18 de julho de 2025

Beatriz Nascimento: a poeta da história que redefiniu a narrativa negra no Brasil

 

Beatriz Nascimento. (FOTO | Divulgação).

No mês de julho, é celebrado o “Julho das Pretas”, campanha anual que honra a resistência e a trajetória das mulheres negras. A data faz alusão ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em 25 de julho. Coincidentemente, Beatriz Nascimento, historiadora, poeta e intelectual cujo trabalho revolucionou os estudos sobre raça, memória e território no Brasil, também celebra o seu aniversário neste mês.

Beatriz Nascimento nasceu em Aracaju (SE), em 12 de julho de 1942 — muitas fontes relatam que seu nascimento ocorreu no dia 17, mas essa é a data de quando foi registrada em cartório. Ainda criança, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde desenvolveu uma trajetória como historiadora, roteirista, poeta, professora e ativista do movimento negro.

Seu pensamento, construído entre os anos 1970 e 1990, atravessa a escrita acadêmica e a produção artística, propondo interpretações inéditas sobre a formação do Brasil, com foco na experiência negra.

Segundo o historiador Rodrigo Ferreira dos Reis, pesquisador do pensamento de Beatriz Nascimento, sua obra parte de uma crítica à historiografia tradicional: “Ela cria o que chama de uma história feita por mãos negras. A historiografia oficial é feita por mãos brancas. A feita por mãos negras está por vir, está por ser feita”, disse em entrevista à Alma Preta.

Ao lado de intelectuais como Clóvis Moura e Lélia Gonzalez, Nascimento propôs, de forma inovadora, o uso de categorias africanas como ferramentas interpretativas. Entre elas, destacam-se os conceitos de Ôrí e Quilombo.

Orí: ancestralidade e renascimento

A palavra “Ôrí”, de origem iorubá, significa “cabeça” e, segundo Beatriz Nascimento, representa também a intelectualidade e a espiritualidade. “O Ôrí seria o renascer em vida. É como se o corpo, a alma e a mente se juntassem na mesma temporalidade. Um autoconhecimento”, explica Rodrigo dos Reis.

Em seus escritos, Nascimento utilizou o conceito como chave interpretativa da história negra no Brasil. A proposta é reinterpretar a formação da população brasileira não a partir de uma perspectiva colonial, mas da experiência e da memória de africanos e seus descendentes. “Ela tentou formular uma história do Brasil a partir da perspectiva do Ôrí”, reforça Rodrigo.

Ao adotar a linguagem de matriz africana para pensar a história, Beatriz Nascimento propôs o deslocamento da centralidade eurocêntrica da historiografia. “As palavras africanas carregam revelação, evocação e invocação. Quando você fala quilombo ou Ôrí, você está revelando algo”, afirma Rodrigo.

O pesquisador ainda destaca que os conceitos africanos não têm um único significado, eles são polissêmicos, no entanto, na obra de Nascimento, o significado de Ôrí surge como “descobrir algo novo”.

Quilombo como espaço de liberdade

Para Beatriz, o quilombo não era apenas um espaço geográfico de resistência durante o período escravista. Era também um símbolo político, cultural e histórico que conecta o passado africano à realidade brasileira. Ela foi uma das primeiras intelectuais negras brasileiras a articular a noção de quilombo à diáspora africana.

A partir de leituras, de consulta à documentação colonial e de uma viagem a Angola, ela estuda os kilombos africanos que são contemporâneos da formação de Palmares”, explica em entrevista o geógrafo Alex Ratts, pioneiro na criação de coletâneas com obras produzidas por Beatriz Nascimento, entre elas uma publicada com a filha de Beatriz, Bethania Nascimento: “Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento”, de 2015.

Nos anos 1970 e 80, eram raras as pesquisas que discutiam América, Europa e África. Beatriz Nascimento foi pioneira ao propor esse elo e ampliar o significado do quilombo como experiência de liberdade, território e cultura, ligando-o ao presente e às lutas negras contemporâneas.

Corpo, memória e imagem

Outro eixo central no pensamento de Beatriz Nascimento é a relação entre corpo e memória. Sua abordagem valoriza o corpo negro como lugar de saber, reconfigurando os significados da história a partir da experiência vivida. Rodrigo dos Reis observa que essa abordagem envolve “a vontade do historiador de criar histórias e responder perguntas”, inclusive aquelas que o próprio tempo parece não permitir mais.

Para o pesquisador, o “desejo de nunca ter vivido em cativeiro”, expresso por Beatriz Nascimento, é uma forma de elaborar um passado que produza liberdade.

Ela desenvolve essa ideia de nunca ter vivido em cativeiro. O quilombo, né? Porque se a gente for pensar, aqueles quilombolas não estavam em cativeiro, eles estavam produzindo a liberdade. Então, se tem um lugar que a gente pode imaginar que não é viver no cativeiro é o quilombo”, conta emocionado Rodrigo.

Beatriz Nascimento também utilizava a performance e a oralidade como formas de expressão política e intelectual. Seu filme “Ôrí” (1989), dirigido por Raquel Gerber, é considerado por ela mesma como uma tese audiovisual.

Ela escreve em primeira pessoa, mesmo em textos científicos. Há toda uma performance nesse sentido”, destaca o doutorando. “Ela percebeu que a história tem uma limitação em termos de expressão. Então criou imagens quando escrevia e também por meio do cinema.”

Gênero, raça e classe em interseção

Em seus escritos e falas públicas, Beatriz Nascimento também elaborou uma reflexão pioneira sobre a condição da mulher negra. “Em meados da década de 1970, Nascimento, assim como Lélia Gonzalez, fizeram reflexões e publicações sobre a mulher negra com uma perspectiva interseccional entre raça, sexo e classe”, pontua Alex Ratts.

Sua análise sobre as violências do Estado, as exclusões estruturais e as imagens projetadas sobre corpos negros contribuiu com debates que hoje fazem parte das lutas feministas negras e dos estudos interdisciplinares sobre raça, gênero e território. “Atualmente, sua obra é estudada nas áreas de história, ciências sociais, educação e artes”, completa Ratts.

A busca de Beatriz Nascimento por uma história feita por mãos negras não se limitava a uma mudança de conteúdo, mas também de forma. Ao usar a primeira pessoa em textos acadêmicos, contrariando convenções historiográficas, ela afirma o lugar da intelectual negra como sujeito da escrita e da memória.

Ela está ciente de que tem uma missão, uma responsabilidade social no sentido de narrar essa história — e se pôr nessa história também”, explica Rodrigo dos Reis. “Mesmo na parte científica, histórica, ela escreve em primeira pessoa. Há toda uma performance nesse sentido

A proposta de Beatriz Nascimento era reinterpretar a formação do Brasil a partir da experiência negra. Para isso, ela não só dialogou com pensadores como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, mas também os confrontou.

Beatriz está no mesmo patamar desses homens brancos. Ela dialoga com essa historiografia para criar outra visão de Brasil. Uma feita a partir de outros parâmetros, com outras linguagens”, afirma Rodrigo.

Uma poeta da história

A produção de Beatriz Nascimento é marcada pela inseparabilidade entre história e poesia. “Não dá para entender Beatriz lendo só a parte teórica ou só a poética. Sua poesia é uma teoria da história”, define Rodrigo dos Reis. Ele propõe, inclusive, nomeá-la como “poeta da história”.

Mesmo sem estar vinculada formalmente ao pensamento decolonial, Beatriz Nascimento antecipou debates que só ganharam corpo nas universidades a partir dos anos 1990. “Ela não é decolonial, mas luta contra a colonialidade do poder, que está nas nossas relações até hoje”, afirma Rodrigo.

Para o historiador, é urgente revisitar os aspectos menos conhecidos da sua obra. Um deles é a noção de “paz quilombola”. “Enquanto a historiografia falava do escravo rebelde, ela dizia: ‘Vamos falar da paz’. Era no momento de paz que se preparava para a guerra. Esse é um conceito ainda pouco explorado”, observa.

O pesquisador também aponta outra abordagem que merece destaque em futuros trabalhos sobre Beatriz Nascimento: a sua luta contra o mito da democracia racial. Uma luta travada pelo movimento negro desde os anos 1970, principalmente pelo Movimento Negro Unificado (MNU), que surgiu em 1978.

Seria legal pesquisar como eles desenvolvem uma ideia de consciência negra. Qual foram os recursos, quais foram as ideias, as estratégias políticas para se chegar a uma consciência hoje negra”, reflete o historiador.

Uma referência para o presente e o futuro

O pensamento de Beatriz Nascimento continua influente. Ela é referência para artistas, pesquisadores e militantes que buscam repensar a história do Brasil sob outros parâmetros. “Estudando ela, você começa a se repensar como negro no mundo”, diz Rodrigo. “As referências negras são importantes por causa disso. Estudando Beatriz, eu me reconheci”.

Essa força de mobilização subjetiva é um dos motivos pelos quais sua obra permanece viva. “Quando jovens negros, velhos, não importa a idade, sexo, gênero, nada. Quando eles verem a imagem, lerem, verem o filme Ôrí, verem, lerem a Beatriz Nascimento, eles vão se reconhecer. Aí é uma coisa muito individual e tem a ver com a experiência de cada um.”

O legado de Beatriz Nascimento segue importante e potente, sendo resgatado, sobretudo, por mulheres negras. “Quem manteve a memória dela foi a militância negra, especialmente as mulheres”, conclui Alex Ratts.

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Com informações da Alma Preta.

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