.
Mas
há também quem diga que Jânio renunciou porque faltou alguém que o trancasse no
banheiro. Provavelmente ambas as versões têm sua dose ou ponta de razão. Hoje
se sabe que Jânio padecia de momentos de profunda depressão. Sobretudo a partir
de quinta ou sexta-feira à tarde, quando todo o mundo político saía de
Brasília, até segunda ou terça-feira, quando o mesmo mundo voltava. O
presidente tinha de ficar em Brasília, sozinho. Há relatos pungentes – não
confirmados, também como o monstro do Loch Ness – de que o presidente, nas noites
de sexta-feira e sábado, sentava-se na sala de cinema do Palácio do Planalto
com uma garrafa de uísque ao lado e ficava assistindo um faroeste até que ambos
– o filme e a garrafa – terminassem. Vá se saber.
O inesperado aconteceu
O
fato que se sabe é que, para provável surpresa do presidente, o Congresso
Nacional aceitou a renúncia. E outro fato que se sabe é que os ministros
militares – Odylio Denys, da Guerra (hoje se diz do Exército), Grum Moss (da
Aeronáutica) e Silvio Heck (da Marinha) – vetaram a posse do vice João Goulart,
que se encontrava em viagem à China, a mando do presidente Jânio Quadros.
Para
muitos isto corrobora a hipótese da auto-conspiração janista: que no momento da
renúncia o vice se encontrasse num país comunista, o que aumentaria a suspeita
de que ele quisesse instaurar um regime revolucionário e sindicalista. Logo
Jango!, sempre hesitante, timorato e conciliador.
Entretanto,
o inesperado aconteceu. O governador Leonel Brizola não aceitou o golpe,
mobilizou a Brigada Militar (a PM do Rio Grande do Sul), entrincheirou-se no
Palácio Piratini, sede do governo estadual, requisitou a rádio Guaíba e deu
começo àquilo que entraria para a História como o Movimento e a Rede da
Legalidade.
Insatisfeitos
com a pregação do governador, os ministros militares deram ordem para que ele
se calasse. Consta que o general Costa e Silva telefonou para ele, exigindo que
interrompesse as emissões radiofônicas da Rede da Legalidade. “Ninguém vai dar
o golpe pelo telefone”, foi a resposta que o general recebeu.
Povo em cena
Depois
de momentos excruciantes, o comandante do III Exército, sediado em Porto
Alegre, então o maior e mais bem armado do país, aderiu ao movimento de
resistência contra o golpe. O ponto mais dramático desta expectativa foi a
chegada da notícia de que uma coluna de blindados saíra do seu quartel, no
bairro da Serraria, e vinha para o centro da cidade. Para onde apontariam os
tanques? No final, um alívio: os tanques ocuparam o cais do porto, onde navios
da Marinha ali estacionados, com comandantes favoráveis ao golpe, ameaçavam
bombardear o Palácio Piratini. Mas outros momentos dramáticos se seguiriam.
Desesperados
diante do sucesso da resistência, os ministros golpistas deram ordem para que
os aviões da 5a. Zona Aérea, sediada em Canoas, na Grande Porto Alegre,
levantassem voo e bombardeassem o Palácio. A senha era: “Tudo azul em Cumbica”,
porque os jatos Gloster Meteor deveriam executar a ordem e rumar para São
Paulo, pousando na Base Aérea assim chamada, em Guarulhos. Um rádio-amador
captou a ordem e avisou o governador Leonel Brizola, que fez uma despedida
histórica pela Rede da Legalidade, dizendo que resistiria até o fim e pedindo a
todos que ficassem em casa. Aconteceu o contrário.
Pois
foi no meio deste torvelinho que o Povo entrou em cena. Quando o carro do
general Machado Lopes chegou à Praça da Matriz, em frente ao Palácio Piratini,
a multidão compacta deteve o veículo. E começou a cantar o Hino Nacional. O
militar saiu do carro, se perfilou e cantou junto. Foi o sinal dado de que ele
vinha para aderir ao movimento, não para sufocá-lo.
Situação tensíssima
Na
sequência, chegou um jipe da Aeronáutica. A multidão, que nesta altura era
calculada em 100 mil pessoas (Porto Alegre, na época, tinha uns 650 mil
habitantes), bloqueou-lhe o caminho, aos brados de “golpistas” e “assassinos”,
pois já sabia da ordem de bombardeio, mas não recuava. Começaram a tentar virar
o veículo. Desesperado, o sargento que dirigia o carro, com um acompanhante,
gritou (mentiu) que era primo do governador Brizola, e que vinha lhe pedir
ajuda. A multidão deixou os dois passarem.
Nova
notícia: durante a madrugada os sargentos da Base Aérea rebelaram-se, e,
armados, cercaram o alojamento onde os oficiais se preparavam para levantar voo
e cumprir a ordem assassina.
A
situação era tensíssima. Alertado, o general Machado Lopes enviou um
destacamento para ocupar a Base de Canoas. Os oficiais golpistas fugiram para
São Paulo, em aviões desarmados. Assumiu o comando o tenente-coronel aviador
Alfeu de Alcântara Monteiro, legalista.
Defesa da Legalidade
Era
o dia 28 de agosto de 1961. Ali estava, sem dúvida, deixando-se vislumbrar, o Povo
mobilizado. Por que o Povo? Porque não há estatística que cubra aqueles 100
mil, e os demais que passaram a se espalhar pela cidade, levando bandeiras,
panfletos e palavras aladas conclamando a defesa da Legalidade. Qual o
percentual de trabalhadores ali presentes? De estudantes? De classes médias? De
médicos, engenheiros, advogados, funcionários públicos, aposentados,
professores, etc.? De jovens e velhos? De homens e mulheres? Até de militares à
paisana, além dos da Brigada Militar, armados até os dentes nas trincheiras de
sacos de areia improvisadas ao redor do Palácio? É impossível saber. Não só
porque não se fez esta estatística, mas porque o que ali estava era o resultado
de uma transubstanciação, uma mudança de identidade e de natureza, mesmo que
fugaz e momentânea. A massa de gente dispersa e acomodada pusera-se de pé e
transformara-se em “o Povo”.
Paulo
César Pereiro, inspirando-se na Marselhesa, compôs a música e a poeta Lara de
Lemos a letra do Hino da Legalidade: “Avante, brasileiros, de pé,/Unidos pela
Liberdade./Marchemos todos juntos com a bandeira/Que prega a
Lealdade.//Protesta contra o tirano/Que prega a traição,/Que um Povo sé será
grande/Se for livre sua Nação!”. Nas manifestações, tornou-se o complemento do
Hino Nacional e do Hino Riograndense, que relembrava os legendários Farrapos e
Garibaldinos de antanho.
Decepção com Jango
O
que se seguiu depois foi a série atribulada de movimentações militares, de
negociações palacianas, com a adoção provisória do regime parlamentarista
(desativado pelo plebiscito de 1963). Houve uma decepção generalizada quando,
já de retorno ao Brasil, ainda em Porto Alegre, João Goulart aceitou a chamada
emenda parlamentarista, desarticulando o Movimento da Legalidade. O Povo,
novamente reunido na Praça da Matriz, vaiou-o sem dó nem piedade, jogando-lhe
um rosário de palavrões impublicáveis aqui. A tal ponto chegou a fúria da
multidão que Brizola decidiu tirar dali o vice-presidente, fazendo-o sair pelos
fundos ou pelos subterrâneos do Palácio até um ponto seguro de onde ele pudesse
tomar rumo.
Ainda
houve outros momentos trepidantes, como aquele em que um grupo inconformado de
oficiais da Aeronáutica decidiu derrubar o avião em que Jango seguiria de Porto
Alegre para a capital, na chamada “Operação Mosquito”. Uma complexa “Operação
Tática” de resposta àquela foi montada a partir de Porto Alegre, garantindo o
voo e o pouso em segurança no aeroporto de Brasília.
Nos
anos que se seguiram os conspiradores de 61 tornaram-se os vitoriosos golpistas
e canalhas de 64, quando o Povo perdeu e se desarticulou, para reaparecer,
apenas nas manifestações pelas Diretas, em 83/84, com ganhos e perdas, até os
funerais de Tancredo Neves, em 1985.
Anoiteceu mais cedo
O
antes mencionado tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, já promovido a
coronel aviador, foi assassinado em 4 de abril de 1964, na mesma Base Aérea de
Canoas, cujo comando assumira em 1961, como oficial legalista. Naqueles dias
logo depois do golpe de abril, as luzes das ruas de Porto Alegre não eram
acesas à noite. Lembro de uma dessas noites, em que eu estava à porta de nossa
casa, e meu pai me falou: “entra, meu filho, hoje anoiteceu mais cedo”. Acho
que era a noite deste mesmo dia 4 de abril.
De
qualquer modo, as imagens e o canto de o Povo permanecem indeléveis nos olhos e
nos tímpanos de quem O viu e ouviu, ainda que estejam um tanto desgastados pelo
tempo.
P.S.
Para quem não viu, recomendo o filme (ficcional e histórico) Legalidade (2019),
dirigido por Zeca Brito. Uma surpresa: o pai do diretor atua como o Leonel
Brizola já ancião, ao final do filme. Sua parecença com o ex-governador é
tamanha, que houve quem pensasse que o próprio Brizola tivesse encenado seu
papel, no fim da vida.
______________
Texto do professor aposentado, jornalista e escritor Flávio Aguiar, publicado originalmente na RBA.
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