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Fascismo não deve ser legitimado, diz Marcia Tiburi. (Foto: Reprodução/ Brasil 247). |
A
filósofa Márcia Tiburi explicou, em sua coluna na Revista CULT, por que
abandonou um programa na Rádio Gauíba, em Porto Alegre, e se recusou a debater
com Kim Kataguiri, um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL).
Márcia
diz não ter sido avisada que Kataguiri seria seu interlocutor no programa,
comandado pelo jornalista Juremir Machado da Silva. Para a filósofa, "não se pode debater com quem se notabilizou
em violentar a inteligência e a cultura".
Abaixo,
a íntegra da carta de Márcia Tiburi publicada na CULT
Caro
Juremir,
Sempre
gostei muito de participar do teu programa. Conversar contigo e com qualquer
pessoa que apresente argumentos consistentes. Mais do que um prazer é, para
mim, um dever ligado à necessidade de resistir ao pensamento autoritário,
superficial e protofascista. Ao meu ver, debates que desvelam divergências
teóricas ou ideológicas podem nos ajudar a melhorar nossos olhares sobre o
mundo.
Tenho
a minha trajetória marcada tanto por uma produção teórica quanto por uma
prática de lutar contra o empobrecimento da linguagem, a demonização de
pessoas, os discursos vazios, a transformação da informação em mercadoria
espetacularizada, os shows de horrores em que se transformaram a grande maioria
dos programas nos meios de comunicação de massa.
Ao
longo da minha vida me neguei poucas vezes a participar de debates. Sempre que
o fiz, foi por uma questão de coerência. Tenho o direito de não legitimar como
interlocutor pessoas que agem com má fé contra a inteligência do povo
brasileiro ao mesmo tempo em que exploram a ignorância, o racismo, o sexismo e
outros preconceitos introjetados em parcela da população.
Por
essa razão, ontem tive de me retirar do teu programa. Confesso que senti medo:
medo de que no Brasil, após o golpe midiático-empresarial-judicial, não exista
mais espaço para debater ideias.
Em
um dia muito importante para a história brasileira, marcado por mais uma
violação explícita da Constituição da República, não me é admissível participar
de um programa que tenderia a se transformar em um grotesco espetáculo no qual
duas linguagens que não se conectam seriam expostas em uma espécie de ringue,
no qual argumentos perdem sentido diante de um já conhecido discurso pronto
(fiz uma reflexão teórica sobre isso em “A Arte de escrever para idiotas”), que
conta com vários divulgadores, de pós-adolescentes a conhecidos psicóticos; que
investe em produzir confusão a partir de ideias vazias, chavões, estereótipos
ideológicos, mistificações, apologia ao autoritarismo e outros recursos
retóricos que levam ao vazio do pensamento.
Por
isso, ontem tive que me retirar. Não dependo de votos da audiência, nem sinto
prazer em demonstrar a ignorância alheia, por isso não vi sentido em participar
do teu programa. Demorei um pouco para entender o que estava acontecendo. Fiquei
perplexa, mas após refletir melhor cheguei à conclusão de que a ofensa que
senti naquele momento era inevitável.
A
uma, porque, ao contrário das demais pessoas, não fui avisada de quem
participaria do debate. A duas, por você imaginar que eu desejaria participar
de um programa em que o risco de ouvir frases vazias, manifestações
preconceituosas e ofensas era enorme. Por fim, e principalmente, meu estômago
não permitiria, em um dia no qual assistimos a uma profunda injustiça, ouvir
qualquer pessoa que faça disso motivo de piada ou de alegria. Não sou obrigada
a ouvir quem acredita que justiça é o que está em cabeças vazias e interessa
aos grupos econômicos que, ao longo da história do Brasil, sempre atentaram
contra a democracia.
Tu,
a quem tenho muita consideração, não me avisou do meu interlocutor. A tua
produtora, que conversou comigo desde a semana passada, não me avisou. Eu tenho o direito de escolher
o debate do qual quero participar. Entendo que possa ter sido um acaso, que
estavas precisando de mais uma debatedor para a performance do programa. Se foi
isso, a pressa é inimiga da perfeição. E, se não cheguei a pedir que me
avisasse se teria outro participante, também não imaginava que o teu raro
programa de rádio, crítico e analítico, com humor bem dosado, mas sempre muito
sério, abrisse espaço para representantes do emprobecimento subjetivo do
Brasil.
Creio
que é importante chamar ao debate e ao diálogo qualquer cidadão que possa
contribuir com ideias e reflexões, e para isso não se pode apostar em
indivíduos que se notabilizaram por violentar a inteligência e a cultura, sem
qualificação alguma, que mistificam a partir de clichês e polarizações sem
nenhum fundamento. O discurso que leva ao fascismo precisa ser interrompido.
Existem limites intransponíveis, sob pena de, disfarçado de democratização, os
meios de comunicação contribuírem ainda mais para destruir o que resta da
democracia.
Quando
meu livro “Como conversar com um fascista” foi publicado, muitos não perceberam
a ironia kirkegaardiana do título. Espero que a tua audiência tenha entendido.
O detentor da personalidade autoritária, fechado para o outro e com suas
certezas delirantes, chama de diálogo ao que é monólogo. Espero que, sob a tua
condução, o programa volte a investir em mais diálogo, que seja capaz de reunir
a esquerda e a direita comprometidas com o Estado Democrático de Direito em
torno do debate de ideias. (Com informações do Brasil 247).
Confira o vídeo abaixo: