10 de julho de 2025

A volta da esposa pródiga

 

A volta da esposa pródiga. (FOTO | Reprodução | WhatsApp).

Por César Pereira, Colunista

— Te dou as chaves da casa, te ponho de rainha do lar — falou Candinho.

Lili divagou o olhar vesgo e distraído a roda do salão.

— Você me escuta Lili — quis ele saber.

— Muito.

— Então não me responde?

— Estou pensando nas desvantagens da proposta — disse Lili.

Candinho tomou as mãos da moça, ela quis escorregar-lhe, ele a segurou pelos pulsos.

— Você não ver que eu estou mandando ao diabo, mãe, vizinhos, amigos, reputação?

— Ah! um sacrifício — falou Lili.

— Não por mim, por você — disse Candinho — por você e ninguém mais.

— Depois me atira na cara — Lili livrou uma das mãos — vai sair dizendo: — aquela eu tirei da zona, pus sob minha lei, fiz respeitada.

— Esse não sou eu, já me conhece há quanto tempo?

— Vou ser a escrava que passa, que lava, que queima a barriga no fogão — falou a dama.

— Mas vai ter leito de dossel e não cama de Procusto.

Lili desvencilhou-se do homem e voltou-lhe as costas. Estavam sentados numa mesa no fundo do bar, a música chegava fria até eles, a-chance-que-você-perdeu-nunca-mais-vou-lhe-dar, um casal dançava solitário no meio do salão, os risos das outras mulheres lá dentro, nos quartos ocupados. O funileiro batia folhas de zinco em frente. Se o trem apitasse atravessando os trilhos ela estaria totalmente a salva daquele polvo.

Candinho tamborilava o tampo da mesa enquanto olhava o teto disfarçando o próprio medo — podia a Lili negar-lhe aquele pedido? Ele ali esquecendo orgulho, honra e lhe fazendo um favor — pedindo-a em casamento para a Glorinha sem se importar com conselhos de mãe, sem pensar na irmã por casar-se um dia.

E ela nem mesmo a dama mais disputada da zona, só ele naquela ideia fixa, naquela obsessão de querer se casar com a Lili Boca-de-Mel. Quando a resposta, precisava da palavra dela pra correr os banhos, falar à velha.

— Vou me casar com mulher da zona minha mãe, entenda isso e aceite. — Faço da minha vida o que quero, nasci para homem, não pra ficar debaixo de asa da mãe.

Então-você -verá-o-valor-que-tem-o-amor. Lili bocejou alto num escancelo de boca, ia levantar-se para trocar aquela música, mas o Candinho reteve-a tomando-a pela cintura, sentou-a a força ao seu lado, ela o olhou assustada reconhecendo nele um homem.

Passaram-se anos. O primeiro filho crescendo no ventre da mulher e agora o Candinho um marido feliz. Tinha que ser uma menina e parecidinha com a Lili. No começo do casamento o nojo da mãe fora o desgosto dos dois, privara-o mesmo de conviver com a irmãzinha.

— Candinho você escolheu a perdida, não nós — falou a velha no dia do noivado.

— E as boas qualidades da Lili, minha mãe?

— Puta. Puta. Puta.

— Até do deus perdoada — disse Candinho — recebi este ensino.

— Você não tem dignidade, meu filho?

— Sem a Lili um homem incompleto.

— Você me envergonha, desonra sua irmã, esquece a memória do pai, de tudo?

— Um dia a senhora vai abrir a boca e dizer: — Lili, a mulher mais honesta que meu filho tirou da lama.

Ele agora o dia todo no açougue, mas o pensamento na mulher. Tão bom se lembrar da Lili lá naquele dia na sacristia vestidinha de azul e o padre impondo bênçãos. Arrepender-se, perdoar, amar. Agora serão uma só carne e um só espírito, vivam e multipliquem-se e o deus entrará em vosso lar. Agora a graça dum filho ou filha que ele prefere já disse, uma menina.

Nasceu menino e escurinho para calar as línguas e engolirem seus venenos. Não fosse a rua ou a sogra duvidar que ali um filho do Candinho. Nariz, boca e olhos era do Candinho. Cara e cabelos daquela dona Matilde. Assim ela quebrava o orgulho da jararaca. Dava-lhe um neto que é sempre um filho e abranda até as pedras. Viesse de lá agora a mãe do Candinho que ela saberia jogar-lhe na cara aqueles muitos anos de humilhações.

Bem no dia do casamento veio com a frase:

— Não lhe abençoo Candinho, pois nessa união não faço gosto, mas que eu esteja errada no meu julgamento sobre tua mulher.

Agora ela mesmo que a rainha do lar. Pro Candinho o rei da casa, a esposa exemplar — lava, passa, cozinha. Pro filho do Candinho, a mãe extremosa — noites de sono perdido e até mesmo o glorioso seio desfigurado. A casa um brinco, limpinhas as cuecas do Candinho. Almoço na mesa, café servido quente. Quem a visse naquela vida pensaria — aquela Liliane acertou o passo, pois sempre é tempo de redenção.

Ela toda convertidinha na mulher sábia, edificando a casa, servindo a um homem e ao filho do homem. A auxiliadora, sim, por que não, servente do Candinho, o maridinho que trabalha, que chega em casa, que a encontra na cama. Ah! sobretudo não comendo nunca jamais o pão da preguiça, sempre sujeita ao rei, ao Candinho, porque fizera o voto, o voto da boa conduta, da sensata, da mulherzinha cujas mãos trabalham para um lar.

Se um dia a mãe entrando na sua casa saberia de tudo. Saberia que ela agora tinha um homem, que agora tinha um filho, uma vida que ela vivia sem sustos. Onde a mãe naquela hora? Em que rua em que sarjeta estaria a mãe naquele minuto? Do pai nunca soube, da mãe se lembrava muito, principalmente do dia em que — a senhora querendo levar esse diabinho pra você, eu lhe dou madame, te dou ela pra criar, vai te fazer companhia, te ajudar no serviço da casa. — ... — Não tenho nada pra ela além da minha fome e da minha miséria.

Foi com a dona morar na chácara. Instalada no quartinho de despejo. Servia pra tudo: — lava essa louça Lili. Limpa já essa poeira nos móveis Lili. Cadê o menino Lili? O cachorro já comeu? Teu patrão precisa do sapato de verniz limpo. Ponha esse lixo pra fora. O jambeiro deixou grossa folhagem no jardim. Cadê o botão do meu vestido grená?

Um dia no escuro do quarto ouviu a porta batendo.

— Sou eu Lili, o doutor.

— ...

— Vim te fazer companhia, essa chuva lá fora, sei que tu tens medinho.

— A patroa que já chega...

— Não chega nada, com o pirralho na casa da tia, do outro lado da cidade, e esse aguaceiro...

— Doutor, não estou precisando de nada.

— Faço questão, me deito do teu lado, fico quietinho.

Língua de fogo ardendo nas suas entranhas, dentes de percevejo marcando sua carne. O peso do doutor sobre seu corpo magrinho, não tinha forças para repelir o bruto. Deixou-se ao desfrute, resistir era mais sofrer. Melhor servir e viver consolada. Outras noites de sacrifício até que o anúncio do fruto no ventre.

— De quem é esse filho Lili?

— Não sei, cresceu aqui.

— Você é maluca ou finge que é?

— Não sou maluca.

— Pois me diga, de quem é esse filho aí na sua barriga?

— Mas a patroa me bota pra fora e eu sem amparo.

— Minha casa um lupanar, um bordel pra Lili?

— Não veio de fora, fiz com o doutor.

Depois do aborto jogada na rua. Dias de fome e de frio. Até que a Glorinha. Me penteou, me vestiu, me fez cobiçada. Primeiro ganho da sua vida fora comprar casquinha de creme. Naquele dia a vida era boa.

Muito tempo depois apareceu o Candinho, promessa de outra vida, de tanto insistir e prometer acabou aceitando e eis agora ela, como a rainha do lar. Conforme os dias, tinha mais ou menos serviço na casa, o filho crescendo, Candinho pedindo outro, ela resistindo, agora toda a sua vida resumida àquela gaiola.

— Onde está a Lili, meu filho — perguntou dona Matilde.

— Me abandonou — disse Candinho — e prorrompeu em lágrimas.

— Você é um homem, Candinho, chorando por quê?

— ...

— Tenho pena é da criança, não tem culpa de nada, aquela desnaturada.

— Cheguei do açougue, desconfiei — falou Candinho — o menino na vizinha chora que chora.

— Fugiu. Voltou pra zona?

Essa gaiola não é pra mim Candinho, você cuide do menino, não levo porque preciso ganhar o pão e pra onde vou só há pão pra um só. O problema não é você, é a casa, é o trono que me deste para se sentar.

Adeus,

L. S.

Candinho amassou o bilhete da mulher e atirou-se aos pés da mãe, sem a Lili que vida poderia ele viver? Dona Matilde consolou o filho — levou-o de volta pra casa, cuidou do menino, vendeu as roupas da Lili no brechó, fechou o bangalô, até perdeu a chave.

Com o tempo Candinho voltou ao trabalho, esqueceu o casamento, Lili era apenas lembrança. Soube depois que ela muito requisitada no Gesso. Trabalhou mais, até aos sábados à tarde no açougue. Fez amigos no bilhar, encontrou a loira ainda querendo uma noite com ele. Quando pensou que tinha tudo acabado veio a reviravolta.

— Com quem o menino, minha mãe?

— Meu filho, foi a Lili — falou a mãe — entrou aqui em casa, me disse as últimas. Me espinafrou, não me chamou de santa.

— Você deixou, não impediu?

— Com que autoridade — disse a mãe — me arrancou o menino dos braços, sugeriu que eu lhe tinha tomado o marido e agora também na posse do filho dela.

— Voltou pra zona com a criança?

— Voltou pra casa, Candinho — falou a mãe — deixou recado: — Diz ao teu filho que se for homem sai de debaixo da saia da mãe e volta ao próprio lar.

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