22 de julho de 2025

Dia de apedrejar Maria


(FOTO | Reprodução | WhatsApp).

Por César Pereira, Colunista

Calada ao lado dos irmãos Maria não comia, não olhava para frente, não querendo encará-los, as mãos fechadas sobre o colo e uma formiga rubra passeando no vestido. Parou de respirar e ouviu o irmão mais velho esperando. Rígido na sua cadeira o pai comia em silêncio, mas sem apetite, os olhos duros e ausentes.

          — Coma alguma coisa — falou a mãe.

          — Não posso, não tenho fome — disse Maria.

          —Não está em condições de não sentir fome — disse a mãe.

          — Agora que já se acabou, o que mais você quer fazer? — perguntou o pai espalmando as mãos sobre a mesa.

          — Não fale assim, Joaquim — disse a mãe. — Não recomece a história.

          — Não posso falar — perguntou o pai. — Então posso calar.

          — Não estou lhe proibindo de falar — disse a mãe. — Você é o pai.

          — Falo então como um pai — disse o velho Joaquim.

          — Pois fale como o pai de uma filha que — disse a mãe — logo você compreenderá toda a coisa. Maria não soube caminhar e agora a entregamos ao mundo?

          — Ninguém propõe abandono — falou o velho Joaquim — mas eu pensei em respeito.

          — Sua filha e seu sangue, Joaquim.

          — Quando te contou o caso? — Perguntou o pai.

          — Soube antes de você. Precisa entender que mãe não repara nessas coisas.

A mulher estendeu ao marido a jarra de água, se servisse ou deixasse que ela o servisse com um pouco de água, aquela raiva, não se deixasse transir pelo ódio. O importante é que Maria tinha pai, tinha mãe e os irmãos e estava dentro de casa.

          — O grande argumento — disse o velho Joaquim.

          — Uma fraqueza — disse a mãe — devemos entender, como pais. Eu como mãe, o senhor como pai. Sem amparo que será de Maria?

A moça se encolheu na cadeira, procurava não roçar o cotovelo no corpo do menino que a ladeava. A formiga rubra seguia pelo seu colo, já chegava ao decote. Mil perninhas dedilhando sua carne escura. Sentiu o vento entrando pela janela, era meio-dia e a claridade ardia sobre o verde escuro do bananal.

Ouviu a janela se arrastando nos gonzos, ela pensou se deveria com um gesto espantar a formiga, voltar a ser íntegra, estender-se na cama, abrasar-se no calor da tarde, entrar no banheiro e respirar o ar pesado de ureia e sabão.

Ouviu a voz do pai e acordou sentada a mesa.

— Então por que não resolveram isso? — Perguntou o pai.

Confessara tudo à mãe que se encarregara de dar a notícia ao pai, aos irmãos, entregá-la à opinião da família. Antes que a mãe falasse precisava assumir atitude sábia e convicta, desguaritada, mas digna, olharia para baixo e depois se ergueria da mesa como uma raiz se ergue do chão. Quem mais forte do que ela para obrigá-la a tudo? A mãe podia falar, ela não falaria nada, de calada passaria por muda, falassem, dissessem, pensassem. Tinha uma vida, não a impediriam nunca de ser integrante do mundo.

Cediça. Que importância teriam aqueles cultivos para ela? — Cansara-se de dizer à mãe que muito a inquietava aquele segredo guardado sob a penugem áspera, aquele único olho intumescendo de dor e frio, umedecendo sua carne, desalinhando seu dia. Tinha mãos, tinha asas, deixassem que ela lançasse sua própria semente na terra, que ela colhesse seu próprio fruto, que fosse ave ou inseto ou pedra ou rio.

Não a deixassem presa na encosta ou na margem, entendessem, não era planta, tinha raízes, mas tinha asas.

— O João você isenta — perguntou a mãe. — É o homem, mas alguma coisa lhe cabe.

— Esse muito esquecidinho da caridade que lhe fiz quando órfão de pai.

— Dessas coisas não se fala, Joaquim. — Disse a mãe — bondade feita, logo esquecida.

— Meu pai me escute — falou o irmão do meio — Joãozinho veio de caso pensado. Nada nós não percebemos. Entrava na casa, confiança nele era muita. Tinha até acesso aos quartos.

          — Nosso erro foi não vigiar o João — disse o irmão mais velho — nunca nosso amigo. Estava mesmo era de olho na Maria.

          — É o que eu digo — falou a mãe — nossa filha não fez sozinha. O Joãozinho era o lobo, nós abrimos as portas, ele entrou.

O velho Joaquim espalmou as mãos sobre o rosto, escorregou os dedos sobre a face, espantou uma mosca que voava a sua volta, a mosca veio pousar sobre a tolha da mesa, Joaquim estava oco, parou o olhar sobre a mosca pousada, e assim abstrato e cansado escutava as bolhas de sol estourando no ar da sala.

Maria se encolheu mais no seu canto, a formiga rubra caminhando sob a sua pele, a mãe mexia a comida no prato, o irmão mais velho se levantou da mesa e foi até a janela, olhou o sol, ainda era meio-dia e o vento estava parado sobre as folhas reverberantes das bananeiras. Lá na entrada do monturo as galinhas descansavam na sombra da mangueira, tinham parado de pastar, as galinhas.

Atrás dele o pai continuava calado e como o irmão do meio se impacientasse com a abstração do velho retirou-se da sala deixando a comida mexida no prato.

O menino emparelhava grãos de arroz na borda do prato. Pensava justamente em como João tinha feito um bebê em Maria. O bodoque novo, a gaiola na mão. Ouviu a fala chamando, cresciam as batidas de asas. Entrou na vereda, caminhou pela horta. Viu-o voando sob a folhagem. E ele sempre atrás do corrupião, o peito dourado e o canto assobiadinho.

Seguiu-o pelo caminho das galinhas até o poço. Bem ali no meio do bananal, deitados nas folhas. Esperou ouvindo a voz de Maria:

— Eu te ensino Joãozinho: — Brinca comigo assim, eu venho por cima e tu fica por baixo, não tema formiga, não tema lacrau, eu tudo limpei, aqui nosso dossel de amores.

Parou ali junto deles, olhou pra Maria, mas não olhou pra João.

— Seguindo minha sombra irmão — perguntou Maria.

— Era um corrupião, vocês viram?

— Voando pro lado do rio, aposto que na goiabeira branca — disse João — quinhentos cruzeiros por ele, você quer?

          Moscas voando dentro do silêncio duro da sala até que a mãe disse ao pai:

          — Sugiro que falemos com a Zezé — sempre é tua irmã, o João teu sobrinho, então ela obriga o filho assumir a Maria.

          — Não conte com isso minha mãe — disse o filho mais velho voltando-se pra dentro — o primo João já está posto no mundo.

          — Fugiu — perguntou a mãe — mas fugiu pra onde?

          — Ninguém ignora que o Joãozinho noivo da Suzana — disse o filho — refugiado na casa dos sogros, aposto.

          — Acabem logo com isso — disse o pai — preciso respirar agora, vou lá fora tomar ar.

          — Leve o menino também — disse a mãe.

          — Para quê, ele já sabe de tudo — disse o pai.

          — Não importa o que você acha — falou a mãe — leve o menino.

          O pai levantou-se da mesa e saiu pela porta da cozinha. Viram quando ele entrou na vereda do rio e seguiu pelo caminho da horta.

Depois não se falou mais daquilo e ficou Maria com a criança crescendo no ventre. Ajudada pela mãe Maria preparou o enxoval do bebê. Não tinha culpa a menina. Quando ela descobriu que teria uma menina pensou que o João precisava saber que seria o pai de uma filha. Escreveu bilhetes que não enviou, soube depois, já corriam os banhos do primo.

          Primeira vez que João lhe sugeriu o ato ela se negou:

          — Você nem parece que gosta de mim, Mariinha — disse João.

          — Pedi uma prova do seu amor — disse Maria — aposto que nem se lembra.

          — Mariinha reflita — disse João — eu chegando para a mãe e dizendo: — Dona Zezé não tenha esperanças, teu filhinho aqui largou a Suzana, prefere a Maria.

          — Não sou melhor que a sirigaita?

          — Mil vezes — disse isto e enlaçou o corpo da prima com os dois braços. O vento passou encrespando as folhas das bananeiras. Maria desvencilhou-se do primo e foi postar-se encostada no tronco do abacateiro.

          — Desconfio que você não me quer Maria.

          — Desconfio que você só quer desfrutar de mim João.

          — Você quer que eu lhe prove que você a única pra mim Mariinha?

          — Não tenho nenhuma esperança.

Mas o primo não se rendeu. Veio com os bilhetes, veio com a justificativa de que — caso apenas por obrigação, mamãe quem quer que eu case, então eu obedeço, mas na Suzana eu não encosto, não toco num fio de cabelo dela. Fica sendo a minha empregadinha, mas você a predileta. Nas suas mãos toda a minha felicidade Maria.

          — Posso confiar em você João — perguntou Maria.

          — Feche os olhos, eu lhe guio — disse João.

          — Quando sentir a coisa, quando estiver perto de acontecer você tira?

          — Vou pôr só a pontinha — disse João.

 

César Maria Francisco

21-07-2025 

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