Pela
primeira vez um filme norte-americano coloca o tema da ancestralidade africana
no contexto de discussão crítica ao colonialismo e de roubo e exploração das
riquezas do solo africano. Dirigido por Ryan Coolger, um jovem negro formado
pela Universidade da Califórnia, o filme Pantera Negra estreia no cinema
brasileiro produzindo entusiasmo e contentamento entre ativistas negros(as) de
diferentes matizes ideológicas, não apenas por apresentar referências positivas
de identidade negra, mas também por colocar o continente africano fora da
lógica da pobreza e do subdesenvolvimento estruturais. É importante destacar
que Pantera negra também se coloca em uma perspectiva de resposta para uma
indústria cinematográfica que tem sido contestada pelo seu racismo e machismo
nas principais premiações, que ano após ano sequer indicavam negros aos
prêmios.
Ao
vincular altíssimo desenvolvimento tecnológico com rituais e saberes
tradicionais, evidenciando o poder das mulheres no reino fictício de Wakanda, o
diretor coloca em discussão não apenas a relação entre magia e tecnologia, como
substrato de subordinação e exploração do mundo capitalista, mas como expressão
de afirmação de alteridade e poder que se desenvolvem de forma autônoma e
solidária. Neste contexto, o protagonismo e o poder feminino trazem à tona as
sociedades matriarcais africanas, revelando a capacidade, a força e autonomia
na gestão da vida e também o compromisso com interesses do bem-estar coletivo.
Com um exército totalmente composto por mulheres, Wakanda revela o lugar de
estrategista, defesa, resistência e de lealdade ocupado por muitas mulheres em
sociedades matrilineares e matriarcais africanas.
Enquanto
o mundo capitalista, usurpador das riquezas minerais africanas continua olhando
a África como um lugar de muita miséria, magia e superstição, o reino de
Wakanda se desenvolve em termos de relações políticas, étnicas e produção de
riqueza, a partir de sua base material e espiritual. Todo o desenvolvimento se
dá em razão de uma busca inteligente e respeitosa das forças que emanam dos
reinos minerais, animal e vegetal.
Em
torno do vibranium, um mineral raro e fictício; da pantera negra, um animal que
representa um clã ancestral; e da erva do coração, um vegetal que permite o
acesso ao mundo ancestral; o reino de Wakanda recoloca novos e velhos sentidos
e significados de ritual e ancestralidade para pesquisadores, ativistas e
religiosos envolvidos com a África e suas diásporas. Em razão de sua complexidade e dos interesses
que estão em jogo e em disputa no mundo capitalista, aqui vou deixar de lado
duas questões fundamentais colocadas no filme: 1- a discussão e a forma de
exploração de metais raros e preciosos no subsolo africano; 2- o debate sobre a
necessidade de transferência tecnológica para que os africanos se apropriem de
suas riquezas. Seguindo uma linha de argumento possibilitada pelo trabalho do
diretor, tomo a direção do diálogo com as forças do mundo ancestral, cuja
mediação se dá por meio de ritual.
Embora
a Pantera como representação de divindade ancestral seja praticamente
desconhecida da maioria dos adeptos das religiões brasileiras de matrizes
africanas, não se pode negar sua existência e seu culto no candomblé Jêje,
através do vodun Kpòsú. O seu desconhecimento decorre tanto da predominância
dos estudos e da difusão da tradição ioruba quanto da diminuição e dificuldade
de expansão do candomblé Jêje. Na tradição do candomblé Jêje, Kpòsú é um vodun
de luta, poder e força que funda o clã filhos da pantera. No filme, a pantera
negra é a divindade ancestral que além de ter permitido o acesso e o
conhecimento sobre os poderes do vibranium, utilizado inclusive para curar
ferimentos mortais, também indicou a necessidade do cultivo da erva do coração,
cujo preparo e administração por meio ritual permite o acesso a verdades
existentes no mundo ancestral.
Do
ponto de vista religioso, na perspectiva das religiões tradicionais, a erva do
coração da Pantera Negra relativiza o poder do sacerdote e das sacerdotisas
como responsáveis pela manutenção de uma tradição e coloca no sujeito do culto
a responsabilidade de acessar, pelo coração, as verdades do mundo ancestral.
Não há em Wakanda um sacerdote ou uma sacerdotisa responsável por um oráculo
que determine o caminho a seguir. Esse tipo de determinação, por um lado,
pertence ao campo da pesquisa científica e tecnológica e, por outro lado, ao
conselho de anciãos, lideranças políticas e militares. O acesso ao mundo
ancestral através de rituais tradicionais se faz necessário toda vez que um
novo rei se torna responsável pela condução dos destinos do povo. Neste
momento, entra em cena o trabalho de sacerdotes e sacerdotisas, como
responsáveis em preparar e proporcionar a experiência.
O
filme mostra que o ritual realizado com erva do coração, embora permita o
acesso a verdades que estão guardadas no mundo ancestral, não tem poder de
mudar escolhas e condutas dos sujeitos. Aliás, o acatamento e a vivência do
ritual dependem do efetivo compromisso em preservar uma tradição em seu
significado mais amplo, como lócus de autoconhecimento e cura de traumas e
paranoias. O acesso ao sagrado ancestral
se dá pelo uso ritual da erva do coração. Isto não é uma metáfora cinematográfica,
mas uma verdade religiosa que deveria fazer sentido para todas as pessoas que
racionalizam a experiência religiosa individual, sobretudo para desqualificar e
rejeitar a experiência do outro. Essa
perspectiva se inscreve no bojo da filosofia de Blaise Pascal(1623-1662) para
quem “É o coração que sente Deus, e não
a razão.”
O
filme apresenta experiências rituais de dois reis que assumem o trono de
Wakanda. O primeiro conhece bem e valoriza o sentido do ritual, o segundo rei
se submete ao ritual; porém, por não aceitar aquilo que acessa como verdade,
manda destruir a sua base de realização. A tentativa de destruir o ritual e a
plantação da erva do coração é protagonizada por um descendente direto da
família real de Wakanda, um príncipe abandonado pelo tio que matou o próprio
irmão. Trata-se Erik Killmonger, personagem vivida pelo ator Michael Bakari
Jordan, que consegue chegar ao reino de Wakanda, após estudar muito e fazer
parte do grupo de elite da espionagem norte-americana. Seu instinto de vingança
por ter sido abandonado pela família e seu conhecimento das relações de
opressão capitalista e dominação colonial fizeram dele não apenas um
estrategista de guerra de destruição, mas também alguém obstinado por um
projeto de poder que além de não transigir com saberes tradicionais, pretende
assumir a mesma lógica do opressor. Ao
acessar a verdade de sua história através do ritual, Killmonger retorna
indignado, porque descobre que o pai também sofre a experiência do abandono, não se encontra em um lugar de honra no mundo
dos ancestrais. Afinal ele traiu seu povo repassando o segredo e os poderes do
metal precioso. Após ser informado que a tradição estabelece a obrigatoriedade
de passagem por aquele ritual aos sucessores do trono de Wakanda, ele ordena a
destruição da plantação da erva do coração.
Como
o antagonista ao projeto político e humanitário de Wakanda, Killmonger nos
apresenta como um corpo pode ser apropriado e totalmente desumanizado pelo
racismo e pela violência do Estado. É o personagem que coloca o dilema da
representação identitária negra atrelada ao desconhecimento absoluto da
história ancestral. Que reflete o vazio que o povo negro carrega por tudo o que
o ocidente tomou e todo o desenvolvimento social tecnológico que nunca lhe foi
creditado.
Para
concluir, é importante ressaltar o tipo de tratamento dado pelo sistema
escravista, a opressão colonial e capitalista aos saberes tradicionais dos
africanos, como expressão de atraso cultural e político e de entrave ao
desenvolvimento científico e econômico. Embora Killmonger releve em seu
posicionamento uma crítica política ao colonialismo e também a dominação
capitalista, a sua formação reflete as cisões produzidas pelo positivismo
científico, que é o sustentáculo da razão instrumental. Essa razão, além de ter contribuído para o
desaparecimento de vários sistemas de crença e de saberes no solo africano,
continua reverberando no campo educacional, impedindo a afirmação de
referências positivas de identidades africanas. Diante disso, ativistas negros(as)
têm muito a comemorar tanto do ponto de vista político-científico quanto do
ponto de vista religioso: a ficção mostra um ancestral africano divinizado
(kposu = Pantera homem) que legou ao seu povo força, coragem e sabedoria para
erguer um reino com valores diferentes da ordem capitalista mundial. Wakanda
enche os olhos e emociona, porque é a afirmação da unidade africana que não
ficou restrita apenas à esfera da representação cultural! Wakanda forever! (Por Erisvaldo
Pereira dos Santos[1], no Portal Geledés).
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[1]
Black Panter – 2018, 2h15, Diretor: Ryan Coolger, Marvel Studios.
[2] Doutor em Educação pela UFMG,
professor Associado da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e Babalorixá
no Ilê Axé Ogunfunmilayo em Contagem-MG
Agradecimentos especiais para Elisa Belém e Iris Pacheco pelas contribuições
dadas a este texto.
** Este artigo é de autoria de
colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou
opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da
esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.
MUITO IMPORTANTE PARA TODOS OS NEGROS OU PRETOS DA ÁFRICA E DA DIÁSPORA, E PRINCIPALMENTE PARA AS CRIANÇAS. ALÉM DE SERVIR DE ELEMENTO PARA REDUZIR MINIMAMENTE O RACISMO EM TODAS AS SUAS FORMAS E NUANCES.
ResponderExcluirÉ um ótimo filme. A cultura de Wakanda foi representada de uma maneira ótima. Michael B. Jordan fez um excelente trabalho. Ele sempre surpreende com os seus papeis, pois se mete de cabeça nas suas atuações e contagia profundamente a todos com as suas emoções. Ele será impecável em seu novo filme. Na minha opinião, Fahrenheit 451 será um dos os melhores filmes de ficção cientifica de 2018. O ritmo do livro é é bom e consegue nos prender desde o princípio. O filme vai superar minhas expectativas. Além, acho que a sua participação neste filme realmente vai ajudar ao desenvolvimento da história.
ResponderExcluirObrigado por compartilhar meu texto em seu Blog!
ResponderExcluirObrigado por compartilhar meu texto em seu Blog!
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