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Zuleide Queiroz, do Grupo de Valorização Negra do Cariri, afirma que a trajetória de Dandara dos Palmares impulsiona identificação / Foto: Natinho Rodrigues - (Reprodução - Diário do Nordeste). |
Figura
emblemática na luta pela liberdade junto a Zumbi e Ganga Zumba, Dandara faz
parte da história de outras mulheres e movimentos negros no Ceará.
Quantas
histórias adormecem sob o jugo da cegueira social? De quantos personagens e
fatos não falamos simplesmente porque nunca foram apresentados a nós? Mais
especificamente, quantas mulheres nossa memória negligencia quando a pauta do
dia é resistência, bravura, luta? Sobrevivência.
Elas
são inúmeras, filhas de várias partes do Brasil e do mundo. Personagens
concretas de realidades opressoras, com força capaz de transgredir o decurso do
tempo e inspirar uma fortuna de atividades. Não à toa, neste Dia da Consciência
Negra - data criada em 2003 e instituída, por lei, em 2011 - o Verso dá
destaque à figura de Dandara dos Palmares, símbolo-mor de coragem, protagonista
quase apagada do registro oficial do Brasil Colonial. Não nestas linhas.
Nesse
movimento, a travessia que propomos é de imersão no ofício de mulheres cujo
sangue transborda energia e cuja melanina é pigmento de obstinação.
Influenciadas pela irrefreável figura de Dandara, revitalizam trabalhos e
conferem fôlego novo a expressões diversas. São ícones a levantar bandeiras que
partilham semelhante apelo: desafiar lacunas antigas e promover reconhecimento
ao lugar do negro, ao lugar da negra. Avante à luta!
No sangue, na memória
Se
de geração em geração herdam-se traços, Dandara é mãe da resistência. No dia em
que Zumbi teve a cabeça degolada num golpe, um ano e nove meses já teriam
passado desde a morte da força feminina do Quilombo dos Palmares. A história da
figura apontada como mulher do herói palmarino permanece cercada de incertezas
e poucos registros, mas justifica e empodera o confronto das mulheres negras
com tudo que as subjugam até hoje.
Relatos
afirmam que Dandara teria se jogado de uma pedreira ao abismo, em fevereiro de
1694. A decisão extrema transparece a recusa da mulher de se entregar às forças
militares que cercaram o famoso quilombo, onde viviam cerca de 30 mil pessoas
distribuídas em aldeias. Não há registros do local onde a matriarca nasceu, nem
da sua ascendência africana. Estudos levam a crer, contudo, que sua origem é
brasileira e que ela se estabeleceu no Quilombo dos Palmares ainda quando
criança. Além dos serviços domésticos, ela defendia como podia o seu povo e os
três filhos que teve com Zumbi.
Líder
das falanges femininas do exército negro palmarino, Dandara é descrita como uma
verdadeira heroína. Ela dominava técnicas da capoeira e teria lutado ao lado de
homens e mulheres em inúmeras batalhas e consequentes ataques à sua comunidade
quilombola, situada na Serra da Barriga, atual região de Alagoas. De acordo com
Zuleide Queiroz, professora da Universidade Regional do Cariri (Urca) e
integrante do Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec), a personagem é
referência, homenageada por grupos feministas pelo instinto de coragem e
maternidade.
"A decisão dela foi marcar a história. Foi
uma atitude claramente pensada, não em função da força, do medo ou da
violência, características facilmente atreladas ao machismo. Foi no sentido de
educar as próximas gerações. Tudo ou nada!", partilha, emocionada.
A
trajetória de Dandara dos Palmares também impulsiona identificação. Com
divergências do ativismo relacionado às mulheres brancas, o feminismo negro
levanta pautas específicas. Enquanto as mulheres brancas buscavam equiparar
direitos civis com os homens brancos, mulheres negras carregavam nas costas o
peso da escravatura, ainda relegadas à posição de subordinadas; isso, porém,
não se limitava apenas à figura masculina, pois a mulher negra também estava em
posição servil perante a mulher branca.
Segundo
Zuleide, a partir dessa percepção, o exemplo da líder de Palmares, assim como o
de outras heroínas com pele de cor forte, é a base para a autonomia feminina
negra. "Se antes víamos a luta das mulheres brancas pelos direitos, hoje
nos reconhecemos na reconstituição da história de Dandara. É a nossa
ancestralidade".
É
com o intuito de resgatar e reverberar essa posição de luta que o Grupo de
Valorização Negra do Cariri (GRUNEC), entidade sem fins lucrativos, promove no
interior do Estado a busca pela igualdade étnica/racial e a autoestima da
população de cor negra na região caririense, onde foram encontradas,
atualmente, 26 comunidades quilombolas, a maioria lideradas por mulheres.
Zuleide afirma que Dandara está presente, sim, no coração e no sangue, de toda
mulher negra, filhas das mulheres que se jogaram no precipício no decorrer da
história.
Batuque para Dandara
Em
2016, durante cortejo no carnaval de rua, o Maracatu Nação Fortaleza homenageou
Dandara dos Palmares ao levar a bravura histórica da guerreira para os olhos e
ouvidos do público. Com loa reverenciando a personagem, os brincantes entoaram
em alta voz: “Ê Ê Ê Dandara/ O tambor já tocou, Calunga mandou chamar/ Vai ter
gira no terreiro, iaiá/ Batuque para Dandara/ Luz que alumiou a força dessa
nação”.
Ao
conferir destaque à mulher, o grupo buscou acrescentar novos elementos ao
desfile carnavalesco por meio de uma contribuição cultural e artística focada
no respeito à luta feminina, trazendo à tona a trajetória de um ícone ausente
nos livros de História e consolidando um ponto de referência para todas aquelas
identificadas com a estrada de resistência de Dandara.
Conforme
registrado no site oficial do bloco, “‘Salve a Guerreira Dandara’ nos remete a
um Brasil do período colonial e da resistência do Quilombo dos Palmares, enriquecendo
a proposta do Maracatu Nação Fortaleza ao trazer as cores vivas da cultura
afro-brasileira para as vestimentas e adereços; o toque ancestral dos tambores
saudando uma rainha negra e sua luta pela liberdade; a presença do simbolismo
incorporado na Calunga; e os elementos do universo Brasil-África como
referência na montagem do desfile”.
Coletivos de mulheres negras no Ceará
refletem força revolucionária de Dandara dos Palmares
Feminista,
anti-racista e anticapitalista: assim é definido o Instituto Negra do Ceará -
Inegra por Margarida Marques, uma das integrantes do projeto. A organização
não-governamental tem como projeto político a luta contra o preconceito e a
discriminação racial, sexista e de classe. Munida desse objetivo, a empreitada
busca fortalecer a construção afirmativa da identidade feminina negra e propor
políticas públicas que contribuam para a promoção da igualdade de gênero, raça
e classe.
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Zuleide Queiroz: "Reconstituir a história de mulheres negras é entender de onde vem a nossa força interior para diante de todas as diversidades". (Reprodução/ Diário do Nordeste). |
Os
negros e negras vivem em condições de exclusão social como consequência do
processo de escravização e de uma abolição que nunca se concretizou. Assim,
eles são aqueles que vivem em piores condições de vida, ganham menores salários
e são as maiores vítimas da violência”, situa Margarida.
Ela
conta que o Inegra atua no Estado desde 2003 como desdobramento de um coletivo
de 13 mulheres negras. Hoje, integra o Fórum Cearense de Mulheres (FCM), a
Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e a Articulação de Mulheres
Brasileiras (AMB). Entre suas principais realizações, está a Jornada pela Saúde
da População Negra; o projeto Fulô do Mandacaru; e atuação no tema do
encarceramento feminino, com apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos.
De
acordo com Margarida, “superar uma realidade de opressão significa entender um
outro projeto social e econômico, de inclusão, tolerância, justiça e reparação
social e histórica dos que construíram a riqueza desse país através da mão de
obra escravizada e foram deixados às margens do direito e da cidadania”.
Em
semelhante engajamento, o Movimento Negro Unificado (MNU) atua no País há mais
tempo, gestado em plena ditadura militar, em junho de 1978. Porém, foi apenas
em 7 de julho do mesmo ano que a organização foi lançada publicamente, num ato
realizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, lançando as bases
para a luta em todo o Brasil, inclusive no Ceará.
Dentro
desse recorte, o destaque recai também sobre o Grupo de Valorização Negra do
Cariri (Grunec), entidade sem fins lucrativos que conta com a participação de
Zuleide Queiroz. O projeto foi formado em 2001 com o objetivo de promover a
autoestima da população negra na região caririense, propagando também a
consciência sobre afrodescendência ao valorizar a história e cultura do povo.
Encontro
Nesse
sentido, em tempos onde a união é cada vez mais necessária para mudar panoramas
de opressão, é que vai ser realizado, nos dias 23 e 24 deste mês, o I Encontro
de Mulheres Negras do Ceará, no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB). A reunião
tem caráter duplo: tanto comemora os 30 anos do primeiro Encontro Nacional das
Mulheres Negras, realizado em Valença, no Rio de Janeiro, quanto prepara o
terreno para a edição nacional de 2018, marcado para acontecer em Goiânia, de 6
a 9 de dezembro.
A
inscrição para a etapa local pode ser feita online a partir de link
disponibilizado no facebook, na página do evento. A participação custa um valor
simbólico de R$ 5 e deve reservar aos interessados um encorpado debate sobre a
atual conjuntura cearense no que toca ao movimento negro, imprimindo força e
maior alcance aos projetos no segmento.
“Tanto Dandara como todas as mulheres negras
de ontem e hoje que lutam e resistem contra o racismo, as injustiças sociais e o machismo, nos
inspiram e nos fortalecem. Resgatar as memórias delas e tornar conhecida suas
lutas é importante em especial às novas gerações, pois é uma maneira de
recontar nossa história, escrita de maneira a invisibilizar a luta do povo
negro”, reitera Margarida Marques.
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Texto
publicado originalmente no Diário do Nordeste com o título “A grande influência de Dandara dos Palmares”.
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