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(FOTO/ Coletivo Di Campana). |
O
tratamento das questões racial e de gênero como questões identitárias é um
problema porque ofusca as relações de exploração que estruturam essas
construções. No caso da questão racial, a sublocação da força de trabalho negra
na economia é evidente em estatísticas recentes do mercado de trabalho
brasileiro.
Dados
da ONU, por exemplo, colocam a questão racial no centro das relações de
trabalho até hoje: a cor da pele é um componente central e estruturante nas
desigualdades no Brasil, afetando o acesso ao emprego e a maiores níveis de
desenvolvimento (ONU, 2018). Desta forma, a questão racial se torna fundamental
para a compreensão dos mecanismos de perpetuação da superexploração nas
economias dependentes. Acerca da relação entre racismo e exploração Barbosa
(2009, p. 81) é categórico:
"A
raça negra não é uma naturalidade, mas uma relação social. Enquanto relação
social, ela é o elemento sustentador da exploração, porque todo êxito não-negro
está alicerçado sobre a exploração do negro. A hipocrisia analítica da ciência
social oficial brasileira consiste em não perceber o capital como a exploração
preferencial dos negros, como a captação de sua mais-valia, como a construção
de um lucro adicional sobre cadáveres negros. Por outro lado, a
sobre-exploração dos negros permite viabilizar para a população branca uma redução
de suas jornadas de trabalho e a perpetuação de que explorem mercados
primitivos locais, constantemente reconstituídos pela esfera pública."
As
relações raciais, de conformação social, permitem compreender os mecanismos sob
os quais a economia dependente hierarquiza e promove a superexploração da força
de trabalho. Farias (2017, p. 410) endossa a tese defendida por Barbosa:
"A
escravidão explica até certo ponto a condição a que a população negra está
submetida no Brasil atual. O outro tanto deve-se em conta ao racismo como
ideologia de dominação e exploração. Racismo gera mais valor! E gera mais valor
não no ato em si. Na atividade, estamos na esfera do ser genérico, universal. A
martelada do trabalhador negro não difere em essência da do trabalhador branco.
Da mesma forma que o ‘alô!’ da atendente de telemarketing negra não é diferente
de sua companheira de labuta branca. Mas, conforma o antes e o depois, a
condição salarial e de reinvindicações escamoteia precarizações e as legitima.
No limite, a tal superexploração da classe trabalhadora latino-americana tão
discutida pela teoria da dependência só é possível tendo o racismo como seu
principal alicerce. É ele que conforma material e subjetivamente esse
trabalhador pauperizado."
Nesse
sentido, é importante compreender que a questão racial consiste em uma chave
analítica crucial para compreensão das determinações da superexploração no
interior das economias dependentes. Parafraseando Silvio de Almeida (2018,
p.39), queremos enfatizar, do ponto de vista teórico, que o racismo, como
processo histórico, político e econômico, cria as condições sociais para que
grupos racialmente identificados sejam explorados de forma sistemática.
No
que tange a questão das mulheres, de acordo com um relatório da OIT (Organização
Internacional do Trabalho), as mulheres representam 51,2% da população total e
52,1% da população em idade produtiva, representando cerca de 71,7% da
população fora do mercado de trabalho formal e 41,1% da força de trabalho
empregada formalmente. O documento também aponta a desproporcionalidade de
afazeres relacionados ao cuidado como um dos principais componentes dessa
disparidade.
A
consolidação do capitalismo industrial promoveu uma separação rigorosa entre a
esfera econômica e a economia familiar. O avanço do sistema fabril atribuiu
valor de troca para as mercadorias produzidas e desvalorizou o trabalho
produzido no âmbito das relações reprodutivas. “Como as tarefas domésticas não
geram lucro, o trabalho doméstico foi naturalmente definido como uma forma
inferior de trabalho, em comparação com a atividade assalariada capitalista”.
(DAVIS, 2016, p. 230).
A
produção teórica feminista dedicou-se vastamente sobre compreender como a
divisão sexual do trabalho incide sobre a dimensão do trabalho reprodutivo, num
esforço de ampliar a noção de trabalho proposta por Marx. Na definição das
autoras, divisão sexual do trabalho é a forma de “divisão do trabalho social
decorrente das relações entre sexos.” (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599).
"A
diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não
remunerado das mulheres por trás do disfarce da inferioridade natural
permitiram ao capitalismo ampliar imensamente “a parte não remunerada do dia de
trabalho” e usar o salário (masculino) para acumular trabalho feminino. Em
muitos casos, servira, também, para desviar o antagonismo de classe para um
antagonismo entre homens e mulheres. Dessa forma, a acumulação primitiva foi,
sobretudo, uma acumulação de diferenças, desigualdades, hierarquias e divisões
que separam os trabalhadores entre si e, inclusive, alienaram a eles
mesmos." (FEDERICI, 2017, pp.232-234).
Uma
das principais características da divisão sexual do trabalho é a designação
prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva.
Os estudos que têm se debruçado sobre o gênero e as diferenciações sociais
atribuída a homens e mulheres, assim como as relações raciais e de produção,
são frutos de construções sociais e históricas, e não meramente atributos
biológicos.
Desta
forma, a sociedade capitalista cria mecanismos que conferem aos homens as
ocupações com maior valor social adicionado e às mulheres ocupações com menor
valor agregado e visibilidade social. Essa forma de divisão do trabalho se
estrutura em dois princípios: o princípio da separação (há trabalhos de homens
e de mulheres) e o princípio hierárquico (no qual o trabalho do homem tem mais
valor que o trabalho da mulher) (HIRATA e KERGOAT, 2007, pp. 599-600).
O
androcentrismo teórico, muito presente também no âmbito das ciências
econômicas, se expressa na atenção analítica que as teorias sociais têm
atribuído à questão da divisão sexual do trabalho reprodutivo: às margens do
enfoque analítico, assim como a questão racial.
Nesse
sentido, é importante verificar a interação entre essas categorias analíticas e
seu efeito no âmbito das relações econômicas. Ou devemos desconsiderar a
constatação empírica de que as mulheres negras, em pleno século XXI, recebem
sistematicamente as menores remunerações sociais, mesmo com o mesmo nível de
formação? Os dados empíricos não nos permitem tal façanha. Nesse sentido, é
fundamental incorporar a questão racial e de gênero como ferramentas analíticas
para a real compreensão do processo produtivo nas economias dependentes.
Não
se trata, como resmungam marxistas ortodoxos, de fracionar ou ocultar a luta de
classes. Apreender como as determinações sociais de gênero e raça se inserem no
bojo das relações produtivas é uma tarefa fundamental para determinar os
mecanismos pelos quais a exploração se configura, ontem e hoje. Trata-se de
compreender a formação da classe trabalhadora latino-americana em sua
composição real, sem a adulteração do fato concreto em nome de uma formulação
teórica ortodoxa.
Referências
ALMEIDA,
Silvio Luis. O que é racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
BARBOSA,
Wilson do Nascimento. A Discriminação do Negro como Fato Estruturador do Poder.
São Paulo: Sankofa – Revista de História da África e de Estudos da Diáspora
Africana, nº3, 2009.
DAVIS,
Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016 [1981].
FARIAS,
Márcio. Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de
classe e raça no Brasil. Brasília: Ser Social, v.19, nº41, p.398-412, 2017.
FEDERICI,
Silvia. Calibã e a Bruxa – Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017 [2004].
HIRATA,
Helena; KERGOAT, Daniele. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.
Cadernos de pesquisa, v.37, n.132, set/dez, p.595-609, 2007.
OIT;
CEPAL; FAO; ONU Mujeres; PNUD (Organización Internacional del Trabajo, Comisión
Económica para América Latina y el Caribe, Organización de las Naciones Unidas
para la Alimentación y la Agricultura, Programa de las Naciones Unidas para el
Desarrollo y ONU Mujeres). Trabajo decente e igualdad de género. Políticas para
mejorar el acceso y la calidad del empleo de las mujeres en América Latina y el
Caribe. Santiago: OIT, 2013. Disponível aqui.
ONU.
Desigualdades raciais no Brasil comprometem oportunidades de trabalho e
desenvolvimento humano. 2018. Disponível aqui.
*
Gabriela Mendes Chaves é economista pela PUC-SP e mestranda em economia
política mundial pela UFABC. É também fundadora da NoFront – Empoderamento
Financeiro, plataforma de educação financeira voltada à comunidade negra.
Realiza pesquisas nas áreas de economia política, trabalho, gênero, questões
raciais e políticas públicas.
Texto de Gabriela mendes Chaves, no Portal Alma Preta.
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