''Tava chorando a defensora de
bandido, Sakamoto?'' Voltando do protesto por conta da
execução de Marielle Franco, que passou pela avenida Paulista, na noite desta
quinta (15), ouvi a frase dita pela voz de um rapaz, acompanhada de risos de outros,
provavelmente seus amigos. Dessa vez não me dignei a olhar para trás e fazer
alguma brincadeira, como sempre. Apenas respirei fundo, muito fundo, e segui
meu caminho, pensando na tristeza que é ter orgulho da própria ignorância.
Já
havia me deparado com centenas de comentários ao longo do dia que celebraram o
assassinato de Marielle – liderança feminista, do movimento negro e da
comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, e quinta vereadora mais votada da capital
carioca – e de seu motorista Anderson Gomes. Boa parte deles repetia
exaustivamente abominações típicas de quem não faz ideia do que seja esse
pacote mínimo de garantias para nossa dignidade.
Alguns
dos leitores, aliás, acham que direitos humanos é o nome de um grupo de
pessoas. Escreveram que ''com a morte dessa mulher, vai ter menos direitos
humanos por aí'' ou algo semelhante.
Parte
desses jovens acha que está sendo subversiva e revolucionária, pois luta contra
a ''ditadura dos direitos humanos''. Essa ditadura, claro, é uma ficção. Pois
se eles fossem minimamente respeitados não teríamos essa taxa pornografia de homicídios,
mulheres sendo estupradas, negros ganhando menos do que brancos e pessoas
morrendo por amar alguém do mesmo sexo. Não teríamos pessoas sendo executadas
por defender a qualidade de vida de outras, inclusive daquelas que querem o seu
mal.
Achei
que valia a pena retomar trechos de um texto que eu havia escrito, em dezembro
passado, para ilustrar a situação:
Direitos
humanos dizem respeito à garantia de não ser assaltado e morto, de professar a
religião que quiser, de abrir um negócio, de ter uma moradia, de não morrer de
fome, de poder votar e ser votado, de não ser escravizado, de poder pensar e
falar livremente, de não ser preso e morto arbitrariamente pelo Estado, de não
ser molestado por sua orientação sexual, identidade, origem ou cor de pele.
Mas
devido à deformação provocada por políticos escandalosos, líderes espirituais
duvidosos e formadores de opinião ruidosos, a população acha que direitos humanos
dizem respeito apenas a ''direito de bandido'', esquecendo que o mínimo de
dignidade e liberdade do qual desfrutam estão neles previstos.
O
mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a
Declaração Universal dos Direitos Humanos para tentar evitar que esses horrores
se repetissem. De certa forma, com o mesmo objetivo, o Brasil, ainda olhando
para as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever a
Constituição Federal de 1988 – que não é um documento perfeito, longe disso. Mas,
com todos seus defeitos, ousa proteger a dignidade e a liberdade de uma forma
que se hoje sentássemos para formula-lo, não conseguiríamos.
É
depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro
e desejar que o sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos
uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção
quanto 1964 e 1985. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.
Minha
geração herdou esses textos – um de nossos avós e outro de nossos pais. Agora,
precisamos ensinar à geração de nossos filhos sua própria história sob o risco
de que o espírito presente em 1948 e 1988 se perca por desconhecimento. O
problema é que parte da geração que ajudou a escrever a Declaração Universal
bem como a Constituição de 1988 se esqueceu por completo dos debates que
levaram até elas, em nome do poder.
O
mundo está em convulsão, com guerras, ataques terroristas, crises migratórias,
catástrofes ambientais. O Brasil passa por um período sombrio, com um Palácio
do Planalto castrador de direitos, o pior Congresso Nacional de todos os tempos
(que está aprovando leis que retiram, à luz do dia, direitos de trabalhadores,
mulheres, populações tradicionais, minorias) e um Poder Judiciário que, por
vezes, faz política ao invés de resguardar a Justiça.
Contudo,
é exatamente nestes momentos que precisamos nos lembrar da caminhada que nos
trouxe até aqui. Para ter a clareza de que, mais importante do que reinventar
todas as regras, é tirar do papel, pela primeira vez, a sociedade que um dia
imaginamos frente aos horrores da guerra ou da ditadura. O que só se fará com
muito diálogo e a garantia desse quinhão mínimo de dignidade que todos têm direito
por nascerem humanos.
Só
assim frases como as que podem ser lidas abaixo deixarão a boca das pessoas
para cair no esquecimento. Frases que, não raro, nós falamos sem perceber, guiados
pela nossa ignorância, medos e preconceitos. Até que sejamos devidamente
educados para o contrário.
–
Amor, fecha rápido o vidro que tá vindo um ''escurinho'' mal encarado. – Aquilo
são ciganos? Vai, atravessa a rua para não dar de cara com eles! – Não soupreconceituoso.
Eu tenho amigos gays. – Tá vendo? É por isso que um tipo como esse continua
sendo lixeiro. – Por favor, subscreva o abaixo-assinado. É para tirar esse
terreiro de macumba de nossa rua. – Bandido bom é bandido morto. – Tinha que
ser preto mesmo! – Vestida assim na balada, tava pedindo. – Por que o governo
não impede essas mulheres da periferia de ter tantos filhos assim?. Depois, não
consegue criar e vira tudo marginal. – Mulher no volante, perigo constante. –
Sabe quando favelado toma laranjada? Quando rola briga na feira. – Os sem-teto
são todos vagabundos que querem roubar o que os outros conquistaram com muito
suor. – A política de cotas raciais é um preconceito às avessas. Ela só serve
para gerar racismo onde não existe. – Ai, o Alberto, da Contabilidade, tem
Aids. Um absurdo a empresa expor a gente a esse risco. – Esse aeroporto já foi
melhor. Hoje, tem cara de rodoviária. – Por mim, tinha que matar mulher que
aborta. Por que a vida do feto vale menos que a da mãe? – Os índios são pessoas
indolentes. Erram os antropólogos ao mantê-los naquele estado de selvageria. –
Criança que roubou não é criança. É ladrão e tem que ir para cadeia. – Tortura é método válido
de interrogatório. – Um mendigo! Vamos botar fogo nas roupas dele. Assim ele
aprender a trabalhar. – Pena de morte já. – Eutanásia? Pecado. A vida pertence
a Deus, não a você. – Temos que tirar essas regalias trabalhistas. O Brasil não
aguenta crescer com tantos custos engessando o desenvolvimento.
Por
fim, gostaria de dar parabéns a todos
que veem tudo isso acontecer ao seu redor, mas preferem ficar na ignorância
quentinha de sua bolha na rede social porque pensam que o mundo lá fora é a
barbárie. Afinal, a ignorância coletiva precisa, para se reproduzir, do
silêncio dos que têm consciência, mas não falam.
E
o silêncio é sentença de morte dos direitos humanos. (Por Leonardo Sakamoto, em seu Blog).
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Marielle Franco. (Foto: Reprodução/ Blog do Sakamoto). |
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