Felipe Tuxá, o primeiro professor autodeclarado indígena da Ufba (Acervo Pessoal/Felipe Tuxá). |
Foi
entre gente ávida por futuro que Felipe Tuxá, 31 anos, cresceu, de modo que até
o cachorro da família dele ganhou o nome de “Projeto”, palavra que fazia
sonhar. Era um território imerso em possibilidades aquele onde o antropólogo
aprendeu a mergulhar no horizonte, enquanto os anciões indígenas planejavam:
“Quando a terra sair...”. Nessas reticências, cabiam planos que nem erros
históricos sufocaram.
Cada
um da Aldeia Mãe da comunidade Tuxá traçou seu projeto de futuro, depois de
terem suas terras inundadas por uma barragem. Felipe acaba de realizar parte do
dele: aprovado no concurso para professor do Departamento Antropologia na
Universidade Federal da Bahia (Ufba), será o primeiro docente autodeclarado
indígena da instituição que tem 75 anos - 200 alunos se autodeclaram indígenas.
Em
todo o departamento onde Felipe atuará, pelo menos oficialmente, não há alunos
da graduação ou pós-graduação que tenham se autodeclarado indígena na matrícula.
Até de responder, fico emocionado. É um sonho, não vou mentir. É um projeto ancestral, que vem de longe e significa muita coisa. Significa que é possível, as coisas estão mudando, conta o Doutor em Antropologia pela Universidade de Brasília (UNB).
De
linhagem tradicional, Felipe é um
projeto vivo da Aldeia Mãe, no Norte baiano, onde há 60 casas. Lá, ele não
ocupa uma posição solitária: é um dos três professores de universidades
públicas nascidos no território, transformado em referência indígena na
educação formal.
Hoje,
por exemplo, cinco jovens crescidos na aldeia estudam Medicina em universidades
públicas baianas. O irmão de Felipe também é médico e trabalha no distrito
indígena de Kalankó, em Alagoas, a 48 quilômetros de distância de Paulo Afonso,
onde ele mora.
O
cenário educacional era diferente na infância de Felipe e do irmão, Pedro,
quando os pais deles decidiram pela mudança para Paulo Afonso, onde os filhos
pudessem estudar. Em meados da década de 90, a comunidade não tinha uma escola,
instalada apenas em 2001 e que modificaria a realidade sociopolítica local.
A
busca pela educação como resistência
O
avô de Felipe, Antônio, era conselheiro da Aldeia Mãe e incentivava os mais
jovens a estudarem - formalmente.
Ele falava muito que precisávamos estudar, sermos também os ‘doutores’. A gente percebia que as pessoas que encabeçavam a luta [indígena] eram importantes, mas todas eram não indígenas. Não tínhamos o resultado que esperávamos, conta Felipe, pesquisador em violação de terras indígenas baianas.
A
necessidade de pensar o futuro, uma semente semeada em conjunto, surgiu de uma
ferida aberta do passado. Em 1987, a construção da Usina de Itaparica inundou
as terras originárias do povo Tuxá, ilhas margeadas pelo Rio São Francisco, e
obrigou as famílias a se mudarem para outros territórios.
Os
mais velhos viviam a dizer "quando a terra sair" porque a Companhia
Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), responsável pela barragem, tinha
prometido uma terra para eles. A frase cheia de expectativa, que Felipe tanto
ouviu na infância, inspirou parte do título da dissertação de mestrado dele.
Sem
destino certo, o povo Tuxá estabeleceu aldeamentos nos limites de três
municípios: Ibotirama, Inajá (Pernambuco) e Rodelas, onde Felipe nasceu.
A
mudança para Paulo Afonso não anulou o contato dele com a Aldeia Mãe. Aos
finais de semana e em datas festivas, eles viajavam até a comunidade, a 110
quilômetros de distância. O endereço dele, na cidade, já era repleto de
vizinhos vindos da aldeia.
Essa
migração era fundamental para quem não conseguia subsistir devido às limitações
agrárias da nova morada. A Aldeia Mãe é uma aldeia urbana, termo sem
significado unânime, mas que pode ser entendido como aquele território integrado
ao espaço urbano ou o núcleo de indígenas que vivem na cidade.
Foi
na aldeia que Felipe teve o os primeiros contatos com antropólogos. O pai dele,
motorista da Fundação Nacional do índio (Funai), constantemente ia a Brasília.
“Vou ali buscar um antropólogo”, ele dizia.
Esses antropólogos vinham e resolviam as coisas. Eu via como mágica, recorda.
Aos
17 anos, o jovem tinha certeza de que queria seguir esse caminho de “resolver
as coisas” e aproximar a vida profissional à luta do povo Tuxá. Três anos
depois, partiu para Belo Horizonte, aprovado no vestibular para Ciências
Sociais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O futuro batia à porta.
A terra prometida e a criação da escola indígena
Quando
Felipe chegou em Minas Gerais, não existiam, formalmente, políticas afirmativas
consolidadas para a entrada de pessoas indígenas em universidades públicas.
Eram as instituições que criavam mecanismos para isso, como a criação de
vestibulares específicos para estudantes indígenas, que se juntavam em grupos
para resistir ao racismo que os agredida e estigmatizava.
As
universidades federais de Minas Gerais e de Brasília, onde Felipe fez mestrado
e doutorado em Antropologia, eram duas das instituições que investiam na
inclusão. Somente em 2012, a lei de Cotas obriga as universidades públicas a
reservarem vagas para indígenas - também para negros e egressos da rede pública
de ensino.
A
política teve efeito: de 2010 a 2019, o número de estudantes indígenas no
ensino superior, em Salvador, saiu de 310 para 1.455, segundo o Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Felipe faz parte desse movimento de inclusão no ambiente acadêmico e ser professor da Ufba era um dos principais projetos dele, que passou por uma semana de provas até a aprovação no concurso, anunciada na noite de 8 de abril.
Para mim, é simbólico. A Bahia é onde a colonização começou. Estar na Ufba significava onde eu deveria estar para pensar nossa existência nesse espaço que também é indígena, comemora.
Desde
2018, ele já era professor universitário: era substituto no curso de
Licenciatura Intercultural em Educação Escolar Indígena, voltada para a
formação de professores da rede básica indígena, da Universidade do Estado da
Bahia (Uneb).
Enquanto
aguarda a nomeação na Ufba, que deve ocorrer nos próximos três meses, Felipe
conclui o ciclo como professor substituto da Uneb. Como nunca morou em
Salvador, Felipe deve vir à cidade em maio para resolver a mudança. Aqui, ele
tem outros parentes, como a artista indígena Yacunã Tuxá, vinda da mesma aldeia
de Felipe.
Um
dos colegas de trabalho que o antropólogo se despedirá, em Paulo Afonso, é
Dorival Júnior Jurum Tuxá, 32, historiador e primo dele. Desde jovem, como
Felipe, ele viu na educação a chance de fortalecer as lutas indígenas e ter
possibilidades. Ele é outro professor da licenciatura voltada a docentes
indígenas.
“É
necessário fornecer uma educação de qualidade que fortaleça o vínculo do
indígena com seu território, mostrando que ele tem o direito de escolha por uma
profissão, mas que possa favorecer também a comunidade”, acredita o
pesquisador.
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Com informações do Correio 24h. Clique aqui e acesse o texto completo.
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