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A volta da esposa pródiga. (FOTO | Reprodução | WhatsApp). |
Por
César Pereira, Colunista
— Te dou as chaves da casa, te ponho de rainha do
lar — falou Candinho.
Lili divagou o olhar vesgo e distraído a roda do salão.
— Você me escuta Lili — quis ele saber.
— Muito.
— Então não me responde?
— Estou pensando nas desvantagens da proposta —
disse Lili.
Candinho tomou as mãos da moça, ela quis
escorregar-lhe, ele a segurou pelos pulsos.
— Você não ver que eu estou mandando ao diabo, mãe,
vizinhos, amigos, reputação?
— Ah! um sacrifício — falou Lili.
— Não por mim, por você — disse Candinho — por você
e ninguém mais.
— Depois me atira na cara — Lili livrou uma das mãos
— vai sair dizendo: — aquela eu tirei da zona, pus sob minha lei, fiz
respeitada.
— Esse não sou eu, já me conhece há quanto tempo?
— Vou ser a escrava que passa, que lava, que queima
a barriga no fogão — falou a dama.
— Mas vai ter leito de dossel e não cama de
Procusto.
Lili desvencilhou-se do homem e voltou-lhe as
costas. Estavam sentados numa mesa no fundo do bar, a música chegava fria até
eles, a-chance-que-você-perdeu-nunca-mais-vou-lhe-dar, um casal dançava
solitário no meio do salão, os risos das outras mulheres lá dentro, nos quartos
ocupados. O funileiro batia folhas de zinco em frente. Se o trem apitasse
atravessando os trilhos ela estaria totalmente a salva daquele polvo.
Candinho tamborilava o tampo da mesa enquanto olhava
o teto disfarçando o próprio medo — podia a Lili negar-lhe aquele pedido? Ele
ali esquecendo orgulho, honra e lhe fazendo um favor — pedindo-a em casamento
para a Glorinha sem se importar com conselhos de mãe, sem pensar na irmã por
casar-se um dia.
E ela nem mesmo a dama mais disputada da zona, só
ele naquela ideia fixa, naquela obsessão de querer se casar com a Lili Boca-de-Mel.
Quando a resposta, precisava da palavra dela pra correr os banhos, falar à velha.
— Vou me casar com mulher da zona minha mãe, entenda
isso e aceite. — Faço da minha vida o que quero, nasci para homem, não pra
ficar debaixo de asa da mãe.
Então-você -verá-o-valor-que-tem-o-amor. Lili bocejou alto
num escancelo de boca, ia levantar-se para trocar aquela música, mas o Candinho
reteve-a tomando-a pela cintura, sentou-a a força ao seu lado, ela o olhou
assustada reconhecendo nele um homem.
Passaram-se anos. O
primeiro filho crescendo no ventre da mulher e agora o Candinho um marido
feliz. Tinha que ser uma menina e parecidinha com a Lili. No começo do
casamento o nojo da mãe fora o desgosto dos dois, privara-o mesmo de conviver
com a irmãzinha.
— Candinho você
escolheu a perdida, não nós — falou a velha no dia do noivado.
— E as boas
qualidades da Lili, minha mãe?
— Puta. Puta. Puta.
— Até do deus
perdoada — disse Candinho — recebi este ensino.
— Você não tem
dignidade, meu filho?
— Sem a Lili um homem
incompleto.
— Você me envergonha,
desonra sua irmã, esquece a memória do pai, de tudo?
— Um dia a senhora
vai abrir a boca e dizer: — Lili, a mulher mais honesta que meu filho tirou da
lama.
Ele agora o dia todo
no açougue, mas o pensamento na mulher. Tão bom se lembrar da Lili lá naquele
dia na sacristia vestidinha de azul e o padre impondo bênçãos. Arrepender-se,
perdoar, amar. Agora serão uma só carne e um só espírito, vivam e
multipliquem-se e o deus entrará em vosso lar. Agora a graça dum filho ou filha
que ele prefere já disse, uma menina.
Nasceu menino e escurinho
para calar as línguas e engolirem seus venenos. Não fosse a rua ou a sogra
duvidar que ali um filho do Candinho. Nariz, boca e olhos era do Candinho. Cara
e cabelos daquela dona Matilde. Assim ela quebrava o orgulho da jararaca. Dava-lhe
um neto que é sempre um filho e abranda até as pedras. Viesse de lá agora a mãe
do Candinho que ela saberia jogar-lhe na cara aqueles muitos anos de
humilhações.
Bem no dia do
casamento veio com a frase:
— Não lhe abençoo
Candinho, pois nessa união não faço gosto, mas que eu esteja errada no meu
julgamento sobre tua mulher.
Agora ela mesmo que a
rainha do lar. Pro Candinho o rei da casa, a esposa exemplar — lava, passa,
cozinha. Pro filho do Candinho, a mãe extremosa — noites de sono perdido e até
mesmo o glorioso seio desfigurado. A casa um brinco, limpinhas as cuecas do
Candinho. Almoço na mesa, café servido quente. Quem a visse naquela vida
pensaria — aquela Liliane acertou o passo, pois sempre é tempo de redenção.
Ela toda
convertidinha na mulher sábia, edificando a casa, servindo a um homem e ao
filho do homem. A auxiliadora, sim, por que não, servente do Candinho, o
maridinho que trabalha, que chega em casa, que a encontra na cama. Ah! sobretudo
não comendo nunca jamais o pão da preguiça, sempre sujeita ao rei, ao Candinho,
porque fizera o voto, o voto da boa conduta, da sensata, da mulherzinha cujas
mãos trabalham para um lar.
Se um dia a mãe
entrando na sua casa saberia de tudo. Saberia que ela agora tinha um homem, que
agora tinha um filho, uma vida que ela vivia sem sustos. Onde a mãe naquela
hora? Em que rua em que sarjeta estaria a mãe naquele minuto? Do pai nunca
soube, da mãe se lembrava muito, principalmente do dia em que — a senhora
querendo levar esse diabinho pra você, eu lhe dou madame, te dou ela pra criar,
vai te fazer companhia, te ajudar no serviço da casa. — ... — Não tenho nada
pra ela além da minha fome e da minha miséria.
Foi com a dona morar
na chácara. Instalada no quartinho de despejo. Servia pra tudo: — lava essa
louça Lili. Limpa já essa poeira nos móveis Lili. Cadê o menino Lili? O
cachorro já comeu? Teu patrão precisa do sapato de verniz limpo. Ponha esse
lixo pra fora. O jambeiro deixou grossa folhagem no jardim. Cadê o botão do meu
vestido grená?
Um dia no escuro do
quarto ouviu a porta batendo.
— Sou eu Lili, o doutor.
— ...
— Vim te fazer
companhia, essa chuva lá fora, sei que tu tens medinho.
— A patroa que já chega...
— Não chega nada, com
o pirralho na casa da tia, do outro lado da cidade, e esse aguaceiro...
— Doutor, não estou
precisando de nada.
— Faço questão, me
deito do teu lado, fico quietinho.
Língua de fogo
ardendo nas suas entranhas, dentes de percevejo marcando sua carne. O peso do
doutor sobre seu corpo magrinho, não tinha forças para repelir o bruto.
Deixou-se ao desfrute, resistir era mais sofrer. Melhor servir e viver
consolada. Outras noites de sacrifício até que o anúncio do fruto no ventre.
— De quem é esse
filho Lili?
— Não sei, cresceu
aqui.
— Você é maluca ou
finge que é?
— Não sou maluca.
— Pois me diga, de
quem é esse filho aí na sua barriga?
— Mas a patroa me
bota pra fora e eu sem amparo.
— Minha casa um
lupanar, um bordel pra Lili?
— Não veio de fora,
fiz com o doutor.
Depois do aborto
jogada na rua. Dias de fome e de frio. Até que a Glorinha. Me penteou, me
vestiu, me fez cobiçada. Primeiro ganho da sua vida fora comprar casquinha de
creme. Naquele dia a vida era boa.
Muito tempo depois apareceu
o Candinho, promessa de outra vida, de tanto insistir e prometer acabou
aceitando e eis agora ela, como a rainha do lar. Conforme os dias, tinha mais
ou menos serviço na casa, o filho crescendo, Candinho pedindo outro, ela
resistindo, agora toda a sua vida resumida àquela gaiola.
— Onde está a Lili,
meu filho — perguntou dona Matilde.
— Me abandonou —
disse Candinho — e prorrompeu em lágrimas.
— Você é um homem,
Candinho, chorando por quê?
— ...
— Tenho pena é da
criança, não tem culpa de nada, aquela desnaturada.
— Cheguei do açougue,
desconfiei — falou Candinho — o menino na vizinha chora que chora.
— Fugiu. Voltou pra
zona?
Essa gaiola não é pra
mim Candinho, você cuide do menino, não levo porque preciso ganhar o pão e pra
onde vou só há pão pra um só. O problema não é você, é a casa, é o trono que me
deste para se sentar.
Adeus,
L. S.
Candinho amassou o
bilhete da mulher e atirou-se aos pés da mãe, sem a Lili que vida poderia ele
viver? Dona Matilde consolou o filho — levou-o de volta pra casa, cuidou do
menino, vendeu as roupas da Lili no brechó, fechou o bangalô, até perdeu a
chave.
Com o tempo Candinho
voltou ao trabalho, esqueceu o casamento, Lili era apenas lembrança. Soube
depois que ela muito requisitada no Gesso. Trabalhou mais, até aos sábados à
tarde no açougue. Fez amigos no bilhar, encontrou a loira ainda querendo uma noite
com ele. Quando pensou que tinha tudo acabado veio a reviravolta.
— Com quem o menino,
minha mãe?
— Meu filho, foi a
Lili — falou a mãe — entrou aqui em casa, me disse as últimas. Me espinafrou,
não me chamou de santa.
— Você deixou, não
impediu?
— Com que autoridade
— disse a mãe — me arrancou o menino dos braços, sugeriu que eu lhe tinha
tomado o marido e agora também na posse do filho dela.
— Voltou pra zona com
a criança?
— Voltou pra casa, Candinho — falou a mãe — deixou recado: — Diz ao teu filho que se for homem sai de debaixo da saia da mãe e volta ao próprio lar.
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