Nós negros somos resistentes a esse sistema que nos oprime e que tenta nos invisibilizar, diz professor Nicolau



O professor Nicolau Neto, blogueiro e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras, fala sobre movimento negro e suas conquistas, o mito da democracia racial brasileira, a lei 10.639/03, o papel da educação no combate ao preconceito no país e acerca do seu Blog em entrevista cedida ao Blog Recortes Diversos.

Entrevista cedida ao estudante Sávio Marinho e publicada em seu Blog Recortes Diversos.

Recortes Diversos (RD) - O que é Movimento Negro e o que ele busca?

Nicolau Neto (NN) – A própria etimologia das palavras “movimento” e “negro” nos dá uma noção do que ele significa, do que ele representa para a comunidade negra. Movimento Negro enquanto forma de expressão de luta e de resistência de um povo existe desde que se começou o processo de escravidão. No Brasil, essa prática foi visível desde o século XVI e se estendeu até fins do século XIX. Nesse sentido, podemos falar deste movimento como aquilombamento de vários povos e de etnias distintas historicamente marginalizados da sociedade brasileira buscando formas de sobreviverem sem as correntes que aprisionavam seus corpos e as péssimas condições a que eram submetidos nas plantações de cana de açúcar, nos engenhos, nas fazendas, nos cafezais, etc. O Brasil é o país que tem a maior população de negros fora da África. Os negros foram trazidos do continente africano para cá, escravizados e, não se contentando com isso, as elites político-econômicas da época, através de diversas práticas, cuja escravização inclui-se aqui como a mais clara, fizeram com que eles passassem por um processo de ‘aculturação’, sendo obrigados a deixarem de praticar suas linguagens, religiões e costumes adotando práticas europeias. Sendo assim, movimento enquanto ato de mover-se e pretender mover alguém – no caso negras e negros africanos – em busca de liberdade, vem junto com o processo de escravização.

Mas o termo Movimento Negro enquanto entidade nasce oficialmente em 1978. Sendo mais detalhista, em 18 de junho de 1978 quando vários representantes de grupos se reuniram em prol de uma causa, a luta contra a discriminação racial. Na época, quatro garotos do time infantil de voleibol do Clube de Regatas Tietê foram discriminados e Robinson Silveira da Luz, trabalhador, pai de família, foi acusado de roubar frutas numa feira, sendo depois torturado no 44º Distrito Policial de Guaianases, vindo a falecer em consequência das torturas. No dia 7 de julho do mesmo ano, ocorreu a criação e o lançamento oficial do Movimento Negro Unificado agregando representantes de várias entidades das causas negras, como Centro de Cultura e Arte Negra – CECAN, Grupo Afro-Latino América, Associação Cultural Brasil Jovem, Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas – IBEA, além de atletas e artistas negros. Cerca de duas mil pessoas participaram do ato nas escadarias do Teatro Municipal da Cidade de São Paulo, em plena ditatura civil-militar, para combater fortemente a discriminação racial.

O termo “movimento dos negros do Brasil” é correto?

Depende de quem fala. O lugar da fala e quem fala é muito importante em qualquer circunstância. Há frases e expressões que ao invés de ajudar a desconstruir mitos como o da “democracia racial” e preconceitos, no caso o racial, acabam por reforça-los.

O que é racismo?

Há várias maneiras de se responder essa pergunta. No Brasil, quem pratica racismo está sujeito à pena de reclusão. Isso está posto no inciso quarenta e dois, do artigo quinto, da Constituição Federal de 1988. Dentro dessa lógica, significa dizer que o racismo gera injustiças, desconforto, segregação e privilégios. Por isso, há a necessidade de se combatê-lo veementemente todos os dias. Por isso a importância de movimentos – e o movimento negro – não deve ser o único a lutar por esta causa. O racismo é um desvio moral e ético e quem o pratica se vê em posição superior ao outro e a outra, a enxergando como incapaz de ocupar certos cargos. O racismo no Brasil é institucional também. Quantos negros e negras já exerceram o cargo de presidente/a? Quantos/as parlamentares negros/as há no Brasil? E em Altaneira, cidade que residimos, quanto/as diretores/as de escolas há que são ou se consideram negros/as? Quantos/as vereadores/as já tivemos negros/as? Nessa legislatura, quantos/as se declaram negros/as?

Pensar assim evita, por exemplo, que se cometa erro histórico, como do tão falado “racismo reverso”. Ele inexiste. Quantas leis foram criadas no Brasil para proteger ou reparar danos causados a pessoas brancas? Quantas destas já foram paradas nas ruas e confundidas com bandidos/as? Quantas pessoas brancas foram as delegacias fazer denúncias por terem sidos alvo de discriminação ou por terem sido impedidas de terem acesso a estabelecimentos comerciais? Essas perguntas são importantes, porque são elas que atestam o quanto o Brasil deve a nós, negros/as. No Brasil, o costume é presenciar negro sofrendo racismo, não o contrário.

É preciso ser negro para participar do movimento?

Não. Lutar par extirpar a discriminação, por melhores e maiores oportunidade em todos os espaços de poder para o povo negro é um dever de todos. Praticar isso cotidianamente é um exercício de cidadania.

Qual a principal conquista que o movimento já teve?

Poucas foram às conquistas, mas as que conquistamos são provenientes de muita luta e reivindicação dos movimentos negros e demais pessoas, como as leis de cotas em concursos públicos e universidades - mas que precisam ser ampliadas para outros municípios e universidades, inclusive para a URCA. O Estatuto da Igualdade Racial e as Leis 10.639/03 e 11.645/08 que obriga o estudo da cultura africana e afro-brasileira e da cultura indígena, nas escolas, respectivamente, além da instituição do dia nacional da consciência negra e do dia 20 do mesmo mês, mas no âmbito local, que instituiu ponto facultativo nos setores públicos de Altaneira. São poucas, porém, significativas. Precisam de reajustes. Algumas porque estão incompletas e outras porque ainda não surtiu o efeito esperado.

As leis que tornam obrigatório o ensino da cultura africana, afro-brasileira e indígena nas instituições de ensino ainda não vingou mesmo depois de 15 e 10 anos, respectivamente. O ensino brasileiro ainda é pautado e cunhado pelo viés do povo branco, do europeu. E muitas escolas ainda não obedecem a lei, seja por não cumprir, seja por cumprir de forma parcial. Lembro de texto que escrevi para meu blog em novembro de 2015 onde afirmei que cotas raciais ainda é um tabu. Pouco se discute e as pouquíssimas universidades que incluíram esse sistema de seleção nos vestibulares são taxadas de favorecerem a desigualdade e citam inclusive a CF/88 para isso, pois segundo ela todos somos iguais. Quanto a instituição do Dia Nacional da Consciência Negra necessita-se também de uma discussão mais profunda, de forma que se permita a ampliação do foco para além de novembro, com debates, palestras e rodas de conversas o ano inteiro. No nível municipal, o primeiro ano em que a lei entrou em vigor, poucas instituições deram ponto facultativo e as que funcionaram não promoveram reflexões acerca do assunto. O caminho é difícil, mas vamos semeando.

O que seria o mito da democracia racial?

Vamos ter que voltar para a questão do racismo como uma ideologia, como gosta de dizer o antropólogo Kabengele Munanga. Segundo ele, a ideologia só pode ser reproduzida se as próprias vítimas aceitam, a introjetam, naturalizam essa ideologia. Além das próprias vítimas, outros cidadãos também, que discriminam e acham que são superiores aos outros, que têm direito de ocupar os melhores lugares na sociedade. Se não reunir essas duas condições, o racismo não pode ser reproduzido como ideologia, mas toda educação que nós recebemos é para poder reproduzi-la.

Há negros e negras que em virtude do processo de escravização que gerou o racismo e as desigualdades, acabam por assumirem o discurso de seus algozes e se alienam, achando que são mesmo inferiores e a outros que negam a si mesmo para poderem ser aceitos no “mundo” idealizado e construído pelos brancos. Um exemplo que salta aos olhos é o vereador eleito em São Paulo, Fernado Holiday. Como ele, há muitos em cidades pequenas do interior do Ceará. Isso acaba gerando o mito da democracia racial. Afinal, o brasileiro foi educado para não aceitar que é racista. Mas basta aplicar o teste do pescoço que logo se perceberá que a democracia racial no Brasil está longe de ser atingida.

O que seria “cotas raciais” e qual sua seria sua opinião, contra ou a favor?

Esse tema é gerador de muita discórdia entre setores da sociedade brasileira. Há aqueles que se posicionam contrário e os que são favoráveis a sua aplicação. Os que são contrários se valem da própria constituição ao afirmarem que todos somos iguais e que as cotas, ao serem aplicadas atestam a inferioridade de quem delas usufruem. Então, para eles/as não se deve tratar as pessoas de forma diferenciadas. Outro argumento muito utilizado é a mestiçagem. Somos um país constituídos de várias misturas, europeu, indígena e africano. Logo, identificar quem é negro e negra no país se torna uma tarefa muito difícil.

O que se percebe, é que todos esses argumentos são frágeis e não se sustentam. O Racismo no Brasil existe. Ele é cotidiano. Se todos somos iguais perante a lei, porque negros e negras são os que mais sofrem? Por que somos minorias nos espaços de poderes mesmo sendo maioria da sociedade? Então, a discriminação por si só é chave para se identificar quem é negro/a no Brasil.

As cotas não são apenas um sistema de reservas de vagas em instituições públicas ou privadas para determinados grupos classificados por raça ou etnia, na grande maioria das vezes negros e indígenas. Na verdade, muitas pessoas erram ao atribuir as cotas como sendo feita apenas para negros e negras. No Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, o critério (com raríssimas exceções) é a escola pública e não simplesmente a cor da pele. Nos EUA para ter direito as cotas basta ser negro/a. Aqui a grande maioria das universidades e, a URCA (uma das últimas universidades públicas) usam o critério étnico-racial combinado com as condições socioeconômica. As cotas precisam ser entendidas como uma política de ação afirmativa que visa corrigir uma desvantagem histórica.

Se não for vista por este viés as pessoas vão sempre perceber que elas são desnecessárias. Em novembro de 2016 fui à Câmara de Altaneira e lá demonstrei dados do IBGE confirmando que ainda há, mesmo com as cotas, um abismo muito grande, principalmente em educação, entre negros e brancos. Este mês publiquei um texto no Blog Negro Nicolau em que se constatou que só 10% das mulheres negras do Brasil têm ensino superior. As informações são das pesquisas do IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD e PNAD Contínua). Então, isso comprova a necessidade dessa política afirmativa. Quem é contrário as cotas pensam como se não existisse racismo no pais. Logo, enquanto houve discriminação por cor de pele haverá a necessidade de cotas.

Para as cotas raciais, quem é negro no Brasil?

De certa forma já respondi nas questões anteriores. Mas basta uma autodeclaração. Claro que pode haver algumas falhas, como alguém querendo burlar a lei. Mas isso pode ser facilmente resolvido.

Qual sua característica negra que você mais gosta e lhe marca?

A resistência. Nós negros somos resistentes a esse sistema que nos oprime, que tenta nos invisibilizar.

Para você, qual a melhor forma de lidar com a discriminação racial

Isso vai depender da situação. Há aquelas que necessitam um enfrentamento e um combate mais incisivo e outras que podem ser resolvidas de forma tranquila. Mas todas elas precisam ser discutidas no sentido de construir relações baseadas no respeito as diferenças, de valorização e reconhecimento de cada humano. Você não precisa esperar que alguma situação que coloque em xeque a dignidade das pessoas ocorra. É preciso que cada um de nós, nos mais variados espaços de poder, tenhamos atitudes e provoque debates no sentido de promover a igualdade respeitando as diferenças. Tem uma frase do professor Boaventura de Souza Santos que gosto muito e que aponta um caminho para o que ora se está discutindo. “Temos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito de ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades”. Então, é nesse sentido que podemos e devemos nos situar.

O que seria a Unegro e como ela vê as conquistas do movimento junto ao governo atual?

A Unegro é a sigla que representa a União nos Negros pela Igualdade. Ela está presente em 24 estados do Brasil, com sua sede na capital de São Paulo e no próximo dia 14 de julho fará três décadas de atuação. Mesmo com sua sede na capital paulista, a Unegro foi fundada em Salvador, na Bahia, em pleno processo de redemocratização do Brasil e busca combater o racismo e toda forma de discriminação e opressão social.

No que pese ao como a entidade percebe as conquistas junto ao governo atual, não seria bem a pessoa mais competente para falar sobre. Mas como ativista das causas negras me vejo no dever de responder. Não vejo nenhuma conquista do movimento negro neste governo. Ao contrário, nós enquanto negros e enquanto movimento só tivemos retrocessos desde que esse governo usurpou o poder com anuência dos setores mais conservadores e retrógrados do pais, como a mídia e também daqueles que deveriam ser os guardiões da constituição, representado pelo STF. Poderia citar aqui a extinção da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), uma das primeiras medidas do Temer.

Em sua opinião a Lei 10.639/03, que obriga o ensino da história e cultura africana está sendo bem aplicada?

Esse ano a lei completou 15 anos. Já é possível perceber mudanças significativas na aplicabilidade dela nas escolas. Já há uma extensa variedade de textos acerca do assunto para se trabalhar com alunos e alunas e o mais importante, sob o viés de negros e negras. Agora, o interessante é buscar refletir sobre o como as instituições de ensino estão buscando se adequar à lei, enveredando sobre o caminho dos avanços e dos desafios quanto a isso. Então, não basta apenas criar leis obrigando o ensino da história africana, mas tão importante quanto é gerar condições para que o processo ensino aprendizagem ocorra com qualidade.

Quando nos propomos a este tipo de questionamento, verificamos que uma conquista do Movimento Negro, hoje a Lei 10.639 ainda não é efetivamente cumprida em função de um conjunto de discriminações e intolerâncias enraizadas na nossa sociedade e de um ensino nas escolas pautado no modelo europeu. O não cumprimento dessa lei acaba reforçando uma série de estereótipo atribuídos aos africanos, o que faz com que não tenhamos referências negras na política, nas ciências, nas artes, na educação, na cultura e em tantas outras áreas do conhecimento registradas nos livros didáticos utilizados nas escolas de ensino fundamental e médio. Felizmente algumas boas ações estão ocorrendo. Quando lecionei (2014 – 2016) na EEEP Wellington Belém de Figueiredo, em Nova Olinda, consegui, junto a todos os professores, a gestão e a demais membros/as da comunidade escolar, trabalhar durante todo o ano letivo essas questões e a escola foi referência no Brasil, com destaque no site Portal do Professor, vinculado ao Ministério da Educação (MEC).

O que lhe motivou a criação do seu Blog Negro Nicolau?

Quando lançamos o Blog em 27 de abril de 2011, o nome não era esse. Começamos com “Altaneira Infoco”, depois mudamos para “Informações em Foco”. Com este permanecemos por quase 5 anos.  Mudamos o endereço na rede mundial de computadores, mas a qualidade nas informações e a preocupação para que esta seja utilizada como um instrumento de poder e transformação social, o blog Informações em Foco agora denominado de “Negro Nicolau” superou todas as expectativas e se tornou a menos de um mês em um dos portais mais acessados do estado do Ceará e do Brasil.

A ideia de mudar o nome se deu em face de poder, através deste veículo de comunicação contribuir a partir das minhas ações de sentimento de pertencimento, para que outras pessoas se sintam representadas/os e empoderadas/os por negras e negros e possam ainda se sentirem como tal, lutando para superar e eliminar um dos maiores cânceres do Brasil – o preconceito e o racismo.

O fato é que o nosso blog sem se apegar ao modismo dos veículos de comunicação hospedados na internet e sem aderir ao elitismo barato e ao sensacionalismo, está desses seis anos de atuação constante na rede mundial de computadores sempre A SERVIÇO DA CIDADANIA e, para tanto, sempre buscamos oportunizar os menos favorecidos, os que por algum motivo não tem voz através da comunicação. Esta (Comunicação) que consideramos uma das principais armas contra a homofobia, misoginia, racismo, conservadorismo, elitismo, enfim... contra as mais diversas formas que corroborem para perpetuar as desigualdades sociais. E é exatamente por pensar assim que além das nossas lutas diárias em vários espaços de poder, seja na escola ou na rádio, resolvemos há seis anos colocar esse portal como mais uma das ferramentas nessa luta de classe onde estamos do lado dos oprimidos na busca permanente por fazer com que cada vez mais pessoas se sintam parte e se sintam principalmente empoderadas/os.

Um livro ou filme que você indica para melhor entendimento do movimento? Porque?

Joel Rufino dos Santos, historiador, professor e escritor brasileiro e um dos nomes de referência sobre o estudo da cultura africana no país, diz que “movimento negro é, antes de mais nada, aquilo que seus protagonistas dizem que é movimento negro”. Então, tomando como base esse pensamento, sugiro como leituras para conhecer um pouco mais profundo o movimento, a obra de Verena Alberti e Amilcar Araújo Pereira intitulada “Histórias do movimento negro no Brasil”; “Orfeu e o Poder: o movimento negro no Rio de Janeiro e São Paulo (1945 – 1988)”, de Michael Hanchard, “O Movimento Negro Educador. Saberes Construídos nas Lutas por Emancipação”, de Nilma Lino Gomes e “Saber do Negro”, do próprio Joel Rufino dos Santos.
 
Nicolau Neto - professor, blogueiro e ativista dos direitos civis e humanos das populações negras. 
(Foto: Lucélia Muniz).








Um comentário:

  1. Que conteúdo ...fica aqui o meu agradecimento ao professor Nicolau Neto por nos colocar a par de questões tão fortes e atuais em que nos leva a uma simpática reflexão visando o cotidiano de cidadãos que resistem e se impõe na sociedade reivindicando seus direitos e mostrando que somos capazes de nos fortalecermos porque temos uma história , um passado, e ótimas conquistas!!! Parabéns Mestre.. .

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