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(FOTO/ @rawpixel.com/ Nappy). |
Prestes
a completar dez anos, a lei que garante o acesso de estudantes da rede pública
às instituições federais de ensino superior deve passar por revisão até agosto
deste ano. O prazo é previsto na própria legislação, sancionada em 2012 pela
então presidente Dilma Rousseff.
Mas
parlamentares defensores da lei têm receio de que o debate em meio à campanha
eleitoral deste ano provoque “retrocesso” na lei e defendem o adiamento da
revisão.
Popularmente
conhecida como Lei de Cotas, o texto – que também assegura reserva de vagas a
pessoas pretas, pardas, indígenas e com deficiência – é alvo de projetos no
Congresso Nacional que limitam o alcance das medidas.
A
lei em vigor foi sancionada em agosto de 2012, após experiências consideradas
satisfatórias em instituições públicas de ensino superior. O texto prevê que:
50%
das vagas oferecidas em cada curso de graduação devem ser destinadas a alunos
que cursaram o ensino médio integralmente na rede pública;
dessas
vagas, pelo menos 50% devem ser preenchidas por estudantes com renda familiar
per capita inferior a 1,5 salário mínimo;
o
preenchimento dessas vagas deve seguir a mesma proporção de pessoas pretas,
pardas, indígenas e com deficiência da unidade da Federação onde fica
instituição de ensino, seguindo os dados do censo mais recente do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Inicialmente,
ao ser sancionada em 2012, a lei previa que caberia ao Executivo a iniciativa
de revisão.
No
entanto, em 2016, o artigo foi modificado, e a lei passou a estabelecer somente
que há necessidade de revisão em dez anos, sem determinar a qual instância
caberá fazer a revisão.
Originalmente,
o artigo 7º da lei dizia: “O Poder Executivo promoverá, no prazo de 10 (dez)
anos, a contar da publicação desta Lei, a revisão do programa especial para o
acesso de estudantes pretos, pardos e indígenas, bem como daqueles que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, às instituições de educação
superior”.
Após
a alteração, a redação do artigo passou a ser a seguinte: “No prazo de dez anos
a contar da data de publicação desta Lei, será promovida a revisão do programa
especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos,
pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas”.
Adiar a revisão
Coordenador
de uma comissão especial sobre o tema na Frente Parlamentar Mista da Educação,
o deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) diz que, com a proximidade do debate
eleitoral, há um temor de que as propostas contrárias às cotas raciais
prosperem e ganhem mais apoio.
“Certamente,
teremos dificuldade de fazer uma boa discussão com o atual governo. O próprio
ministro da Educação já mostrou ser contrário à política de reserva racial. O
balanço da lei é positivo, mas os efeitos são insuficientes para enfrentar
tamanha desigualdade racial no que diz respeito ao acesso às universidades. A
gente precisa manter a política para colher os frutos”, afirma.
Diante
da possibilidade de o governo colocar “obstáculos”, ele diz que tem crescido o
apoio para o Congresso adiar a revisão da lei. O prazo atual termina em agosto,
mesmo mês de início da campanha eleitoral.
Bira
do Pindaré afirma que uma das propostas sobre o tema na Câmara já tramita em
regime de urgência desde novembro e, na prática, pode ser analisada diretamente
no plenário.
Esse
texto, relatado pelo próprio parlamentar, adia a revisão da Lei de Cotas para
2062 e cria um Conselho Nacional das Ações Afirmativas no Ensino Superior para
monitorar e elaborar, a cada cinco anos, relatórios sobre a política pública.
Bira
do Pindaré afirma que já trabalha em um texto de consenso entre os
parlamentares. “Temos que discutir também a possibilidade de ampliação das
cotas. Por exemplo: não há cotas para ingresso em pós-graduação, e muitos parlamentares
desejam isso”, diz.
Em
2020, o Ministério da Educação tentou acabar com incentivos às cotas na
pós-graduação, mas a portaria acabou revogada.
Propostas no Congresso
Levantamento
do g1 nos sistemas da Câmara e do Senado identificou pelo menos 40 projetos que
alteram trechos já existentes ou incluem novas regras na Lei de Cotas.
A
maior parte prevê ampliações no programa de cotas, como a criação de vagas
reservadas na pós-graduação.
Há,
no entanto, projetos que tentam reduzir e até extinguir as regras de acesso
diferenciado.
Parlamentares
de oposição ao governo Jair Bolsonaro dizem haver risco de retrocesso sobretudo
nas regras relacionadas às cotas raciais.
Outros
projetos sobre a Lei de Cotas em tramitação no Congresso sugerem:
a
definição de critérios permanentes, sem revisão periódica;
a
criação de cotas em vagas ociosas ou remanescentes;
o
estabelecimento de auxílio-permanência para estudantes em situação de
vulnerabilidade socioeconômica;
a
criação de cotas para vagas de pós-graduação;
a
criação de cotas para alunos residentes ou oriundos de abrigos e instituições
de acolhimento;
a
criação de mecanismos para que idosos sem curso superior completo ingressem nas
instituições sem processo seletivo ou concurso;
e a
prioridade de ingresso, por meio das cotas, ao estudante residente no município
em que a instituição de ensino está situada.
A posição do governo
Em
2018, durante a campanha à Presidência, Bolsonaro chegou a classificar a
política de cotas como “equivocada” e “coitadismo”. Após eleito, no entanto,
não voltou a falar do tema.
Durante
audiência da Comissão de Educação da Câmara em novembro de 2021, o ministro da
Educação, Milton Ribeiro, disse ser favorável apenas às cotas de cunho
“social”.
“Se
tem um negro que tem condição, é minoria, mas tem condição de acesso a estudar
em outras escolas, ele não precisava de cota, nem alegar cota”, declarou
Ribeiro.
Incerteza jurídica
O
debate sobre a validade das regras atuais da Lei de Cotas pode ultrapassar o
próprio Congresso.
Como
a lei não define com clareza o processo de revisão, há possibilidade de o tema
ir parar no Supremo Tribunal Federal.
No
entendimento de juristas consultados pelo g1, a falta de detalhamento abre
espaço para duas correntes:
uma
que defende que a lei perde a eficácia em 29 de agosto – prazo descrito na lei
para reforma;
e
outra que argumenta que, caso não haja revisão, a lei deve ser mantida em vigor
com o texto atual.
O
entendimento pela manutenção da lei foi corroborado pela comissão de juristas
criada pela Câmara dos Deputados para propor mudanças na legislação de combate
ao racismo.
Em
relatório entregue ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em novembro
passado, o grupo concluiu que a “revisão prevista em seu artigo 7º não guarda
relação com a vigência da lei”.
Um
dos membros da comissão da Câmara, o advogado e professor da Fundação Getúlio
Vargas (FGV) Thiago Amparo afirma que a Lei de Cotas “não condiciona a vigência
da lei a um prazo determinado, mas apenas prevê uma revisão”.
Segundo
Amparo, o artigo da lei trata apenas da necessidade de uma “avaliação em um
determinado prazo”.
“É
diferente da Lei de Cotas no serviço público, onde expressamente se lê que a
lei tem vigência de dez anos”, afirmou.
No
mesmo relatório, a comissão de juristas defende a política de cotas e diz que
ainda “não é possível dizer que o objetivo da Lei de Cotas tenha sido atingido,
pois há elementos que indicam que a porcentagem de estudantes cotistas ainda
não se equipara com a dos estudantes que ingressam por ampla concorrência”.
O
grupo defende melhorias para coibir fraudes em cotas raciais e garantir o
“efetivo beneficiamento da população alvo do critério racial”.
Ao
entrar no mérito do sucesso da política, os juristas escrevem que houve um
“crescimento no ingresso de estudantes negros (pretos ou pardos) e indígenas”,
mas dizem que os dados são imprecisos e, por isso, o debate sobre as mudanças
nesses critérios pode ser prejudicado.
O
“voo cego” da Lei de Cotas é ocasionado pela falta de um monitoramento centralizado
da política.
Em
2012, ao regulamentar o funcionamento da lei, o governo federal determinou a
criação de um comitê de acompanhamento e avaliação. Em quase dez anos, o colegiado
só se reuniu três vezes.
‘Contradição’
Para
o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, professor José Vicente, a
renovação da lei deve ser acompanhada de melhorias e de um monitoramento mais
completo.
“Temos
um déficit de atuação do governo em relação ao ingresso de pessoas minorizadas
pela sociedade na educação. A gente pode discutir a ampliação e critérios mais
bem definidos, mas não há espaço para revogação”.
Ele
avalia que a falta de apoio claro do governo às cotas demonstra uma
“contradição” já que o próprio presidente Jair Bolsonaro promulgou neste mês a
Convenção Interamericana contra o Racismo.
A
LEI É UM SUCESSO. É UMA MEDIDA JUSTA E COERENTE, E NÃO PRODUZ QUALQUER PREJUÍZO
DO PROCESSO EDUCATIVO. QUANDO AS COTAS RACIAIS COMEÇARAM PELO PAÍS, A GENTE
TINHA MENOS DE 2% DA POPULAÇÃO NEGRA NAS UNIVERSIDADES. HOJE, HÁ DADOS QUE
APONTAM UMA PRESENÇA DE QUASE 20%. MAS AINDA ASSIM HÁ MUITO PARA CAMINHAR, HÁ
MUITO PARA CRESCER. AS COTAS NÃO PODEM ACABAR, AVALIA O REITOR, QUE TAMBÉM COORDENA
O MOVIMENTO COTAS SIM.
O
artigo 5º da convenção diz que os países se comprometem a adotar as políticas
especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício
dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao
racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o
propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades,
inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos”.
No
artigo 6º, consta que os Estados também se comprometem a “formular e
implementar políticas cujo propósito seja proporcionar tratamento equitativo e
gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas, em conformidade com o
alcance desta Convenção; entre elas políticas de caráter educacional, medidas
trabalhistas ou sociais”.
Procurado,
o Ministério da Educação não quis comentar o tema até a publicação desta
reportagem.
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Por Kevin Lima, originalmente no G1.