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(FOTO | Reprodução | WhatsApp). |
Por César Pereira, Colunista
— Você viu também? — Ele disse.
— Acho que não vi nada — eu disse.
— Pois eu vi — ele disse — está lá na folhagem na jaqueira.
— Então deixa esse pra mim — eu falei.
— Mas você não acerta nada — é alface.
— Eu pego esse Dimas — te juro.
— Vamos ver — ele falou — mas se ficar com pena ele foge e você não acerta nada.
— Não vou ter pena — eu disse — vou matar ele.
Ele me entregou a arma e caminhou na frente pisando cuidadosamente na folhagem do chão da horta, não fosse eu fazer barulho, assustar o sariguê. Parou estudando o entremeio das fruteiras, uma réstia de sol atravessou as copas e iluminou o seu rosto. Eu estava atrás dele, a respiração contida, a boca seca.
Ouvimos mexer num galho, seria ele, avisei, mas Dimas me pediu silêncio me detendo com a mão, cedi o passo, apertei a arma nos braços, senti o ferro frio umedecendo meus dedos, olhei para baixo e me vi parado pisando na terra, meus pés escuros fundindo-se ao barro cinza. Descansei o corpo sobre uma perna, eu esperava por ele e então o vi avançar agachadinho, mas não me movi, estático. Contemplava em silêncio a luz da manhã, o vento era uma sombra pairando sob a folhagem viva do bananal. Esperei. Olhei em torno de mim. Eu estava desamparado. Os braços apertando a garrucha contra o corpo, havia o frio da madeira polida da coronha e do metal enferrujado da culatra.
Senti que ele me chamava com a mão, com um gesto de mão. Caminhei até ele pisando no limpo das folhas no solo. Tendo cuidado pra não fazer barulho cheguei na ponta dos pés. Estava agachado escrutinando, buscando a caça. Imitei ele, apoiei a mão esquerda no chão, a terra crespa e dócil, o sol veio se aquecer na pele dele.
A correia do bornal atravessada no seu tronco nu e preto. Mexeu lá no bornal, catou uma coisa lá dentro, um chumaço de bucha, pensei que ia carregar a espingarda, mas não pegou nem chumbo nem pólvora. Fez uma bolota com a bucha e esperou. Esperei também atrás dele. O sol subia-lhe pelas costas e um filete de suor lhe escorria pela espinha. O silêncio apertou entre nós. Me abaixei mais e desenhei uma letra na areia, minha inicial, mas não cheguei a escrever André.
Apaguei a letra com a palma da mão e limpei a poeira no calção. Ele se mexeu lá na frente, me chamou e eu fui, emparelhamos, ele me mostrou entre as folhas, descansando numa forquilha da jaqueira. Meu coração apertou, voraz e sombrio, o sangue ardia nas minhas orelhas. O saruê olhava pra gente, os olhos frios parados. Pensei — vou desertar — procurei o gatilho do fuzil, o tremor nas pernas, encostei o joelho no chão e fiz a pontaria.
Mas o sol se moveu lá nas folhas e eu soltei o ar dos pulmões. Estava salvo, enfim aliviado, logo eu não podia matar aquele, ela, Dimas me disse. Ali era uma mãe sariguê, os filhotinhos juntinhos no pelo dela. Descansavam, eram quantos? — Dimas disse que muitos, todos timbós. Ninhada grossa, aquilo não era caça, pois era uma família. E se nós pelo deus castigados?
Dimas espalmou as mãos no ar e limpou o suor com os dedos. Voltou-se pra mim.
— É sem chance Deco, vamos daqui.
Seguimos entre as leiras de batatas pisando nas folhas secas espalhadas por ali. Chegamos debaixo da goiabeira carregadinha de frutas, mas todas carunchosas, não se podia comer daquelas goiabas e era pena. Elas todas só pra alegria de sanhaços e sanharós.
O bicho já vinha na flor, a larva amadurecia na fruta. Gostavam muito da goiaba branca dessa mesma que a gente queria comer muito também. Ouvindo mexerem no capim Dimas preparou fogo, eu estaquei mais para trás. Minha hora já havia passado. Tomei graveto do chão e fui ciscando as folhas pros lados, quando pôs a cabeça fora do pasto vimos o que era, e era um bico-doce pintalgado de branco, mas iluminado de verde. Vinha catando aranha e vespão que disso ele se regala.
Dimas descansou a arma no solo e se pôs a urinar no tronco da goiabeira. Imitei ele e mijei num buraco que desmoronou sob a torrente. Fiquei alisando a terra molhada com o pé e fazendo sulcos para a urina escorrer num regatinho.
Depois ficamos os dois ouvindo o calango varejando a folhagem e o chão lá longe sob as laranjeiras. De repente Dimas se coçou lá nele e disse.
— Vem comigo André — falou me olhando de frente — esta hora ela estará sozinha em casa.
— Você quer que eu vá — eu perguntei.
— Estou te chamando, não estou? — Dimas disse.
— Mas vamos pra onde? — Eu quis saber.
— Lá na Selminha — Dimas disse — você não entendeu ainda?
— ? — Olhei assim vago pra ele.
— Vou pimbar com ela — Dimas falou.
Subimos de volta pela vereda e pulamos a cerca do quintal. Quando chegamos atrás da casa ouvimos o silêncio lá dentro. Uma cigarra se desesperou entre as flores do sabugueiro, ouvíamos ela quebrando a luz do sol, a claridade ardia. Voltamos a ouvir o silêncio lá dentro. Ali perto uma lagartixa se espichava na parede de barro. Demos a volta na casa. A cigarra parou de cantar. Paramos na porta da cozinha e esperamos.
— Quem está aí — Dimas perguntou.
— Ninguém — disse Selminha — estou eu, mas a menina também está.
— Você quer hoje — Dimas perguntou — não tive sorte na caça.
— Mãe e pai não estão — disse Selminha — o dia todo na roça.
— Assim a coisa dar certo — disse Dimas — você deixa?
— E ele — perguntou Selminha.
— Ele cuida da menina — falou Dimas.
— Deixo — falou Selminha abrindo a porta — vamos pro quarto.
— André você fica aqui — falou Dimas — a menina também fica.
A menina era pequena e loirinha e estava sentada no chão da sala de janta. Eu me sentei perto. Lá fora a cigarra voltou a atacar e eu ouvia calado.
César Maria Francisco
26-07-2025
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